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era o mais reservado de todos, usava um casaco de malha fina de

Em 10 junho de 2018 N concorreu como representante da sociedade civil para o Conselho Municipal de Imigrantes (CMI), vinculado à Secretaria

W. era o mais reservado de todos, usava um casaco de malha fina de

cor cinza que combinava com o clima daquele verão na cidade, e uma camisa branca fechada até o seu último botão. Prestativo, ele auxiliava seus colegas na tradução dos termos dos textos para o árabe, sempre com a voz baixa, com uma expressão acolhedora e com um débil sorriso que aparecia também nos olhos e que deixavam transparecer certo otimismo.

No bolso esquerdo do casaco havia algo que fazia um volume discreto e retangular do tamanho provável de um celular, logo descartei essa hipótese, porque nas muitas vezes que W. colocou a mão no bolso e tocou o que havia ali percebia-se que era algo macio e flexível e que oferecia algum conforto.

Talvez, fosse um pequeno bloco de anotações, no qual W. escrevia os versos e as letras de suas músicas enquanto balançava no ônibus que o trazia de Guarulhos para o centro. Talvez anotasse ali as palavras de sua língua que não queria esquecer, ou fizesse algo mais corriqueiro e comum como o cálculo do quanto poderia gastar até o final do mês. Ou, talvez fosse um livro de orações que ganhou de seu pai antes de sua fuga da Síria, e a cada vez que colocasse a mão no bolso e apalpasse o seu conteúdo sentisse-se mais próximo de si próprio. Ou um pequeno álbum de fotografias que engendrou em um caderno de capa fina e no qual estivessem as poucas fotografias de sua aldeia ou cidade antes que o exército ou os blindados tenham tomado conta de suas ruas evitando o ir e vir de seus habitantes, ou a polícia tenha calado as vozes de suas manifestações, talvez ali estivessem

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as fotografias de um tempo em que ainda havia água e alimentos para o seu povo.

De qualquer forma, cada vez que tocava no conteúdo do seu bolso algo renovava o otimismo de W., acendia um sorriso trêmulo no seu rosto, como uma vela no vento do deserto.

Mas a debilidade do seu sorriso não convencia aos que querem ter esperança. Para Arendt, há algo de errado com o otimismo:

não há mais necessidade de enfeitiçar o passado; já há feitiço suficiente na realidade. Assim, em vez do nosso falado optimismo, usamos todos os tipos de truques mágicos para evocar os espíritos do futuro [...] aqueles estranhos optimistas entre nós que, tendo feito vários discursos optimistas, vão para casa e ligam o gás ou dão uso a um arranha-céu de um modo um pouco inesperado. Parecem provar que a nossa proclamada animação é baseada numa perigosa disposição para morte. Ao mencionar a convicção de que a vida é o bem maior e a morte a maior consternação, tornamo-nos testemunhas e vítimas de terrores piores que a morte – sem termos sido capazes de descobrir um ideal maior que a vida. Assim, embora a morte perca o seu horror para nós, não nos tornamos nem dispostos nem capazes de arriscar a nossa vida por uma causa. Em vez de combater – ou pensar sobre como ser capaz de resistir – os refugiados habituaram-se a desejar a morte a amigos ou familiares; se alguém morre, imaginamos animadamente todos os problemas de que foram salvos. Finalmente muitos de nós acabam por desejar que, também nós, poderíamos ser salvos de alguns problemas e agimos em conformidade. (Arendt, 2013. pp. 9,10)

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Seria possível descolar o professor que está em sala de aula, de sua condição de refugiado no país? Quando fala em sala de aula o professor? E quando fala o refugiado? O encontro com esses professores do Abraço

Cultural suscitou tais questões, tal encontro fez querer saber como se

constitui esse professor e essa aula, em que condições e possibilidades ela acontece, quando a condição de refugiado se sobressai, tensionando a posição de professor por ele ocupada até o ponto de tornar-se sobressalente. Ser um professor refugiado é uma condição de participação, mas também funda em

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seu critério a indissociabilidade, a determinação, a sina, o estigma, de carregar sempre aquilo que o faz estranho, que o torna um sujeito com direitos limitados, um não cidadão. Movimentar-se em um espaço sob a égide de um termo que evidencia sua fragilidade e vulnerabilidade e que não o protege de forma efetiva, não traz conforto ou segurança, pois esta não é apenas uma das posições desse indivíduo, mas é a posição que implica e engendra conjunturas e determina as relações que o Estado tem com ele, e nas quais ele está sempre em desvantagem e sob suspeita.

Para satisfazer a intenção de pensar sobre a aula dos professores refugiados no Brasil e sobre a hospitalidade é proeminente o risco de deixar os professores deparando-se constantemente com as experiências e as condições que os fragilizam, onde:

[...] ‘ele’, incapaz de encontrar a diagonal que o levaria para fora da linha de combate, para o espaço constituído idealmente pelo paralelogramo de forças, “morra de exaustão”, deperecido sob a pressão do constante embate, esquecido de suas primitivas intenções e apenas cônscio da existência dessa lacuna no tempo em que, enquanto ele viver, será o território sobre o qual terá que se manter, muito embora não se assemelhe a um lar, e sim a um campo de batalha (Arendt, 2013, p. 39).

O drama que o refugiado carrega, retiraria do professor, do sujeito, toda a sua variação e complexidade? Porém, ser refugiado é somente isso? Vagar no mundo em busca de um lugar para si? Não ter um lugar para voltar? É ser uma categoria humana sem pátria, sem Estado ou Nação? Agamben (2015) adverte: o refugiado é aquele que rompe o nexo entre homem e cidadão, ele deixa de ser uma figura marginal tornando-se peça decisiva, um elemento inquietante, na crise Estado-Nação moderno, e põe em suspensão a ficção originária da soberania.

No primeiro encontro com o grupo de professores, quando a discussão girou em torno da necessidade de falar ou não sobre os conflitos de seus países com os seus alunos, evidenciando ou neutralizando os seus efeitos e a importância disso na aula, já aparecia de imediato, a preocupação com o fato

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de ser reconhecido unicamente pela condição de refugiado e as implicações de um olhar único para essa figura.

No primeiro dia, uma primeira escrita de W. equacionava essa situação, ao menos dentro dos limites da folha de papel. O seu texto é fraturado, descontínuo, sem um meio, tem um início que não se encontra com o seu fim. O texto foi escrito em duas partes, a primeira conta a história de um amigo que viajou para o Brasil após quatro anos de guerra em seu país. Essa terceira pessoa, o amigo, é quem vive uma série de situações limite em uma fuga desesperada e narrada em detalhes por W.

“Meu amigo pegou uma pequena sacola com seus documentos e passaportes, algum dinheiro e começou a correr para um prédio próximo para se esconder, enquanto ele se escondia conseguia ver exatamente o que estava acontecendo com as casas e o povo que fugia também. Foram momentos horríveis, cheios de raiva e medo. Os aviões começaram a jogar bombas e as pessoas corriam para todos os lugares [...]” (T.T.)