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Em direção a Coração de Jesus, Wells, que já começa a lamentar a quantidade de habitações encontradas “tão poucas e distantes” e a estranheza da “ausência de vida animal”394, hospeda-se na propriedade do Senhor Hipólito Rodrigues Soares, a quem Wells descreve como “um espécime bom, mas raro, de um brasileiro do interior corado e sadio; seu rosto honesto irradiava saúde, cordialidade, e o contentamento de uma vida industriosa”, sua residência, embora modesta, era ordenada e limpa395. Mais impressionado se mostra com sua esposa “uma mulher de aparência saudável de cerca de quarenta anos de idade; como sua casa, ela também era muito asseada”396. Wells logo veio a saber que esta “havia sido criada entre ingleses das minas de Morro Velho. Ela disse que gostava de ingleses e que eles sabiam como passar bem”397. Deste encontro, conclui Wells:

Quando um viajante no Brasil, ocasionalmente, encontra pessoas tão boas quanto estas, ele será de fato duro de coração se não apreciar profundamente sua natureza generosa e lembrar com gratidão, talvez nem tanto sua amável hospitalidade, quando o prazer e a satisfação advindos de encontrar ‘um bom camarada’398.

Mas logo adiante, em Contendas, adverte: 390 Cf. ALMEIDA, in SPIVAK, 2010, p. 14. 391 WELLS, 1995, v. 2, p. 83. 392 ROSA, 2001, p. 134. 393 ROSA, 2001, p. 12. 394 WELLS, 1995, v. 1, p. 287. 395 WELLS, 1995, v. 1, p. 287. 396 WELLS, 1995, v.1, p. 287. 397 WELLS, 1995, v.1, p. 287. 398 WELLS, 1995, v.1, p. 287-288.

As pessoas vagueavam apáticas pelas ruas, ou se apoiavam com toda a sua frouxidão nas portas ou janelas. Em todas as cidades brasileiras, mesmo nas cidades da costa, a primeira coisa que chama a atenção do recém-chegado da Europa é a quantidade de gente que se vê em toda parte, apoiada ou reclinada em atitude de preguiça total, como se seus ossos tivessem sito extraídos dos corpos. É este hábito vicioso de não fazer nada e perder tempo que torna o país tão atrasado com relação a sua capacidade produtiva399.

Em Barreirinhas, convida o leitor à imaginação:

[...] imagine o que o mesmo lugar poderia ser se fosse habitado por uma raça industriosa e econômica –; casas bem cuidadas em meio a jardinzinhos de plantas e flores tropicais; as estradas para as cidades próximas melhoradas, carroções fortes de fazenda para transportar para o mercado a riqueza vegetal que pode ser tão facilmente cultivada neste vale rico e fértil. Mas para estas pessoas, estradas, ferrovias, e comunicações aperfeiçoadas não trazem qualquer benefício material; elas continuariam vegetando como antes e mantendo seus hábitos dissolutos e improvidentes. O clamor presente no Brasil é por ‘braços’. Existem braços em número suficiente, mas eles são braços relutantes; uma nova raça ou sangue novo é necessário e indispensável. É claro que há exceções a todas as regras, e ocasionalmente encontram-se exemplos de economia e diligência entre os habitantes do interior; mas eles são muito raros e são quase sempre membros da tão difamada raça negra400.

Se o maravilhoso funcionamento de uma fábrica de algodão, em meio ao sertão, foi para Wells um episódio memorável de ordem e boa vontade, isso se lhe apresenta como um caso raro e irrepetível em suas viagens:

Tudo estava em excelente ordem e método. O zumbido da maquinaria e a excelente disciplina mantida no local de trabalho era uma cena inédita de se ver no interior de Minas. A fábrica fora montada há apenas três anos, e os lucros tinham sido tão grandes que o custo já tinha sido quase todo recuperado. Ela é um sucesso tão grande que os proprietários estavam, na época, em vias de montar mais uma em Curvelo, há algumas milhas de distância. [...] Atrás dos prédios da fábrica e do depósito havia uma longa série de casas para os trabalhadores da fábrica, homens, mulheres e crianças; suas refeições diárias eram fornecidas em um longo galpão adjunto. Eles pareciam contentes e felizes, estavam decentemente vestidos, suas pessoas e casas eram limpas, eram econômicos, trabalhadores, sóbrios e bem-comportados. Que mudança a diligência e a disciplina operaram nessas pessoas! Que diferença do habitual esbanjamento, semidesnutrição e inutilidade de suas vidas! Uma disciplina estrita e excelente era mantida, e toda conversação proibida na fábrica, exceto aquela absolutamente necessária para o serviço. Esse exemplo de administração brasileira só pode ser altamente recomendado e mostra o que realmente pode ser feito com as pessoas do campo em mãos boas e adequadas∗401.

