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O que acontece em Telheiras com as escolas ilustra três afirmações que têm sido feitas neste trabalho, a saber:

1) há um «Triângulo» de território físico, correspondente à intervenção da EPUL em Telheiras, com base e na sequência do Plano de Pormenor elaborado por esta empresa pública e já anteriormente referido, entendido por alguns como o «bairro» de Telheiras;

2) para lá das fronteiras do referido «Triângulo», noutros pontos do terreno edificado, são várias as instituições, públicas e privadas que, à semelhança do que acontece com os moradores, reclamam a sua pertença a Telheiras, situando-se no território a que vem chamando «retórico»;

3) a indefinição administrativa das fronteiras do «bairro» facilita que ele se estenda por duas Juntas de Freguesia, precisamente Lumiar e Carnide.

Se não, vejamos. Dentro do «Triângulo» está todo o “Agrupamento de Escolas de Telheiras”, “ uma unidade organizacional, dotada de órgãos próprios de administração e gestão” e que “integra estabelecimentos públicos de educação pré-escolar e dos três ciclos

do ensino básico, a partir de um projecto pedagógico comum”83. O Agrupamento situa-

se integralmente na freguesia do Lumiar e é constituído pelas Escola Básica do 1.º Ciclo do Ensino Básico, N.º 57, de Lisboa e Jardim de Infância de Telheiras; Escola Básica do 1.º Ciclo do Ensino Básico e Jardim de Infância do Alto da Faia; Escola Básica dos 2.º e 3.º Ciclos do Ensino Básico de Telheiras, N.º 1, sede do Agrupamento, todas funcionando em regime diurno.

Porém, a «Escola Castanha»84, como é conhecida em Telheiras a “EB 2,3 – Nº285, de

Telheiras”, na Rua Fernando Namora, frente ao “Parque dos Príncipes”, embora integre Telheiras no nome, não faz parte do Agrupamento de Escolas de Telheiras; porém, aparece em duas Juntas de Freguesia, precisamente Carnide e Lumiar, como integrando a sua rede escolar86; teria uma identidade dividida não fora representar-se como sendo do «bairro», representação essa que exogenamente lhe é igualmente atribuída e por isso se chama “EB 2,3 – Nº2, de Telheiras”. E há mais, neste reenviar permanente da referência identitária para o «território retórico» do «bairro», para uma pertença a Telheiras, a escola “EBA Nº134, Escola Prista Monteiro”, primeiro ciclo do ensino básico mais jardim de infância, pertence claramente à Junta de Freguesia de Carnide, em

83 Conforme regulamento interno do Agrupamento de Escolas de Telheiras, em http://www.eb23-telheiras-

n1.rcts.pt/agrupamento/Regulamento%20Interno.pdf, consultado em 14.08.07.

84 A alcunha ganhou-a a escola pelo facto de ser um conjunto de pavilhões pré-fabricados. É uma escola

de Telheiras, mas ninguém a quer. É “a que está à margem” e tem “muito poucos meninos do Bairro” e muitos vindos “da outra margem, e de Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé”, como se escrevia na edição Nº1 do “Jornal de Telheiras”, em Outubro de 1999. Então, alunos conhecidos no «bairro», como o jornal também referia, só o «China», “terror das paredes sem graffitis” e os futebolistas Simão Sabrosa e Pepa.

85 É a N.2, mas a N.1 só foi construída e entrou em funcionamento quase vinte anos maistarde; até então,

a N.2 era a “escola de Telheiras”.

86 Vejam-se, a propósito, os «sítios» na NET da Junta de Freguesia do Lumiar e da Junta de Freguesia de

cujo território administrativo claramente se encontra implantada, contudo, é a própria Junta de Freguesia de Carnide que a refere como integrante do Agrupamento de Escolas S.Vicente, de Telheiras; de resto, o próprio “Bairro da Horta Nova”87 é visto como sendo Telheiras88.

Ainda no «bairro», dentro do «Triângulo», estão a Escola Alemã de Lisboa e o Colégio Planalto, estabelecimentos de ensino privados, com uma frequência selectiva a preços elevados.

▐ O Núcleo antigo de Telheiras – memórias da aldeia.

As noites de Inverno em Telheiras, doutros tempos, tornavam- se tristes e longas, a chuva e outros rigores da estação fria não permitia a convivência de vizinhos e amigos.

Assim todos nós nos resignávamos à placidez do lar89.

É assim que, quarenta anos atrás, em 1967, em A Voz da Academia, se fala de uma Telheiras já desaparecida e que “sempre foi muito pobre”90. E quem fala não o saberá decerto, mas fala de um grupo social e de um aglomerado urbano, destinado a morrer em breves anos. Foi também essa morte anunciada, presenciada, que permitiu aos que chegavam ao novo «bairro» a sua idealização do passado, confluindo na representação de Telheiras como uma aldeia às portas de Lisboa, uma “aldeia na cidade”. Como

87 O “Bairro da Horta Nova”, Freguesia de Carnide, foi construído, entre 1972 e 74, como realojamento de

carácter temporário para famílias carenciadas. Com o “25 de Abril”, os edifícios em construção foram ocupados pela população, vinda de diferentes locais. As construções de pré-fabricados degradaram-se rapidamente e, nos anos 80, a EPUL construiu edifícios de habitação social, em terrenos anexos ao bairro pré-fabricado existente, permitindo o realojamento das famílias que nele moravam. De então para cá, a densidade populacional da Horta Nova tem vindo a aumentar, nele vivendo uma população constituída por portugueses, por originários de África e por pessoas de etnia cigana.

