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Durante o período que esteve na IRFM legalmente (11/10/1950 a 19/09/1952), Nery precisou ir ao médico algumas vezes: tomou remédios, guardou as receitas, mas seu quadro de saúde se agravava117. Em função das condições do trabalho na fábrica, e do fato de se alimentar mal segundo registro em seu diário de 1963, ela contrai tuberculose e é internada

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É Angela Davis (2017: 236) quem assinala que isso ocorre porque o “(...) empregador não está minimamente preocupado com o modo como a força de trabalho é produzida e mantida, ele só preocupa com sua disponibilidade e capacidade de gerar lucro”.

117 Em 06/08/52, portanto, próximo ao seu desligamento, um médico das Indústrias Reunidas Francisco

Matarazzo prescreveu Rino-sinus remédio para narina e monocilina de uso intramuscular e que devia ser tomado na forma de injeções. Aproveito essa nota para mencionar a sucessiva presença de documentos médicos ou registros sobre o estado de saúde não apenas de Nery, mas de Alice e de um certo Angelo Meloni – médico que acometido por câncer datilografa uma carta de despedida de seus parentes em 1959. Os registros mais antigos são aqueles ligados à IRFM seguidos dos documentos de Alice – registros de seu estado de saúde em cartas, e esporadicamente no diário de 1952 e anotações no caderno de 1946, além de uma carta datiloscrita de 1956 para a Cia de Revistas e Comédias Benjamin de Oliveira pedindo mais tempo para se recuperar de tratamento médico. Alguns exames – sangue, urina – e receitas médicas aparecem, em especial durante a gestação de primeiro filho de Nery que nasceu natimorto em 1965. No momento em que entra no Serviço Social da Indústria (SESI), ela não apenas faz os exames admissionais, como em diferentes ocasiões realiza consultas, faz exames, compra remédios. Com o nascimento e crescimento de Greissy, ela acumula nova documentação. Nos dois últimos anos de vida depois de ter passado por uma cirurgia, em função da diabetes que a obrigou a cortar um dos pés em seguida parte da perna, e necessitando de cuidados em casa de uma cuidadora, Greissy preparou uma agenda que era preenchida pela cuidadora e por ela mesma (Greissy) com todos os horários, alimentos e remédios consumidos. Durante os períodos em que esteve internada senão toda, grande parte da documentação foi arquivada formando uma espécie de prontuário altamente revelador das relações entre corpo, envelhecimento e doença que poderão inspirar pesquisas em torno da antropologia da doença, do corpo, do envelhecimento. Meu interesse nesse assunto foi despertado principalmente pela leitura de um texto de Anne Marie Mol (2004), que auxiliam a refletir sobre a relação entre pessoa, corpo, doença, processos de subjetivação, e principalmente, sobre a produção de uma consciência sobre a própria doença.

em Campos do Jordão por um ano: 1953 a 1954, no CLUBE FEMININO “S2”, ou Sanatorinhos 2, por intermédio da Associação dos Sanatórios Populares “Campos do Jordão” de Combate à Tuberculose” (figura 17). Segundo a própria Nery, ela ficara doente porque por “preguiça ou vaidade não carregava marmita”, além de não se agasalhar no frio e mesmo ficar descalça118.

Ao se culpabilizar pela doença, ela talvez desconhecesse o fato que muitas operárias e operários foram acometidos de tuberculose por problemas de ambiente insalubre e má alimentação (Nogueira 1945; Perrot 2010: 123)119. Morando há tão pouco tempo na capital e deslumbrada com as possibilidades da vida cultural e com os novos hábitos que passara a ter - tirar as próprias fotografias (e ser fotografada), ir ao cinema, fazer teatro etc., ela retorna desolada ao interior do estado, dirigindo-se para aquela que foi uma das mais famosas cidades brasileiras no combate a doenças pulmonares e respiratórias120. Em seu pequeno diário de 1953, ela registra a chegada ao Sanatório:

Cheguei as nove e meia fiquei meia hora na sala de espera depois dessi Alice arrumou minhas coisas eu fui tomar banho au sair do banho estavão todos a minha espera para irem em bora ninguém pode imaginar o meu sofrimento au abraçar minha irmã e pençar que iria ficar quanto tempo meu Deus, depois que ela se foi medetei logo após veio o almosso, almosei muito bem depois fui reposar das 1 as 3 depois lanchei. as 6 horas desi para o jantar121.

