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O que causa surpresa. Passando pelo corredor entre os pátios, em meio à profusão de mãos e de solicitações pelas frestas das grades, um pedido tocou-me mais que os outros: “libera meu Mirabel.” Potência do grito, grito que (di)fere. O pedido, tento traduzir, pede por biscoitos que a família provavelmente costuma trazer ao interno (ou que o interno pede para comprar com o dinheiro que arrecada trabalhando no HCTP ou enviado por seus familiares). Mas ele os pede pela marca que não existe mais, que nos idos de 1980 era sinônimo de biscoito tipo waffer. Identifico- me. “Mirabel” captura-me, lança-me de volta à infância. À minha, à dele não sei, a este alimento infantil de “fazer agrado”. “Sempre serei criança para muitas coisas”, diria Cortázar (2008, p. 34). Em meu nome acrescento: Mirabel é infância.

Lugar da singularidade insubstituível e do referencial único, o punctum irradia e, isto é o que mais surpreende, se presta a metonímia. Assim, quando se deixa arrastar aos relevos substitutivos, pode invadir tudo: objetos e afetos. Este singular que não se encontra em

parte alguma dentro do campo, mobiliza tudo e por todas as partes, pluraliza (DERRIDA, 2008b, p. 316).

Em meio ao amontoado, ao studium, sou atingida: punctum. Sou atravessada por aquilo que se quer em mim. Mirabel, comida, infância, a vó, a visita à cadeia, o que pode invadir tudo. A tese que me acompanha.

Voltar ao HCTP depois de dois anos (distância cronológica entre uma pesquisa de campo e outra). O que (ainda) poderia (me) acontecer? Mais que uma tentativa de acolhida aos testemunhos (tarefa primeira na pesquisa anterior), agora, tentativa, aposta!, de ir além dos testemunhos “de dentro” (superstes), daquele que viveu algo e pode, assim, dar seu testemunho (AGAMBEN, 2008a). O testemunho e mais, o testemunho e o resto, o testemunho-superstes e também o testemunho-testis, “de fora”. Eu dando “minha versão dos fatos”, a leitura (a mim) possível. No entre, no encontro, à procura de vaga-lumes (que podem acender, mas também podem apagar), de vislumbres de singularizações – potentes, descontínuas. Outras. Aposta no que escapa, no que acontece – nos acontecimentos.

[...] o acontecimento não é nem substância nem acidente, nem qualidade, nem processo; o acontecimento não é da ordem dos corpos. Entretanto, ele não é imaterial; é sempre no âmbito da materialidade que ele se efetiva, que é efeito; ele possui seu lugar e consiste na relação; coexistência, dispersão, recorte, acumulação, seleção de objetos materiais; não é o ato nem a propriedade de um corpo; produz-se como efeito de e em uma dispersão material (FOUCAULT, 1999a, p. 57).

***

Para além da concepção de doença, tão corriqueira no saber moderno, Francisco Martins nos mostra, em Psicopathologia I: prolegômenos (2005), que pathos também pode ser entendido como uma disposição afetiva fundamental, uma disposição (Stimmung) que atravessa todas as dimensões humanas. Pathos como o que nos faz sofrer (páskhein) é uma das

acepções possíveis e parece estar muito de acordo com tempos em que se desejam verdades e certezas. Esse parece ser o único sentido adotado e valorizado na modernidade e parece ter bastante aplicação na linha criada para separar saúde e doença. Enfim, essa leitura reducionista está a serviço do pensamento moderno, organizado em binarismos: normal/anormal, sujeito/objeto, ativo/passivo, razão/pathos, pathos aqui como um malogro, um desvio da razão.

O saber científico desqualifica o conhecimento cotidiano, suspeita das experiências vividas também produtoras de saberes. A concepção de universal, que desqualifica, que não considera o singular, pode ser problematizada, arejada, quando abrimos a leitura de pathos para outros sentidos para além da noção de doença. Nas trilhas abertas por Martins (2005), saímos da estrada reta que leva ao sentido de pathos somente como doença, e concebemos pathos

como condição anímico-existencial e aquilo que constitui estruturalmente o sujeito, seu modo de ser, momentâneo, duradouro ou permanente. Existir é viver, assim, uma forma de pathos. É realizar de fato o pathos, colocando-o não mais como disposição possível, mas como efetividade (MARTINS, 2005, p. 37).

Nas palavras do autor “[...] pathos está na essência mesma do ser humano e não só na excepcionalidade do adoecer” (MARTINS, 2005, p. 48). Ó a surpresa aí, o espanto com a abertura, com as frestas do conceito – que diz de uma beleza, de uma poesia até.