88 “Junto à fachada da escola de dança, no bairro social da Horta Nova, em Telheiras, Lisboa...” escreve

Raquel Moleiro, na reportagem “A arte por miúdos”, revista “Unica” do jornal Expresso, nº 1742, de 18 de Março de 2006.

89 “Bons Tempos”, excerto deste artigo, publicado na página 3 de A Voz da Academia, (1967), número

único do jornal comemorativo do 60º aniversário da Academia Musical União Familiar de Telheiras – AMUF, escrito e editado pelo sócio Aníbal Lopes Pinto e distribuído gratuitamente aos sócios.

90 Gaspar, M., e Gaspar, V., (2003). “A Quinta de S. Vicente em Telheiras”, comunicação apresentada nas

VII Jornadas Históricas de Telheiras, realizadas no dia 22 de Novembro de 2003, na sede da “Eurovigia”,

sustenta Connerton (Op. Cit: 3) “as imagens do passado legitimam geralmente uma ordem social presente”, sendo “uma regra implícita pressupor uma memória partilhada entre os participantes em qualquer ordem social”, sem a qual “os seus membros não podem partilhar experiências ou opiniões”.

Essa idealização também é dos que recordam a vida passada, depositários da memória que, para os novos membros do grupo, os habitantes do «bairro», urge partilhar e apropriar. Afonso Libório, 58 anos, 38 dos quais em Telheiras, no NAT, dono de uma das últimas mercearias a fechar no Largo do Poço, espraia também a memória de outros tempos: “moravam aqui centenas de pessoas, dezenas de famílias que viviam em pequenas casas, ao longo da estrada de Telheiras, que ia do Campo Grande ao Largo da Luz, umas com horta, outras não. As hortas davam sustento a muitos, outros trabalhavam nas quintas e outros ainda em Lisboa, para onde iam de carro eléctrico. Mas isto era um sítio de quintas; havia a Quinta de Sant’ Ana, em frente à Igreja, a Quinta de Stº António... O Jardim dos Ulmeiros era uma quinta de hortas, com um belo palacete.

FIG. 12

Legenda: Aldeia de Telheiras - a aldeia de Telheiras ou Núcleo Antigo de Telheiras – NAT, como também é conhecido, já desactivado, sem gente, à disposição da EPUL. (foto do autor)

Havia muitas quintas, vinhas, pomares e figueiras e também algumas cerâmicas, pois as terras eram de barros e muita água”. Mas, a mais famosa era a Quinta de S. Vicente, com restaurante, adega, um pátio com pavilhões para almoços de grupos e afamada pelos banquetes para casamentos, animados e com baile...

A Quinta de S. Vicente (ou “do Alvito”) pertencia a D. José Lobo da Silveira Quaresma, quarto marquês do Alvito, que, no fim da vida e sem filhos, a vendeu ao plebeu Francisco José de Almeida. Foi este quem, para além de manter em funcionamento o alambique e o lagar de azeite, de desenvolver a agricultura, a fruticultura e a pecuária, ali iniciou a prática de receber visitantes/clientes nos jardins da quinta; inicialmente, esses podiam trazer farnel de casa, mas estavam obrigados a comprar o vinho da produção da quinta. Depois, porque a afluência crescia e muitos chegavam sem farnel, Francisco José de Almeida começou a fornecer refeições. Era fácil, a quinta “dispunha de uma capoeira à entrada. Bem fornecida, o freguês escolhia o animal que desejava. A empregada retirava-o, matava-o e, numa hora, cozinhava-o”91. Esta afluência tornou necessária a construção de novas salas para receber os visitantes; “acompanhando os mestres de obras iam algumas raparigas, novas ainda, gaiatas talvez, mas que gostavam de cantar. Uma chamava-se Amália Rodrigues; outra, de entre as demais, chamava-se Hermínia Silva”92. A fama da Quinta cresceu e assim a clientela. A tal ponto que, em 1943, “Telheiras viu uma fila de tipóias dirigindo-se ritmada e folcloricamente para a Quinta de S. Vicente. Era o grupo dos Marialvas de S. Cristóvão que, efectuando ali o almoço costumeiro, não havia podido alugar táxis devido ao racionamento de gasolina em tempo de guerra”93. E acabou por nascer ali um verdadeiro restaurante. “A laboração do restaurante permitiu o emprego a bastantes habitantes. O campo encontrou trabalhadores, o restaurante e dependências encheram-se de funcionários, a cozinha povou-se de mulheres”94; em breve havia quem procurasse o local para celebrar bodas.

