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2 CONSIDERAÇÕES TEÓRICO METODOLÓGICAS

3.2 A ERA DE OURO DO CAPITALISMO: AS NOVAS BASES

No final do século XIX e início do século XX, enquanto o capital avançava em sua ofensiva imperialista ampliando a dimensão do mercado mundial, crescia também a ofensiva operária, que culminou numa das mais relevantes experiências revolucionárias anticapitalistas, a Revolução Russa. Ao longo desse período, o desenvolvimento das forças produtivas submetido à lógica de apropriação privada do produto social – que arrasta consigo o gérmen da sua própria contradição – concentrava no âmbito social uma intensificação das lutas anticapitalistas, de modo que, ao mesmo tempo em que o capital se expandia, incorporando territórios e submetendo outras formas de produção e reprodução da vida à sua dinâmica, reproduzia, por conseguinte, a sua negação29 através da ampliação do enfrentamento colocado pela classe trabalhadora ao sistema dominante. Neste sentido, a primeira metade do século XX colocou para as classes dominantes não apenas a necessidade da construção de um novo modelo institucional para acomodar as novas exigências da concorrência entre os capitais, explicitou também que a organização da classe trabalhadora começava a representar perigos para a acumulação capitalista.

Mesmo diante do avanço do movimento operário no início do século XX em parte da Europa Ocidental, especialmente a partir da inspiração da revolução russa de 1917, o capital não recuou e se manteve na ofensiva durante mais algum tempo, até que novos processos socioeconômicos – como a crise 1929 e a Segunda Guerra Mundial – consolidaram novos obstáculos para a manutenção da ofensiva capitalista, os quais foram parcialmente removidos, por um lado, pela devastação material e humana promovida pela guerra e, por outro lado, pela constituição de um novo padrão de acumulação que acomodou as contradições entre capital e trabalho durante algum tempo (BALANCO; PINTO, 2007). Do ponto de vista do capital, a devastação humana e material promovida pela guerra, principalmente pela Segunda Guerra Mundial – já que a Segunda Guerra Mundial envolveu não somente a Europa –, representou a destruição de capital e a criação de novas possibilidades para uma retomada da acumulação nas décadas seguintes, por isso, não é surpreendente que o capitalismo tenha experimentado taxas significativas e sustentadas de crescimento econômico no pós-guerra. Ademais, neste contexto, tanto a classe trabalhadora quanto a ideologia socialista saíram fortalecidas politicamente, situação que permitiu dois processos políticos importantes para a compreensão dos “Anos Dourados” do capitalismo, a saber: i) o fortalecimento da classe trabalhadora possibilitou que os ganhos de produtividade fossem convertidos em ganhos salariais; ii) o fortalecimento da ideologia socialista contribuiu para sedimentar as condições políticas para a constituição do chamado Estado de Bem-Estar Social.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial o movimento popular de esquerda saiu fortalecido e com capacidade de construir alternativas reais de poder anticapitalista em diversos países, o que se expressava na constituição de fortes partidos socialistas e comunistas que ofereciam “perigo” para o capital (GASPAR, 2015). No caso dos países centrais, particularmente em parte da Europa, essa ofensiva da classe trabalhadora que representou uma sensível ameaça à hegemonia da classe capitalista, foi contida e não conseguiu se constituir numa revolução anticapitalista. Assim, os Estados nacionais capitalistas que estavam em guerra há bastante tempo, passaram a traçar uma estratégia em comum para preservar a ordem capitalista mundial. Desse modo, foi construído um pacto de desenvolvimento capitalista que articulava crescimento econômico, redução dos níveis de desemprego, ganhos de produtividade e uma específica intervenção estatal30 na economia, a qual ficou conhecida como Estado de Bem Estar Social. Ademais,

30 A participação do Estado alcançava tanto o âmbito produtivo, através do planejamento e da produção de determinados bens e serviços, quanto a circulação mercantil, via mecanismos de distribuição de renda.

De um ponto de vista interno, o pilar do crescimento repousava no que Hobsbawm qualificou como arranjo triangular . De um lado as organizações trabalhistas continham suas demandas radicais, abandonando a luta pelo socialismo e concentravam a sua prática na melhoria dos salários e condições de trabalho, sem comprometer os lucros. Os empresários, por sua vez, encorajados pelas perspectivas de expansão constante do mercado nacional e internacional (e pelas restrições às operações financeiras), investiam na produção e tendiam a aceitar parte das demandas do trabalho, transmitindo parcialmente os ganhos de produtividade para os salários. O último vértice era formado pelo Estado que, além de arbitrar as relações entre sindicatos e empresários, implementava políticas de proteção social e fomento à economia, tais como o investimento em infraestrutura e a elevação do gasto corrente (o funcionalismo público empregado para garantir os serviços de transporte, saúde, educação e assistência social), dispêndio fundamental para promover o bem estar da sociedade (HOBSBAWM, 1995 apud MARIUTTI, 2011, p. 20).

