• Nenhum resultado encontrado

Equívocos relacionados a representações do ambiente em cada estação

No documento Saberes ambientais e estações do ano (páginas 65-72)

CAPÍTULO 2: O ENSINO DAS ESTAÇÕES DO ANO NA LITERATURA EM

2.1. Dificuldades no ensino-aprendizagem das estações

2.1.2. Equívocos relacionados a representações do ambiente em cada estação

Com relação às representações do ambiente ao longo do ano, a associação de imagens de neve ao inverno, flores à primavera, sol e praia ao verão, e árvores com folhas caindo ao outono, ainda é frequente nos livros didáticos brasileiros. O estudo de Selles e Ferreira (2004) acerca das ilustrações e características do ambiente para representar as mudanças das estações, mencionado anteriormente, evidenciou que:

A maioria das ilustrações levantadas contrasta com o que usualmente observamos no Brasil [...] uma vez que não encontramos variações na paisagem ao longo das estações do ano, conforme ocorre em países do Hemisfério Norte. Lembramos, por exemplo, que existem

49 várias espécies de árvores brasileiras decíduas que não perdem suas folhas apenas no outono. Esta não seria, portanto, uma boa forma de caracterizar a referida estação em nosso país. Da mesma forma as representações do inverno e primavera correspondem a padrões típicos encontrados em regiões do Hemisfério Norte. No primeiro caso a ocorrência de neve no Brasil é rara e a e circunscrita a uma pequena região de maiores latitudes; no caso da primavera, temos a presença de flores durante todo o ano. Por fim, também as ilustrações do verão não condizem com todo o país, uma vez que ficam restritas à paisagem litorânea. Consequentemente, alunos em diferentes regiões do país, estudando em tais livros didáticos terão dificuldades de reconhecer nas representações das estações do ano o que eles vivenciam cotidianamente. (SELLES; FERREIRA, 2004, p. 104-105).

Ao investigar tal problemática, as autoras demonstram preocupações em relação à distorção da realidade local e à falta de reflexão a respeito desse problema por parte dos professores: “podemos afirmar que as percepções de nossos alunos têm sido desconsideradas em favor de representações importadas de paisagens do Hemisfério Norte” (SELLES; FERREIRA, 2004, p. 106). Essa afirmação e o trecho citado acima esclarecem a gravidade do problema e a importância de haverem investigações e propostas de ensino que objetivem amenizar essa realidade, pois na medida em que buscamos características que não existem no nosso ambiente local, perdemos a percepção das mudanças que realmente ocorrem.

A fim de esclarecer o surgimento e a persistência de tal equívoco particularmente nos materiais didáticos brasileiros, Selles e Ferreira (2004) buscaram o contexto histórico educacional pelo qual passou o Brasil, no fim do século XIX e meados do século XX, e propõem, a partir de seus estudos, que: “boa parte dos equívocos evidenciados nos materiais didáticos resultam de uma importação acrítica de representações didáticas elaboradas no Hemisfério Norte” (SELLES; FERREIRA, 2004, p.108). Tal fato teria ocorrido por influência

50 de obras estrangeiras em momentos estruturais da educação brasileira - em especial na criação do Colégio Pedro II, que serviu de referência para todo o ensino secundário do país; na ocasião da obrigatoriedade do ensino de ciências na década de 70, quando autores de livros didáticos brasileiros basearam-se fortemente naquelas obras, em suas produções; e durante o período da ditadura, através de acordos entre o Ministério da Educação e o governo dos Estados Unidos (acordos MEC-USAID), quando ocorreu uma forte americanização da educação científica brasileira.