399 WELLS, 1995, v.1, p. 301. 400 WELLS, 1995, v.1, p. 306.

“Fiquei tão impressionado com os méritos e vantagens deste empreendimento que, quanto retornei à Inglaterra

Se Wells exulta ante o bom comportamento dos trabalhadores de Minas Gerais, não olvida aí as exceções à regra:

De fato, em nenhum país da América do Sul há camponeses de disposição mais pacífica do que estes de Minas Gerais; não há pronunciamentos nem revoluções ou escaramuças eleitorais por um presidente, como nas repúblicas vizinhas; mas ocasionalmente, em algumas províncias, ocorrem contendas locais pela escolha de deputados concorrentes, que às vezes terminam em incidentes fatais402.

Adiante, no acampamento montado para o Levantamento da Seção n.° II, na Fazenda Picada, imediatamente iniciou os trabalhos e angariou seus funcionários tendo escolhido

uns poucos homens para trabalhar comigo, mas foi-me dado a entender que estavam fazendo um grande favor em entrar a meu serviço. Um homem que cochilava em um banco, em resposta à minha pergunta se ele queria ou não trabalhar para mim, deu um terrível bocejo e disse que talvez em uma semana ou duas pudesse ir, mas que agora estava muito ocupado; ele parecia ter passado uma semana dormindo 403.

Se Wells se surpreende diante do cenário encontrado no Rio, em Juiz de Fora ou pelas estradas da hoje região da Zona da Mata, na sua terceira seção, a “tão esperada meta” para a equipe de Wells em torno do Rio São Francisco, o viajante vê frustrada a sua expectativa e afirma: “minhas loucas fantasias foram se esvaindo gradualmente; era tudo muito prosaico, e extremamente quente e abafado [...] a primeira vista do rio foi sem dúvida desapontadora”404. O aspecto desabonador da paisagem, o calor excessivo, a presença de

mosquitos, a ocorrência de febres tornavam “a perspectiva de uma longa residência” na região para Wells “nada alvissareira”405. Pronto o acampamento, Wells logo terá a oportunidade de verificar outros incômodos como a necessidade de “trabalhar sobre uma mesa mal iluminada pela chama tremeluzente do pavio grosseiro do lampião rústico de óleo de mamona” e o operação de uma fábrica destas e outras partes, ainda mais vantajosas, do interior do Brasil, e, deixando uma margem para todas as contingências adversas, os resultados mostraram não apenas um possível, mas um provável lucro de 40 a 50 por cento ao ano. Naquela época não havia mais de meia dúzia de tecelagens industriais no Brasil inteiro (agora há 62) e todas são prósperas, especialmente as do interior, onde a matéria- prima pode ser adquirida por preço mais baixo e o produto vendido por um preço melhor do que na costa, sem falar da mão-de-obra mais barata do interior.” N. A. WELLS, 1995, v. 1, p. 181.

401 WELLS, 1995, v. 1, p. 181. 402 WELLS, 1995, v. 1, p. 183. 403 WELLS, 1995, v. 1, p. 215. 404 WELLS, 1995, v.1, p. 218 405 WELLS, 1995, v.1, p.218

assalto da paz pela “nuvens de mosquitos, entoando uma canção furiosa em volta de sua cabeça, picando mãos, pernas, rosto, pescoço, atravessando com suas verrumas os panos ou roupas de flanela”, ou “a quantidade de gado que se juntava em volta da cabana à noite, mugindo, esfregando-se contra as quinas das paredes, e destruindo continuamente o teto de sapé”, obrigando a construir “uma cerca em volta da cabana” e, mesmo assim ter de “suportar os berros e concertos noturnos”406.

