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Ermelinda Mazzaferro Bronca: as redes de comunicação e denúncia

cartinha 72 e não podia ficar indo e voltando para a área, caso quisesse Falou também que os

4 MEMÓRIAS (RE)CONSTRUÍDAS

4.2 Ermelinda Mazzaferro Bronca: as redes de comunicação e denúncia

Em busca de quaisquer notícias acerca do Zé, Ermelinda M. Bronca soube da libertação de José Genoíno Neto (em 1977, ex- integrante das forças que se preparavam para combater no Araguaia) e das declarações que ele fizera, sobretudo a jornalistas que publicaram seus relatos176.

Ensejando qualquer informação mais precisa sobre Zé, sobre a vida que ele levou no Araguaia, seu irmão Carlos Huberto Bronca, em São Paulo, durante uma das reuniões de familiares dos desaparecidos políticos junto ao advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, procurou por José Genoíno. Dele ouviu relatos acerca de muitos dos desaparecidos. Ouviu dele ainda a descrição de como eles/as viveram, como era a vida dura no distante Araguaia e, imediatamente, após a reunião fez um convite a Genoíno para que ele visitasse sua família, principalmente sua mãe, em Porto Alegre, e que contasse a ela tudo que lhe havia dito. Sua intenção era a de que toda sua família ouvisse aquelas notícias sobre o Araguaia, pois, naquele momento, elas eram inéditas e incríveis. José Genoíno aceitou o convite e foi a Porto Alegre.

Após conhecer Carlos Huberto e receber carta de sua mãe, Ermelinda M. Bronca, José Genoíno, em resposta à missiva da família Bronca, reforçou a imagem que começava a ser construída pela imprensa e pelos familiares acerca dos desaparecidos: enfatizou a bravura, o desvelo e o amor aos ideais daqueles/as que tombaram no Araguaia. Em dois momentos (final de 1979 e início de 1980), em carta

175 DSSI Procura Guerrilheiros. Jornal Zero Hora, Porto Alegre, nº 1308, 23 de novembro de 1968.

176 PORTELA, Fernando. Guerra de Guerrilha no Brasil. São Paulo: Global editora, 1979, pp. 133-159. Nesta obra Fernando Portela traz uma entrevista com José Genoíno Neto, onde este narra sua militância no PC do B e traz primeiras revelações acerca dos militantes desaparecidos que combateram no Araguaia. Este reconhecimento inicial foi feito através de fotos levados pelos familiares, pois os guerrilheiros usavam outros nomes durante a preparação da Guerrilha.

enviada para Ermelinda, ele deixou transparecer o ideal dos/as desaparecidos/as, aparentemente como forma de transformar a dor em luta e a esperança em concretização dos sonhos deles/as, como se pode perceber a seguir:

SP – 30/10/1979

D. Ermelinda M. Bronca

Foi uma grande emoção saber notícias da senhora falando com o Carlos Bronca. Não nos conhecemos, mas temos ligações fortíssimas. Através do conhecimento e convívio fraternal com o seu filho na Região do Araguaia, somos da família dos que lutam e dos que sofrem porque queremos uma vida melhor para o nosso povo.

Trabalhei e lutei junto com o José Huberto. Aprendi com ele muita coisa, a dedicação, o amor e a capacidade de lutar pelo bem dos explorados e oprimidos.

É duro para a senhora, o seu sofrimento e sua dor pelo que aconteceu com ele. Mas, por outro lado, ele é um herói e um mártir da luta do nosso povo. Dedicou-se, como muitos outros, de corpo e alma àquilo que acreditava e foi a razão de sua vida. Assim, ele vivia feliz, alegre, e comunicativo com todos os outros companheiros. Se viveu distante da família foi por força das circunstancias, mas sempre falava na família com carinho e saudade. A dor e o sofrimento da senhora e de toda a família é também o de todos que, passavam por essa situação; centenas de outras famílias vivem o mesmo drama. Sabemos que a causa pela qual o Zé Huberto se dedicou é a luta de todos. A bandeira que ajudou levantar será sustentada por tantos outros. Seu sacrifício não foi em vão. Continuamos a sua luta. O seu ideal será um dia realidade em nosso país. Pelo que convivi com ele, pode ter a certeza do quanto ele gostava da família. Esse amor era sacrificado em nome da luta e por ela ele deu o que tinha de melhor, sua compreensão política e sua prática. Jamais me

esquecerei do seu espírito de fraternidade e companheirismo.

José Genoíno Neto

São Paulo 27/02/1980

Prezada D. Ermelinda M. Bronca

Recebi sua carta somente agora por esses dias porque estava viajando pelo Nordeste. Portanto, desculpe não ter respondido há mais tempo. Fiquei contente com a carta da senhora principalmente, pelo seu espírito e conteúdo. Realmente não há maior homenagem ao companheiro Bronca do que essa maneira de ver as dificuldades e os problemas. É muito importante resistir às dores como essas com uma visão de luta e animadora.