Heidegger debruçou-se sobre o sentido de pathos, segundo MARTINS (2005), entendendo-o como parte da dimensão filosófica do homem. Nas obras de Platão e Aristóteles, pathos aparece como espanto – o que fundamenta o filosofar, o ato ou efeito de espantar-se (thaumázein). É pathético aquilo que comove, que espanta, que afeta. O pensamento moderno organiza-se nas certezas, não mais no espanto.

Talvez aqui (se não sempre), a literatura me dê algum suporte. Pensemos espanto (filosófico) como a excentricidade cortaziana:

O homem do nosso tempo acredita facilmente que sua informação filosófica e histórica o salva do realismo ingênuo. [...] Cada vez que pensa metafisicamente se sente “mais triste e mais sábio”, porém sua admissão é momentânea e excepcional, ao passo que o contínuo da vida o instala por inteiro na aparência, concretizando-o em torno dele e vestindo-o de definições, funções e valores. Esse homem é um ingênuo realista mais do que um realista ingênuo. Basta observar seu comportamento diante do excepcional, do insólito; ou reduz a fenômeno estético ou poético (“era uma coisa realmente surreal”) ou desiste logo de indagar na entrevisão proporcionada por um sonho, um ato falho, uma associação verbal ou causal fora do comum, uma coincidência perturbadora, qualquer das fraturas instantâneas do contínuo (CORTÁZAR, 2008, p. 35).

Gosto do espanto, das fraturas no contínuo. Gosto de quando lugares identitários são postos à prova, desafiados. E tratando-se de um manicômio (coisa que um HCTP também é), gosto de quando o sistema binário loucura/razão é, se não ampliado, ao menos sacudido.

Em certa ocasião no HCTP, a porta que dá para o refeitório, onde reuniões e assembleias são realizadas, não estava fechando direito. Aberta, deixava o barulho de fora entrar e deixava que o sigilo acordado entre os participantes do grupo escapasse. Fechada não ficava, batia. Nenhum dos “normais” resolveu a situação, ora porta aberta, ora porta batendo – embora nos olhássemos irritados, meio sem saber o que fazer a cada batida de porta ou a cada interno que entrava e tentava fechá-la sem sucesso. Felizmente havia um “louco” entre nós, lógico e racional, que, em um movimento preciso, tirou seu chinelo e fez dele calço para porta, que ficou, finalmente, fechada e sem bater.

Surpreendente, espantoso. Ao final de minha graduação em Psicologia, eu realizei uma pesquisa bibliográfica sobre os manicômios judiciários, Hospital de custódia e tratamento psiquiátrico: estudo exploratório sobre “o pior do pior” (2009). Os materiais estudados sobre essa instituição fizeram-me adotar

parte do título de uma antiga campanha do Conselho Federal de Psicologia, que chamava os manicômios judiciários de “pior do pior”: o pior do hospício, da prisão, da violência, da exclusão. Então, durante a pesquisa de mestrado, quando comecei a frequentar um HCTP, já esperava encontrar uma espécie de casa dos mortos. E assim o foi. Nesses poucos meses de circulação por esse espaço, era surpreendente e espantoso para mim não somente que pessoas vivessem naquelas condições de privações de várias ordens – materiais, físicas, afetivas – mas que, ainda assim, pudessem encontrar brechas, cortes, saídas. Espanto!

Em meio à massa, à tentativa de um agrupamento identitário universal, ao aniquilamento de singularidades, algo, por vezes, tomava-me, surpreendia-me, espantava-me: tal como a cela com fotos da atriz Guilhermina Guinle meticulosamente organizadas. (Por que Guilhermina? Como se ele não pudesse ter uma preferência. É só mais um, não poderia ser qualquer recorte de revista? Que diferença faria naquele inferno?)

As dificuldades todas, os trâmites todos para conseguir autorização para as duas pesquisas de campo que realizei dentro do HCTP, fizeram-me de imediato responder “não, não” quando, entre idas-e-vindas em busca da autorização, ouvi a pergunta (que era puramente retórica): “mas você não vai trabalhar com foto, né?”. Trabalhar com fotografias feitas no interior do hospital de custódia (feitas por mim ou pelos internos) não estava posto no meu horizonte inicial de possibilidades metodológicas, e diante da dificuldade em conseguir a autorização para realizar a pesquisa de campo (para o doutorado) junto com a pergunta-afirmação sobre o (não) uso de fotos, ainda menos se colocou como questão para mim para este trabalho. Mas quando vi o cubículo de um dos internos com boa parte das paredes (hoje já não lembro mais se as duas ou três a que minha visão tinha acesso vendo da janelinha na porta da cela) recobertas (decoradas?) com receitas médicas intercaladas com recortes de revista sempre da mesma atriz, senti falta do recurso fotográfico. Sinto agora: minha tentativa de descrição do que vi poderia ser auxiliada por tal registro.

