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Escola Rural na primeira metade do século XX: inferioridade e especificidade a

Nos estudos históricos por nós realizados no processo de produção desta dissertação — através da análise de fontes documentais reguladoras do ensino em Sergipe na primeira metade do Século XX —, identificamos um cenário marcado pelo abandono, por dificuldades de gestão financeira e pelo contraste entre a educação ministrada nas vilas e cidades daquela oferecida nos povoados rurais. Constatamos que antes do surgimento do termo “escola rural” na legislação do Estado, em 1924, já havia uma diferenciação entre a educação ofertada aos moradores da zona urbana e da zona rural, apontando uma inferioridade neste segundo espaço em face ao projeto de desenvolvimento urbanocêntrico que priorizou os Grupos Escolares desde 191116 (SERGIPE, 1911a).

Assim, o termo “Escola Rural” aparece pela primeira vez em Sergipe com a reforma da “Instrução de 1924”, inscrita no Artigo 185 (SERGIPE, 1929), sendo determinada como aquela que é oferecida nos povoados sergipanos. Este documento acaba legitimando uma diferenciação pautada na inferioridade das escolas rurais, já que as mesmas, ao serem denominadas de “primeira entrância”, deveriam ministrar apenas o ensino elementar de três anos e não o curso completo, elementar e superior, como as demais escolas localizadas nas vilas e sedes das cidades.

16 Referente à distinção entre o tipo educação oferecida na zona rural e na urbana, consideramos que se consumou

através da instalação e expansão dos Grupos Escolares no Estado, considerados templos do saber, dotados dos ideais republicanos modernos e democráticos com estrutura física e pessoal qualificado, mas se restringiram aos espaços urbanos, aparecendo no regulamento de 1911 como instituições a serem implantadas na capital e cidades, preferencialmente onde oferecessem prédio adaptado e tivessem matrículas altas (SERGIPE, 1911a).

Podemos considerar que este relegar da Escola Rural em Sergipe a planos inferiores ao longo da primeira metade do século XX esteve intimamente ligado ao cenário histórico de escravização humana por mais de três séculos, à concentração de terras e riquezas desde a colonização do país e ao foco produtivo capitalista através das monoculturas para exportação17.

Estas características, segundo Sud Mennucci (1930, p. 23), criaram repugnância pelas labutas rurais, reduzidas ao primitivismo educativo compatível com as mesmas. Ao mesmo tempo em que se priorizava a educação nas cidades, foi-se engendrando a necessidade de um campo produtor de matéria prima, que muito se ampliou a partir da década de 1930 por conta do contexto de substituição das exportações. Este contexto visou atender às demandas de subsistência e de produção de matéria prima para indústria nacional (FEITOSA, 2006, p. 93).

Dessa forma, um novo homem para este campo se fez necessário e ao longo dos anos os governos tentaram equacionar estas demandas a favor do capital, demonstrando certa preocupação com a escola rural à medida que a discussão acerca de um currículo diferenciado para a mesma ganhava expressividade. Tal diferenciação foi trazida através de uma corrente denominada Ruralismo Pedagógico18, exigida tanto pela necessidade do aumento na produção

das monoculturas quanto pelo alto número de analfabetos no campo que estavam migrando aceleradamente para as cidades e causando inchaço nas mesmas (RIBEIRO, 2013, p. 173).

Em seus desdobramentos notamos que o Ruralismo Pedagógico se fez presente em discursos governamentais, decretos e relatórios da Instrução Pública Estadual19 desde o início

do século XX, denotando que os dirigentes visavam que a escola rural estivesse a serviço de um ideário de desenvolvimento econômico agrário pautado na fixação do homem no campo e em uma maior produtividade agrícola. Esta pretensão foi visualizada de forma mais concreta a partir da instalação de 218 escolas específicas rurais20 no Estado como ação da política pública

17 A história agrária do Brasil nos conduz a uma análise de que sempre estivemos voltados à produção por meio

da monocultura exportadora, a saber: cana-de-açúcar, o café, soja, eucalipto, entre outras.

18 Foi uma corrente difundida desde o início do século XX que “resumidamente consistia na defesa de uma escola

adaptada e sempre referida aos interesses e necessidades hegemônicas no setor rural” (PRADO, 2000, p. 50), sendo caracterizada como um projeto de educação voltado para um público específico, defendendo professores, escola e currículo diferenciados dos urbanos, num viés que compreendemos como utilitarista para o campo.

19 Encontramos indícios de pensamentos ruralistas: na Reforma do Ensino de 1924; em relatórios emitidos pelo

diretor da instrução pública e normal de Sergipe, Helvécio de Andrade, em 1931; nas mensagens discursadas pelo governador José Rollemberg Leite à Assembleia Legislativa em 1948, 1949 e 1950. Sobre estas análises, ler “Ruralismo Pedagógico em Sergipe: Reflexões sobre a concepção de educação rural presente no primeiro mandato do governador José Rollemberg Leite (1947-1951)” (CORREIA, 2018), de nossa autoria.