Já falei sobre ele – Bronca - para a senhora no Araguaia; da sua convivência com o conjunto e do seu espírito combativo. É muito duro para a família, mas há o outro lado, que a vida e a luta dele por uma causa tão justa. Isso honra a senhora e toda a família. Lembrem-se dele como um filho que dedicou a vida à luta dos explorados e oprimidos. (...). Por aqui vamos lutando. Tem surgido mais familiares e vamos aumentando a pressão para que as coisas sejam esclarecidas. Qualquer coisa escreva-me.

Estamos a sua disposição Abraços,

José Genuíno Neto

Segundo o relato de Maria Helena Mazzaferro Bronca, uma vez lá na capital gaúcha, Genoíno foi acolhido pela família Bronca com o carinho semelhante ao que era dedicado ao filho ausente, o Zé. A Genoíno foi dispensado todo conforto e atenção. Foram-lhe apresentados os pertences, ainda cuidadosamente arrumados por Ermelinda, do filho desaparecido. Ainda segundo ela, foram dias felizes, pois apesar da saudade, os dias que José Genoíno passou com a família Bronca foram de boas lembranças e satisfação. Ermelinda, apesar de possuir mais de 70 anos de idade na época, tentou agradar Genoíno de todas as formas. Fez-lhe as comidas preferidas do filho Zé, falou de

lembranças da infância, dos álbuns de famílias. Os bons dias ali passados também marcaram a lembrança de José Genoíno, assim, em uma carta datada do final de 1980, momento em que a Caravana dos familiares havia rumado para a longínqua e desconhecida região do Araguaia, ele descreve a satisfação daquela visita assim:

SP – 1/11/80 D. Ermelinda e Filhos

Essa carta já devia ter sido enviada há mais tempo. É a correria da luta por esses bandos e a espera de mais novidades da caravana e do processo para escrever para vocês. A caravana ainda não chegou, mas tudo está correndo bem. A interpelação será enviada ao Tribunal Federal de Recursos logo após a chegada das famílias da caravana e a obtenção de mais dados que estamos conseguindo. Logo que tiver novidades transmitirei para a senhora.

Continuo guardando todas as lembranças daquela feliz viagem e dos momentos que ficamos juntos. Principalmente a sua força e amizade e a lucidez para compreender as coisas.

Espero ter a oportunidade de reviver novamente aqueles momentos. Na dor e no sofrimento, a gente descobre o outro lado das coisas: a luta e a alegria de lutar. As recordações duras e alegres nos acompanham para sempre e delas vamos encontrando a força para continuarmos a caminhada. O Zé é um exemplo de dedicação, alegria e firmeza. Agora, além das fortes lembranças que guardo do Zé tenho as de toda a família. Foi uma felicidade conhecer e conviver com todos da família. Por aqui, vamos continuando a luta e enfrentando as dificuldades. Muitos abraços a todos de casa. Para a senhora aquele mesmo abraço da chegada e da despedida, com mais saudades e recordações saudáveis.

José Genoíno representava naquele período, para grande parte das famílias e até mesmo para o PCdoB, um elo “perdido” que restara do episódio da Guerrilha. Embora já afastado do PCdoB, suas memórias elucidavam uma série de prenúncios para as famílias e para o Partido, não apenas com fatos que ele, como testemunha, presenciara no conflito, mas com informações de até antes mesmo do início deste. Consequentemente, como já foi dito, ouvi-lo, recebê-lo, acolhê-lo, como foi feito por diversos depoentes entrevistados para este trabalho, significava ter uma “prova viva” de que o Araguaia realmente existiu. É como se ele, Genoíno, personificasse o próprio Araguaia e, indiretamente, o/a filho/a que nele esteve presente.

Quanto às cartas enviadas para Genoíno assim como as recebidas dele, as mesmas também tiveram um valor significativo no universo das certezas e incertezas que habitavam o mundo privado dos familiares de desaparecidos do Araguaia. Naquele terreno, onde o desespero e a incredulidade estavam cotidianamente presentes, as missivas de Genoíno puderam alentar a dor da saudade através das palavras de alguém que sobrevivera ao conflito. O recebimento e o envio das cartas traziam consigo também o poder do compartilhamento dos sentimentos mais íntimos, sem medo de mostrar-se ao outro. Além disso, vale ressaltar que as cartas, não apenas as trocadas entre Genoíno e esta família, contribuíram para a estruturação e manutenção da rede de familiares de desaparecidos por muitos anos. No caso de Ermelinda, os vínculos com outros familiares através de cartas se manteve até sua morte.

No que concerne a mim, enquanto pesquisadora, em particular, ao manusear tal documentação privada foi, obviamente, impossível me manter imparcial e/ou indiferente ao fato de saber ter em mãos documentos históricos. Documentos que têm o poder de nos transportar no tempo, vivenciar, indiretamente, sentimentos, inclusive o de outras pessoas, de (re)escrever um período, a História. Assim sendo, para Luciana Quillet Heymann, “o acesso a estes documentos tem a força de simular transporte no tempo, a imersão na experiência vivida, de forma direta, sem mediações”177

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177

HEYMANN, Luciana Quillet. Indivíduo memória e resíduo histórico: uma reflexão sobre os arquivos pessoais e o caso Filinto Muller. In: Revistas Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 10, nº19, pp. 41-66, 1997.

4.3 A denúncia e a luta pela memória dos/as desaparecidos/as