Durante esses períodos, os livros didáticos que predominavam no Brasil eram livros franceses, de início, posteriormente traduções de livros franceses ou ingleses e, a partir do período da ditadura, traduções ou adequações de projetos norte-americanos. As figuras que ilustravam as estações do ano nesses materiais didáticos representavam as características dos países de origem dessas obras, ou seja, representavam as manifestações e variações nos ambientes das altas latitudes. Ainda segundo Selles e Ferreira (2004), a importação acrítica dessas figuras teria sido responsável por naturalizar esses conteúdos a ponto de criar uma realidade inexistente (SANTOMÉ, 1998 apud Selles; Ferreira, 2004, p. 107) que persiste até hoje para representar as estações do ano em livros e materiais didáticos brasileiros. As autoras destacam que isto não aconteceu por falta de registros de como ocorrem às mudanças no ambiente de algumas localidades do Brasil, pois naturalistas europeus que aqui estiveram registraram as diferenças que encontravam nas paisagens brasileiras em comparação com as de seus países a cada estação. Segundo Dean (1998 apud SELLES; FERREIRA, 2004, p. 107), os registros mais antigos preservados daquele período, que retratam o ambiente natural do Brasil, datam de 1620 e de acordo com ele, Simão de Vasconcellos, cronista português que viveu na Bahia, retratara em 1663 a eterna primavera do Brasil (DEAN, 1998, p.100 apud SELLES; FERREIRA, 2004, p. 107). Auguste de SAINT-HILAIRE, botânico francês, em sua passagem pelo Rio de Janeiro em 1816, registrou:

51 Passei no Rio de Janeiro todo o tempo que aí permaneceu o embaixador e percorri cuidadosamente os seus arredores. A extrema umidade que reina nessa parte do Brasil mantém a vegetação em uma atividade contínua; durante todas as estações, encontramos plantas em flor; o verão e o inverno se distinguem apenas por uma ligeira diferença de tintura na verdura das florestas. (SAINT-HILAIRE, 1824 apud LIMA, 2002, p. 77 apud SELLES; FERREIRA, 2004, p. 107. Grifos das autoras.).

Outro exemplo mais recente citado é o de Manuel Arruda da Câmara, naturalista português em missão pelo Piauí, Paraíba, Ceará e Maranhão, ao final do século XVIII:

Neste país não se distinguem, como na Europa, as quatro estações constantes: apenas se marcam duas, verão e inverno [...] mas, além disso, eu distingo dois climas bem diferentes, por causa da construção física da superfície do terreno. (CÂMARA, 1982 apud PRESTES, 2000, p. 125 apud SELLES; FERREIRA, 2004, p. 107. Grifos das autoras).

Como reforço a essa observação das autoras, podem ser acrescentadas as considerações mais recentes feitas por Fidelis de Alviano, quando em visita às tribos indígenas do Alto Solimões, no Amazonas:

Para compreender o calendário dos índios é de se prenotar, não haver no vale amazônico distinção de estações pròpriamente ditas. A zona eminente tropical faz com que a divisão se torne pouco praticável, devido à monotomia invariável na transcorrência de todos os meses.

Destinguem-se, no máximo, o verão e o inverno, cuja diferença pouca influência exerce na vida dos indígenas, pois o calor continua inalteràvelmente intenso e somente a maior quantidade de chuva diferencia o inverno do verão.

E´verdade que no Alto Solimões, há a chamada friagem, no mês de junho com a descida da temperatura para 12 g.c., devido ao vento impelido dos Andes; mas a friagem apenas dura por espaço de seis dias, e em períodos distintos entre junho e julho; em todo o resto do ano os meses passam num rítmo quase invariável. A divisão do tempo para o selvícola seria por demais difícil se não houvesse a períodica enchente e vazante do rio; se não houvesse o tempo das praias e da desovação das tartarugas, dos tracajás e das gaivotas; se não houvesse o tempo das várias frutas. (ALVIANO,1943, p.24-25. Grifos do autor).

As citações acima exemplificam e deixam claro que no Brasil e fora dele, ha muito se sabe que, dependendo da região, as estações do ano associam-se a padrões de comportamento do ambiente muito diferente daqueles dos países de altas latitudes.