Registrar pela escrita, mesmo que não sistematicamente, o período de internamento em Campos do Jordão, foi comum a muitos pacientes alfabetizados, mostrou Oracy Nogueira, que recolheu diversos diários íntimos em seu estudo do tuberculoso pulmonar (Nogueira, 2010). A relativa segregação de Nery em uma cidade pequena se dá paralelamente ao deslocamento da família para um novo endereço, localizado em um bairro que, segundo Alice, era “um lugar esquecido por Deus”, expressão que define bem sua frustração com a falta de infraestrutura urbana da nova localidade122.

118Caderno de anotações de Nery 1963. 119

Em 1952, o presidente do Sindicato dos trabalhadores na Indústria de Fiação e Tecelagem relacionou a questão racial ao subemprego; as condições ambientais nas fábricas, diz ele, propiciariam o aparecimento de doenças. Última Hora, Ano I, São Paulo 13 de junho de 1952.

120 Com a aposentadoria, Nery voltará a Campos do Jordão a passeio junto ao grupo Mariama em 1999. 121 Diário de Campos do Jordão, 03. 3/01/1953.

Nesse período de um ano, Alice escreveu quinze cartas a Nery, que não respondeu com a mesma rapidez. Quando escrevia, porém, suas cartas demoravam a chegar em virtude dos problemas já apontados de infraestrutura urbana, como o correio. Maria Helena em resposta a uma carta de Nery diz:

(...) recebi sua carta do dia das mães dia 28, as cartas chegam aqui muito atrazadas (...) filha quando você nos escrever continua mandando para o endereço do Charlhe porque neste correio daqui da água raza são muito vagabundo, as cartas ficam preza ai toda vida para depois darem saída”123

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Nessa mesma carta, Maria Helena desculpa-se por não conseguir atender a alguns pedidos de Nery, como, por exemplo o envio de uma lata de Ovomaltine124. Talvez seu desejo de consumir esse produto fosse uma reação à alimentação que vinha recebendo das freiras. Em uma das poucas respostas suas que foi conservada no ANR, Nery comenta:

Querida você perguntou como esta isso aqui com as irmãs esta simplesmente horrível principalmente a alimentação, tem dia que o arroz vem tão duro que quebra nos dentes mas como nossa ingrata moléstia nesecita de alimento tem que desser assim mesmo e holhe la125.

Saber escrever dava a elas a possibilidade de se manterem próximas, de poderem exprimir opiniões, fazer críticas às condições impostas pela realidade da doença, da distância, da falta de infraestrutura urbana, das relações amorosas e dos conflitos, neste caso vividos por Alice. Em janeiro de 1954, após um ano de cuidados e auxílio de pessoas como a mãe, a irmã e o líder umbandista Pai Jau, Nery recebe alta e volta a morar com Maria Helena, Alice e Jackson. Integrada à família que foi expulsa do centro da cidade pelo aumento do custo de vida, Nery voltará à região, mas agora para trabalhar no setor terciário, onde atua como vendedora no comércio de roupas.

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Carta de Maria Helena para Nery, 3/5/1953.

124 Mesmo que houvesse condições financeiras para atender certos pedidos, a explicação de Alice vai noutra

direção: “Nery nós procuramos em todas as drograrias, farmácia, Drogadada e não achamos Ovomaltine, dizem que a muito não vem esse produto”, 3/2/1953.

Figura 17: Acima recibo de pagamento da internação realizado por Euclides Barbosa (Pai Jau) em nome de Nery; abaixo Nery em dois momentos, quando engordou em função dos repousos a que era

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