• Nenhum resultado encontrado

Quando pensamos em uma escola que “brinca”, supomos imediatamente que a escola alcançou, no amadurecimento emocional, a possibilidade de se adaptar a falhas e a recuperar a continuidade de ser (mesmo com interrupções momentâneas por intrusões). Assim, a escola pode prosseguir em direção à independência, à capacidade de se sustentar por si. Nesse cenário, predomina o impulso criativo, que resulta do gesto espontâneo e que coloca em transição o paradoxo de criar e encontrar a realidade. Infelizmente, nem todas as escolas conseguem se desenvolver desse modo. Um dos indícios da incapacidade da escola de brincar é o discurso de que, diante de dificuldades de determinados alunos, não há nada a fazer, pois não cabe à escola suprir o que lhes falta, o que, precisamente, devia estar desenvolvido, amadurecido quando do ingresso do aluno na instituição.

Os problemas sociais são reais intrusões à estrutura das instituições escolares. Atualmente, as intrusões podem provocar colapsos profundos. A intrusão, no entanto, faz parte do estar vivo e da cultura humana, e, a despeito dos colapsos que possa causar, é preciso buscar modos de lidar com ela, visando à continuidade da integração. A escola lida com diferentes intrusões, mas, quanto a alunos que não conseguem se sair bem, a escola está enfrentando dificuldades por recorrer a recursos de um falso self, ou seja, de um estado emocional vulnerável a agonias inimagináveis, como a desintegração. Percebemos isso quando a instituição se nega a buscar uma saída voltada ao acolhimento, a relações humanas confiáveis, ao fornecimento de provisões às necessidades emocionais humanas menos dependentes da lógica do funcionamento intelectual. Quando não brinca, a escola impede que a criança brinque, impede que o brincar seja reconhecido como atividade essencial do viver. A escola desconsidera a importância do ser na identidade, e valoriza unicamente o fazer. Portanto, quando brinca, na verdade não está brincando, mas querendo “ensinar brincando”.

Ferenczi (2011), no artigo “Confusão de língua entre os adultos e a criança”, discute como, muitas vezes, para satisfazer um desejo, o adulto não considera a subjetividade infantil, o que causa a substituição da linguagem da ternura pela linguagem da paixão. O adulto age de modo hipócrita, sem considerar os traumas que sua atitude

impõe à criança. Ferenczi fala do abuso de crianças por adultos, mas podemos usar a metáfora da “confusão de línguas” para descrever outros modos de violência contra as crianças.

Um exemplo da confusão de línguas na escola: quando as políticas educacionais condicionam o valor da remuneração dos professores a números alcançados pelos alunos em provas, sem valorizar o acolhimento ao aluno que não consegue ter bons resultados, sem prever, frente ao mau resultado, medidas para o desenvolvimento integral daquele aluno, principalmente quando ele evidencia ter sofrido catástrofes psíquicas (BION, 1975) sem o suporte para lidar com elas (RUSTIN, 2001). Essa política educacional praticamente aniquila a possibilidade do que Winnicott (1975) considerava fundamental no encontro entre um adulto e uma criança: a capacidade de acolher, ou, na linguagem da criança, de brincar.

Para Safra (1999), quando se coloca uma caixa de ludo diante de uma criança, primeiramente é preciso observar se ela pode brincar, se existe a possibilidade de ela criar algo ali, com aqueles brinquedos. Para que a criança “possa escolher um objeto, possa pegar um objeto que lhe é oferecido, ela precisa ter o gesto espontâneo” (SAFRA, 1999, vídeo-aula), pela emergência do impulso criativo. É por isso que Winnicott diz que, se a criança não brinca, antes de trabalhar com ela, o adulto a seu lado precisa possibilitar que ela chegue à capacidade de brincar; precisa acompanhá-la o suficiente para que os objetos do mundo possam ser criados por um gesto constitutivo seu.

Archangelo (2007) propõe o processo de parroting19. Diante da incapacidade de

aprender, o professor pode recolher os fragmentos de experiência da criança, reapresentando-os com algum senso de unidade, para que ela o apreenda como algo mais do que pedaços dispersos e sem sentido. O parroting envolve o “estar com” a criança, o “fazer com” ela, mas também o “fazer por” ela nas ocasiões em que só sobram cacos ou um vazio de sua experiência. Na sala de aula, isso significa que o professor não deverá abandonar o aluno diante de suas atividades, mas ajudá-lo a fazer e, em determinados momentos, até fazer por ele, para que o aluno possa ver sua dificuldade reconhecida e legitimada. Assim, uma produção que pertence a si ganha forma pelas mãos do professor.

Acredito que a escola também possa propiciar um espaço para o brincar. Ela deve se preocupar com a criança que não consegue brincar nem aprender, e, mais amplamente, deve oferecer uma atividade que estrutura o desenvolvimento cognitivo e o bem estar psíquico das crianças, o brincar. O brincar desenvolve o sentimento de pertença, pois possibilita à criança fazer algo que não seja apenas da ordem da produção, da demonstração de resultados esperados, mas um fazer da ordem do existir, um fazer no interior do qual se descobre a capacidade para criar, para machucar, para restaurar danos causados. O brincar aparece como algo possível de ser realizado. Mesmo que, no ensino fundamental, espera-se que as realizações sejam especializadas e aperfeiçoadas, seu cenário ainda é constitutivo da infância, ou seja, de um período do qual faz parte o brincar. Ainda que o brincar, à primeira vista, seja visto como inútil aos fins da instituição escolar, a atividade pode portar qualidades inestimáveis: retroalimentar o desenvolvimento emocional e intelectual que já esteja em curso favorável, ou retomar o desenvolvimento emocional estancado, que impeça o bom funcionamento do intelecto.

À medida que a escola oferecer um ambiente para brincar, um meio no qual o holding possa se desenrolar, poderá suprir, enquanto instituição social de educação, o holding que a instituição familiar eventualmente falhou em prover20. Pela intervenção de um adulto que conheça a dinâmica do desenvolvimento emocional, os processos de maturação e as provisões ambientais necessárias, a escola pode oferecer condições para que a linguagem da criança flua e seja parte significativa do processo de ensino-aprendizagem.

Documentos relacionados