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A exploração teórica que realizámos permitiu caracterizar o antédipo enquanto organizador psíquico que estabelece os alicerces narcísicos e objectais e instaura o pensamento sobre as origens. Vimos como a partir de uma vivência narcísica satisfatória se inscreve no tecido psíquico uma relação de familiaridade criativa entre o Eu e o seu objecto, possibilitando um percurso em direcção à conflitualidade edipiana. Observámos, igualmente, como a diferenciação entre o Eu e o seu objecto podem ficar comprometidas quando a vivência narcísica da díade é perpetuada pela entrada em cena do domínio incestual, que afasta o pensamento sobre as origens, perpetuando uma fantasmática primitiva omnipotente. Seguidamente, explorámos os organizadores fundamentais dos funcionamentos limite, esforçando-nos por sublinhar a relação estreita entre o défice narcísico primitivo, a precariedade das fronteiras psíquicas e as dificuldades de constituição dos processos terciários, as angústias de separação-intrusão face a um objecto narcísico vivido como perigoso mas imprescindível, a utilização de defesas arcaicas baseadas na clivagem e no esvaziamento psíquico e a impossibilidade de organizar a cena edipiana enquanto matriz da diferença dos sexos e das gerações.

Finalmente, procurámos compreender estas organizações à luz do complexo antedípico, mostrando como uma falha na constituição da relação original de sedução narcísica compromete a elaboração do conflito originário, impedindo o trabalho de luto original, e pondo em marcha uma lógica incestual que procura recriar a relação primitiva por viver. Observámos como a partir desta falha na constituição da galáxia narcísica pode ser compreendida a carência narcísica das organizações limite, e como a impossibilidade de realizar esse luto primevo mina a constituição dos limites psíquicos que asseguram as diferenciações mas também as ligações e trocas necessárias entre o Eu e o seu objecto. A impossibilidade de constituir a tópica ternária antedipiana (Eu, Ideia do Eu, objecto), que garante a relação de confiança e familiaridade entre o interno e o externo, afecta severamente o processo de intricação e modulação pulsional, e inscreve uma lógica relacional paradoxal, oscilante entre angústias de separação e angústias de intrusão. Face a este conflito entre narcisismo e objectalidade, ligado à ausência de uma placenta fantasmática que assegure ao Eu uma participação no seu engendramento, o Eu vai utilizar processos incestuais que iludam

a diferenciação: a clivagem, a identificação projectiva e os vários mecanismos de expulsão psíquica e de recusa da cena primitiva servirão esse propósito.

Trilhado este caminho, percebemos a importância deste complexo psíquico primitivo na estruturação do psiquismo em geral – no estabelecimento dos alicerces narcísicos, na constituição de fronteiras psíquicas, na regulação das relações objectais, na possibilidade de realizar os trabalhos de luto e criação e finalmente na capacidade de viver a conflitualidade edipiana – e nos funcionamentos limite em particular, em que a impossibilidade de realizar o trabalho psíquico proposto pelo conflito antedipiano compromete, de forma particularmente dolorosa, a constituição da interioridade e a relação com o outro e o mundo. Consideramos por isso mesmo pertinente dotar o saber-fazer da psicologia clínica de um instrumento de análise deste complexo originário que possa dar conta do arranjo específico e singular de cada sujeito, na medida em que permita compreender, relativamente aos diversos indicadores antedipianos e às possibilidades que deles derivam, até que ponto este complexo primitivo se organizou e/ou se comprometeu, que dificuldades maiores se colocam, e que processos foram afinal integrados.

A técnica Rorschach, transformada e enriquecida de forma a iluminar o complexo antedipiano nas suas diversas gradações, oferece-se-nos como instrumento de excepcional qualidade para proceder a uma tal análise. Nomeadamente, a técnica Rorschach deverá ser revista de forma a poder dar conta da geografia psíquica antedipiana – de diferenciação ou indiferenciação do Eu, do objecto e da Ideia do Eu –, das fantasmáticas primitivas e seus

instrumentos relacionais – de co-criação, auto-engendramento ou de não-lugar na criação

própria, sustentados pela pele, olhar e respiração como investimentos de contacto e contenção, como instrumentos de desqualificação e indiferenciação, ou como meras fronteiras desprovidas de verdadeira espessura, conteúdo e possibilidade de comunicação – e, finalmente, das dinâmicas psíquicas que decorrem de cada uma das organizações

antedipianas – marcadas pelas possibilidades de ligar, criar e perder, pela recusa da diferença,

do desejo, da representação e do conflito, ou ainda pela dificuldade e instabilidade das distinções e ligações entre o Eu e o seu objecto.

Assim, estabelecemos como primeiro objectivo do trabalho que se segue, a tradução desses organizadores para a técnica Rorschach, servindo-nos para isso do modelo e da teorização propostos pela Escola Francesa aquando da convergência entre o modelo

psicanalítico e a procedimentos de análise e interpretação do Rorschach (Anzieu & Chabert, 1961/2004; Chabert, 1997/2003, 1998/2000; De Traubenberg, 1970). Procuraremos explicitar como os diversos componentes da situação-Rorschach podem solicitar o complexo antedipiano enquanto base universal do psiquismo humano, e como o processo-resposta pode ser lido de forma a iluminar a compreensão de cada configuração antedipiana singular. Em seguida, aplicaremos essa construção técnica a um protocolo Rorschach de um sujeito limite, de forma a ilustrar as possibilidades da nossa proposta, e a sublinhar a pertinência da utilização dos organizadores antedipianos para a compreensão clínica da organização, capacidade e sofrimento psíquicos do sujeito que connosco se encontra, em contexto terapêutico ou de avaliação psicológica.

É nossa convicção que o estudo do complexo antedipiano através do Rorschach, que tem como objectivo avaliar em que medida este processo de transformação primária ocorreu ou não, que aquisições se realizaram, quais ficaram por fazer, permitirá ampliar a nossa compreensão clínica no cruzamento com todos os outros dados que o próprio Rorschach, outras provas projectivas e a observação psicológica facultam. E percorrer com o outro o caminho da descoberta, da compreensão e da criação, são afinal os propósitos do nosso encontro.

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