Sobre os sertanejos aí encontrados, informa-nos Wells:

Não existe indigência absoluta (o que é praticamente impossível) mas todas as pessoas são muito pobres, e com dificuldades obtêm meios suficientes para adquirir aqueles itens que suas terras não produzem. A região é tão generosamente dotada de vales úmidos e florestas e de rios que, não importa quão seca seja a estação, pode-se sempre encontrar pasto, e a agricultura floresce. A causa da pobreza vem do próprio povo, que por gerações de vidas não teve qualquer estímulo ao trabalho regular e, como todos produzem as mesmas coisas, sabem que, se a demanda dos pequenos mercados locais for ultrapassada, os preços não serão compensadores. Se a estação não foi boa, aqueles que por sorte têm algum excedente do qual dispor são recompensados por preços altos; se foi boa, eles acumulam estoques para a estação seguinte de feijões, milho, farinha, etc., mas recebem pouca compensação por seu excedente quando todos estão nas mesmas condições, e não precisam comprar ou permutar. Uma ferrovia seria um grande benefício para eles, mas eles não podem (a menos que ocorra a imigração) pagar pelas despesas de mão de obra com sua produção coletiva. São, regra geral, pessoas calmas e inofensivas, hospitaleiras para com o estranho, que é bem-vindo à acomodação e alimentação rudes que suas casas pobres podem fornecer. São bons para suas famílias, especialmente os velhos, mas as crianças crescem selvagens, mimadas e sem qualquer bom preceito moral. Os meninos seguem o exemplo de seus pais, e as meninas o de suas mães, e assim, geração após geração se passa sem que se adquiram novas idéias de progresso, e ouve-se por toda parte a resposta invariável a qualquer sugestão de inovação ou melhoria: ‘Não estamos acostumados’ 407.

Inscrito na ordem da indefectível ambivalência, seu discurso – por maior que seja o esforço de “estruturação/ordenação” do narrador – apenas tornará mais evidente a sua pouca consciência sobre os desvios que ocorrem em seu discurso colonizador. Afinal, “a ambivalência confunde o cálculo dos eventos e a relevância dos padrões de ação memorizados”408. Se “classificar consiste no ato de incluir e excluir” entidades e se há “entidades” que “não enviam sinais legíveis para a ação ou enviam sinais que confundem os receptores por serem mutuamente contraditórios” é justamente na indecidibilidade sobre o que incluir ou excluir que a coerção do ato classificatório se mostra insuficiente.

406 WELLS, 1995, v.1, p. 218-219 407 WELLS, 1995, v. 1, p. 236. 408 BAUMAN, 1999, p. 10.

Conforme já relembrara Bauman, o “principal sintoma de desordem [da desordem específica da linguagem, em que a ambivalência se constitui] é o agudo desconforto que sentimos quando somos incapazes de ler adequadamente a situação e optar entre ações alternativas” 409. A ambivalência só é entendida como desordem por pressupor profunda ansiedade e indecisão que nos acomete, tirando do eixo nossas ideias, em virtude de não sabermos como nomear ou classificar algo, alguém, alguma situação. No caso de Wells, parece-nos que ela se manifesta por escapar-lhe a capacidade em fixar definitivamente a imagem do sertanejo brasileiro conferindo-lhe um estereótipo capaz de tornar seu discurso linear – e não tortuoso, cheio de idas e voltas, como se torna o seu. Desenredado o discurso, Wells parece ignorar como “ir adiante” 410, uma vez que as situações de interação com os sertanejos, sobretudo em Minas Gerais, que lhe sobrevêm, não são conforme a qualquer modelo; ele não pode se basear no sucesso ou no fracasso de suas relações passadas com tais sertanejos para calcular “com toda certeza” 411 que a imagem que atribui a um sertanejo poderá, sem problemas, ser atribuída a outro que encontra adiante.

409 BAUMAN, 1999, p. 9. 410 BAUMAN, 1999, p. 9. 411 BAUMAN, 1999, p. 9.

C

APÍTULO

III

A CARNAVALIZAÇÃO, A FAZENDA SEMPRE-VERDE,