20 As escolas específicas rurais diferenciavam-se das escolas isoladas pelo mote rural, ou seja, “pela direção dada

ao ensino incluída no programa, a requisição de prédio padronizado abarcando residência para o professor, além de terreno para prática de atividades agrícola” (MESQUITA; SILVA, 2016, p. 31).

no âmbito federal e local21, durante o primeiro mandato do Governador do Estado José

Rollemberg Leite (1947-1951).

Este viés utilitarista descaracterizou o trabalho camponês em detrimento da busca patronal por mais valia, alienando-o e demarcando a concepção liberal nos processos educativos das escolas rurais. Santos (2013, p. 125) considera que quando se apresenta o trabalho e o desenvolvimento como categorias fundantes, acaba-se por caracterizar o trabalho como simples gerador de capital, e as pessoas como meio de atender ao mercado de trabalho. Desta forma a escola passa a ser um mero instrumento de preparação do indivíduo para tais interesses.

Assim, a partir de 1930 delineamos a notória intenção do projeto capitalista de modernização agrícola para a escola rural22. Ribeiro (2013) contribui nesta compreensão

considerando que a intencionalidade seria formar uma força de trabalho disciplinada e, ao mesmo tempo, consumidores dos produtos agropecuários para controle das pragas, adubação do solo e maquinarias agrícolas que começavam a adentrar no mercado nacional por meio da ação dos Estados Unidos e dos diversos acordoscom o governo brasileiro nas décadas de 1940 e 1950, com foco na Educação Rural e acompanhada de Assistência Técnica e Crédito Rural. Podemos citar a criação em 1947 da Comissão Brasileiro-Americana de Educação das Populações Rurais (CBAR), a Campanha Nacional de Educação Rural em 1952, a Campanha Nacional de Alfabetização Rural em 1953, a fundação do Escritório Técnico de Agricultura Brasil-Estados Unidos, no ano de 1954, entre outros.

Esta propositura contribuía para “eliminação dos saberes acumulados pela experiência sobre o trabalho com a terra” (RIBEIRO, 2013, p. 171-172) e a consequente desestruturação do modo de vida dos trabalhadores do campo, bem como de seu trabalho e cultura que, segundo este modelo de “desenvolvimento”, são tidos como atrasados23.

21 Este projeto ocorreu a nível nacional “como resultado da colaboração intelectual entre INEP — representante

do Ministério da Educação — e intelectuais norte-americanos que vieram ao Brasil em regime de missões culturais” (CUNHA; MAYNARD, 2015, p. 5), baseado nos ideais do Ruralismo Pedagógico. Para um maior aprofundamento no estudo deste projeto, ler a dissertação de mestrado de Ronny Rei da Silva (2016).

22 Cabe ressaltar que a demanda capitalista para a Educação Rural antecede os anos 30, principalmente com relação

ao Ensino Agrícola. Para aprofundamento, leia A regeneração da infância pobre sergipana no início do Século XX: o patronato agrícola de Sergipe e suas práticas educativas (2002), de Marco A. A. M. Nery e Memórias do aprendizado: oitenta anos de ensino agrícola (2004), de Jorge Carvalho do Nascimento. Mas é compactuado em muitos estudos que a partir desta década há uma maior atenção para a Escola Básica Rural.

23 A introjeção da ideia de que o modo de vida e produção dos moradores do campo era atrasado aconteceu em

Sergipe não só nas escolas específicas rurais e no ensino agrícola, mas também para além dos muros escolares. No jornal “A Defesa”, de 1958, encontramos a notícia da I Semana Ruralista do Estado (NETO, 1958). Segundo o jornal, o evento abarcou temas como: problemas de saúde pública; problemas agrícolas; indústrias rurais; mecanização da lavoura; adubação; pragas e doenças das plantas; crédito agrícola; extensão rural e economia doméstica. Tais temas trazem à tona que o evento também previa apoiar o projeto capitalista de modernização do campo. Notamos também nesta fonte que as Semanas Ruralistas estavam acontecendo por todo país com apoio do Serviço de Informação Agrícola (SAI). Em Sergipe também contou com protagonismo do arcebispo de Aracaju Dom Jose Vicente Távora e do Serviço de Informação Agrícola. O evento abarcou temas como: problemas de

Nesse sentido, concordamos que nas políticas educacionais rurais, redefinidas a partir dos acordos de cooperação técnica brasileiro-estadunidenses, consolidou-se uma modalidade de atuação “pedagógica”, que tornou os camponeses “prisioneiros do novo paradigma [...] através de ‘especialistas’ e ‘receituários’ de procedimentos agrícolas impostos aos trabalhadores rurais se vendia a ‘modernidade’” (MENDONÇA, 2010, p. 165). E assim se estabeleceram as condições para iniciar a chamada Revolução Verde nos anos 1960, que acreditamos ser a chave para a compreensão do avanço do capitalismo no campo e das intencionalidades do mesmo para com as escolas neste espaço.