A proposta para o trabalho que ora se apresenta era dar lugar para o espanto, para aquilo que me tomou de assalto, que me afetou, durante minhas idas a um HCTP. Que cela essa potente, singularmente potente!

Não se trata, bem entendido, nem da sucessão dos instantes do tempo, nem da pluralidade de posições e de funções possíveis. Tal descontinuidade golpeia e invalida as menores unidades tradicionalmente reconhecidas ou as mais facilmente contestadas: o instante e o sujeito. E, por debaixo deles, independentemente deles, é preciso conceber entre essas séries descontínuas relações que não são da ordem da sucessão (ou da simultaneidade) em uma (ou várias) consciência (FOUCAULT, 1999a, p. 58).

Interessava-me o escape, a tentativa de reconhecer o singular, o descontínuo, o detalhe, aquilo que acontecia. Em meu nome, aqui, tento contar (embora o dizer nunca dê conta) daquilo que foram (e ainda, sempre, ecoam) esses encontros.

***

“Em meu nome, acrescentarei.”, escreveu Derrida (2008b, p. 275) em seu ensaio sobre Barthes, ao estudar a composição entre punctum e studium – par esse que aparentemente está em oposição. Mas há uma dança possível entre os termos. Punctum, lugar da singularidade. “Porém, é sempre a singularidade do outro, lugar que incide em mim sem dirigir-se a mim, sem que esteja presente em mim e o outro possa ser eu [...].” (DERRIDA, 2008b, p. 275). Possibilidade de habitar o entre. O raio luminoso do possível.

Ainda sobre as diversas compreensões encontradas para singularidade: na cosmologia, é “o ponto no qual nossos cálculos comuns fracassam porque certas quantidades físicas se tornam infinitas” (BLACKBURN, 1997, p. 362). Os cálculos comuns que encerram os internos dos HCTPs na periculosidade perene que lhes é atribuída, que o reduzem a seu ato infrator – como um dos internos que entrevistei, que muitos anos depois do crime cometido ainda tem como apelido o objeto que utilizou para matar um familiar –, não contemplam as infinitas possibilidades, potencialidades, que acompanham cada um de nós.

Fui ferida, pungida, em meio aos horrores-studium, pelas saídas, possíveis saídas. (E se as são, são para quem as fez ou

para quem as viu? Existe uma linha clara que divide um do outro?) Studium e punctum. O “fora do campo” compõe com o “sempre codificado”. O ponto cego do HCTP. Nas palavras de Derrida (2008b, p. 280): “Pertence-lhe sem pertencer-lhe, é impossível de ser localizado, não se inscreve jamais na objetividade homogênea de seu espaço enquadrado, porém, o habita, ou melhor, o assedia [...].”

Tocaram-me (touchée!) a confecção de um cartaz carinhoso para o dia dos professores, a arrumação esmerada das roupas na lavanderia, as decorações peculiares de algumas celas, um jeito único de encerar o chão, a teoria de que Marte é o céu (uma vez que o inferno já é aqui) posta em um livro ilustrado (cujo autor é analfabeto). Um dos internos criou para si uma peça de uniforme exclusiva: colete laranja. O número segue lá, estampado, como marca – mas algo escapa. Recebi e fui recebida por essas imagens – e pelo que escapava delas. Encontros. Com. “[U]ma hospitalidade inventada pela singularidade do que chega [...].” (DERRIDA, 2003, p. 75).

Formas muitas, criativas, singulares, descontínuas, possíveis – como Almerindo que não quer feijão – de ser único (ainda que atravessado por um universal que nos perpassa a todos), de sair da mesmidade. “A gente tem que inventar moda [que ele não soube – ou não quis – me dizer qual] pra passar o tempo aqui, senão pira”, disse-me Paulo, que está no HCTP “há anos” por ter sido considerado “pirado” (seu temor) e por ter “roubado umas coisa.” Inventar moda, escapar, sair da repetição, das normatizações, encontrar um jeito ainda possível de singularizar-se, de abertura ao descontínuo, de fazer marca, de não pirar. Punctum.

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