52 Os registros de Manuel Arruda da Câmara e de Fidelis de Alviano acerca das regiões em que estiveram retratam a ocorrência e a constância de duas fases apresentadas pelo ambiente durante o ano, marcadas pela maior quantidade de chuva em uma dessas fases. Além dessas mudanças, as estações do ano também podem ser retratadas através do comportamento dos seres vivos, como hibernações, migração, temporadas de frutificação, etc. Diversos artistas plásticos que compunham as comitivas dos colonizadores, com a missão de retratar as paisagens brasileiras, retrataram a paisagem e as frutas do Brasil. Abaixo, um quadro do sec. XVII por Albert Eckhout (1610-1666) retrata as frutas brasileiras.

Figura 09: Abacaxi, melancias e outras Frutas (Frutas brasileiras) de Albert Eckhout (1610-1666).

Em contrapartida a um conhecimento mais preciso acerca das manifestações de nosso ambiente, o estudo de Selles e Ferreira (2004) evidenciou que os padrões de estações dos países de alta latitude como podemos vê na ilustração abaixo, são os reforçados em muitos de nossos livros didáticos:

53 Figura 10: Ilustração apresentada por Selles e Ferreira (2004) como uma representação típica para as estações em livros didáticos brasileiros.

A imagem acima é um dos exemplos analisados pelas autoras, tendo sido identificado num livro da 2ª série do Ensino Fundamental, nas edições de 1996 e 1997. Apesar da ressalva de que na edição de 1997 é informado que a ilustração faz referências às características das estações na região Sul do Brasil, e ainda, que cada região do Brasil tem suas características próprias em cada estação, as autoras chamam a atenção para o fato de que a imagem é a mesma da edição de 1996 e ocupa a maior parte do espaço destinado ao ensino da temática.

Tendo em vista que o foco de nosso trabalho é especificamente essa dimensão da problemática do ensino das estações, ou seja, as dificuldades de ensino-aprendizagem relacionadas com a representação do ambiente, no ensino das estações, fazemos algumas ponderações iniciais, a partir das conclusões de Selles e Ferreira (2004). Concordamos com as autoras quando sugerem que a importação acrítica de padrões de comportamento do ambiente presente em referências didáticas estrangeiras influenciou de forma relevante a adoção de representações inadequadas para retratar o ambiente durante as estações astronômicas, em

54 nosso país. No entanto, concordamos particularmente quando é destacado, cuidadosamente, que em parte, a origem dessa inadequação poderia ser entendida a partir das questões histórico-culturais que enfatizaram. De fato, acreditamos que somente em parte a persistência desse equívoco provém dos fatores apontados pelas autoras, e consideramos que a superação dessa dificuldade deva passar por reflexões adicionais.

Nesse sentido, para desenvolver nosso trabalho, partimos do entendimento de que a permanência dessas representações remete também a fatores como (CUNHA; GERMANO, 2013):

1. Uma necessidade, de certo modo “cognitiva”, de se manter uma associação das quatro estações em que costumamos dividir o ano com a existência de quatro fases representativas do ambiente. Algo que se dá mais ou menos porque, afinal, continuamos ensinando a existência de quatro estações ligadas ao movimento da Terra ao redor do Sol onde as posições assumidas pela Terra durante esse movimento devem ter relação com mudanças no ambiente;

2. O desconhecimento que usualmente se tem, de aspectos regulares que o ambiente local representa, ao longo do ano. Desconhecimento que, aliás, é realimentado por um ensino das estações que se mantém sem corrigir esse problema das representações inadequadas;

3. A dificuldade em interpretar e explicar as características locais do ambiente (quando conhecidas, evidenciadas) com base no modelo das quatro estações em que usualmente dividimos o ano.

Antes de prosseguirmos com algumas considerações adicionais e apresentarmos algumas contribuições para uma tentativa de superação do problema, ressaltamos a seguir algumas abordagens didáticas ou conceituais identificadas na literatura nacional em ensino de astronomia que buscam evitar o equívoco da associação das estações do ano com

55 representações de ambientes de elevadas latitudes. É importante considera-las, a fim de melhor situar o contexto de nosso trabalho.

No documento Saberes ambientais e estações do ano (páginas 65-72)

Documentos relacionados