O padrão de acumulação keynesiano-fordista se expressou tanto em parte da Europa, quanto nos EUA. No entanto, enquanto nos países europeus tal padrão teve um caráter mais amplo, que culminou na conformação de um Estado mais regulador e interventor; nos EUA se verificou uma experiência mais restrita, que concentrou suas bases no âmbito da produção através da racionalização taylorista-fordista, modelo que viabilizou ganhos de produtividade significativos, ao mesmo tempo em que os trabalhadores experimentaram o repasse desses ganhos através dos salários (BALANCO; PINTO, 2007).

No gráfico (figura 4)31 abaixo é possível verificar o comportamento do PIB e do desemprego nos EUA desde o final do século XIX. A primeira linha do gráfico, que expressa o comportamento do desemprego, está referenciada em relação à escala (percentual) da direita, enquanto a linha logo abaixo, que expressa o comportamento do PIB, está referenciada em função da escala (percentual) da esquerda. No gráfico a série de dados está dividida em dois subperíodos, viabilizando a observação do comportamento das variáveis até 1946 e a partir de 1946. Tendo em vista que o padrão de acumulação keynesiano-fordista se consolidou a partir do pós-Segunda Guerra Mundial, é possível identificar como esse padrão de acumulação teve êxito na redução dos níveis de desemprego a partir de 1945. Enquanto entre a crise de 1929 e o início da Segunda Guerra Mundial a taxa de desemprego nos EUA alcançou mais de 20%, ao longo do padrão de acumulação keynesiano-fordista (1945-1970) a taxa de desemprego não superou 10%. No mesmo gráfico, a análise do crescimento do PIB dos EUA revela que, 31 Imagem extraída do artigo “Can Capitalists Afford Recovery? Economic Policy When Capital is Power”, de autoria de Bichler e Nitzan.

do final do século XIX até o final da Segunda Guerra mundial, a dinâmica do PIB era bem mais instável quando comparada ao período posterior a 1945.

Figura 4: Crescimento econômico e desemprego nos EUA

Fonte: Extraído de Bichler e Nitzan, 2013, p.6.

O novo arranjo de economia política, consolidado após a Segunda Guerra Mundial, acomodou as contradições entre o capital e o trabalho, viabilizando o crescimento sustentado dos lucros e do nível de emprego. O êxito imediato desse arranjo de desenvolvimento capitalista fomentou ilusões entre aqueles estudiosos que sempre tiveram aversão ao reconhecimento da luta de classes enquanto elemento inerente ao sistema capitalista. Assim, tais estudiosos viram nessa trajetória um sinal do fim das flutuações das economias industrializadas capitalistas. Entretanto, o que possibilitou esse cenário de crescimento sustentado foi toda a devastação material resultante das duas grandes guerras mundiais, que representou para o capital uma plataforma de acumulação. Essa situação foi muito bem aproveitada pelo núcleo de países centrais nas décadas seguintes, especialmente pelos EUA, já que este país havia largado na frente no processo de acumulação pós-Segunda Guerra Mundial.

Um dos principais elementos constitutivos da capacidade de avanço e domínio econômico dos EUA foi o rápido processo de concentração e centralização do capital pelo qual essa economia estava passando desde o início do século XX. Esse processo, inclusive, dotou os EUA de alta capacidade de presença nos demais países, o que se verifica, por exemplo, quando se analisa o

crescimento da participação das multinacionais estadunidenses na América Latina a partir de 1950. De acordo com Marini (2011, p.186),

[…] en Estados Unidos, en veinte años (1909-1929), las empresas que contaban con más de mil asalariados y que correspondían, en cualquiera de los años considerados, a menos de 1% del total de las fábricas, pasaron de 540 a 921, mientras que el número de trabajadores bajo su mando, evolucionaba de uno a dos millones; veinticinco años después (1955), el número de esas empresas era de cerca de 2100, controlando a 5.5 millones de asalariados; la dimensión media de las empresas manufactureras, que era de 35 trabajadores en 1914, había subido a 40 en 1929 y a 55.4 en 1954. Este proceso de concentración se acompaña de una creciente centralización del capital, bastando con señalar que las 200 sociedades mayores de Estados Unidos absorbían, en 1935, el 35% del volumen de negocios de todas las sociedades y, en 1958, el 47%. En 1968, esa cifra había subido a 66%.

Em suma, não foi apenas um conjunto de condições internas que viabilizou a constituição do padrão de acumulação fordista-keynesiano, circunstâncias de ordem externa também foram fundamentais para a manutenção desse processo nos países centrais, consolidando uma trajetória atípica de desenvolvimento capitalista nos EUA e em parte da Europa, ao mesmo tempo em que se verificou a difusão industrial comandada pelas multinacionais na América Latina.