91 Como contam Gaspar, M., e Gaspar, V., (2003). “A Quinta de S. Vicente em Telheiras”, comunicação

apresentada nas VII Jornadas Históricas de Telheiras, realizadas no dia 22 de Novembro de 2003, na sede da “Eurovigia”, em Telheiras.

92 Idem. 93 Idem. 94 Idem.

Após a morte do pai, os cinco filhos de Francisco de Almeida, que antes serviam à mesa como os empregados do restaurante, construiram um salão com capacidade para 500 pessoas e passaram a contratar, aos sábados e domingos, conjuntos musicais para abrilhantar o restaurante. As festas de Carnaval e Ano Novo “eram de arromba. E a noite de Telheiras iluminava-se com fogo de artifício e preso, cujo fulgor divertia os comemorantes e assombrava os residentes”. Na noite de S. Martinho a quinta “chegava a vender 11.000 litros de água-pé que regavam castanhas assadas e passarinhos fritos. Não havia descanso nem noite, pois o convívio durava até às cinco da madrugada seguinte”95. Também frequentavam a quinta jogadores do Benfica, de diferentes modalidades; o hoquista António Livramento e o futebolista José Torres celebraram na Quinta, o seu casamento. Eusébio era comensal assíduo.

A Quinta de S. Vicente, para além do restaurante e da exploração agro-pecuária, veio a albergar, a partir do ano de 1948, uma filial lisboeta da cerâmica Liz, de Leiria, em instalações que se estendiam por dois hectares de terreno. A fartura de água e os barros do Alto da Faia convidavam à actividade, que veio a fechar em 1971. “Nessa altura, simbolicamente, também Telheiras fechou a sua história antiga”, comentam Marlene e Vitorino Gaspar, na comunicação que tem vindo a ser citada. E têm razão, tanto mais que, três anos antes, em 1968, a Quinta de S. Vicente fora vendida à Câmara Municipal de Lisboa, que a haveria de passar à EPUL, já depois de Abril de 1974, para urbanizar. Agora, a Quinta é parte do «bairro», no seu lugar foram erguidos prédios de habitação e serviços; ainda assim, instalaram-se no local o restaurante “Lagar S. Vicente” e o café “Esplanada da Quinta”. Mas nem um nem outro são hoje símbolos de Telheiras e quando se fala na Quinta de S. Vicente ainda é no restaurante da familia Almeida que se pensa.

Manuela Barbosa, antiga moradora da aldeia de Telheiras, viveu de perto os últimos anos de glória da Quinta de S. Vicente, “vinham muitos de Lisboa para as festas e comezainas de domingo”, recorda. Mas prefere falar de outras festividades. Na aldeia desde 1960, com o fecho das habitações do Núcleo Antigo de Telheiras, foi realojada numa casa do Programa Especial de Realojamento, do Alto da Faia. Lembra-se das

noites longas da velha Telheiras e da AMUF96, que organizava os arraiais pelos Santos Populares, realizava sessões de cinema às sextas-feiras à noite e matinés aos domingos, por 2$50; aos sábados havia os bailes, abrilhantados por conjuntos musicais. Recorda também um grupo de teatro dirigido pelo Sr. Filipe, com actores do próprio bairro. Afonso Libório, outro velho morador da aldeia, lembra-se de mais: “No que é hoje o “Bairro Jardim”, na Azinhaga das Galhardas, havia duas pequenas indústrias, uma de medicamentos e uma de flores artificiais. Outra fábrica, essa de perfumaria, a «Nali», que ficava no Campo Grande, dava emprego a muitas mulheres de Telheiras. Outras eram empregadas domésticas... Caminhos desse tempo eram as azinhagas: a Azinhaga do Areeiro, aproximadamente no que é hoje a rua Vieira de Almeida, ia até ao sítio onde é agora o Colégio Planalto, e aí entroncava na Azinhaga do Loureiro, que ia dar ao Paço do Lumiar. Havia ainda outra azinhaga ao longo da actual rua Mário Chicó, onde é a sede da ART. Telheiras era como uma família grande, onde não havia zangas nem discussões de maior. Nas noites de Verão ficávamos até tarde a conversar na rua. Era uma calma!”

Ao contrário de outros moradores, Manuel Rebelo e António Pereira da Silva não saíram da aldeia onde estavam há muitos anos; ficaram no Núcleo Antigo de Telheiras-NAT, a meio da Estrada de Telheiras, perto do Largo do Poço. São comerciantes, o primeiro é dono de um pequeno restaurante, O Cantinho de Telheiras, o segundo tem uma mercearia, a Loja “O António”. Foram desalojados das lojas que já possuíam anteriormente na aldeia de Telheiras, mas mudaram para instalações novas, construídas pela EPUL. Na última entrevista livre realizada com eles97, falaram do passado e do presente e lamentaram o processo de expropriação realizado pela EPUL, no NAT; António é o mais crítico. Mas também falam da vida na aldeia. Manuel Rebelo, 54 anos, veio de Aguiar da Beira para Telheiras. Quando chegou ao «bairro», em 1968, foi trabalhar para a cerâmica da Quinta de S. Vicente. Onze anos depois, em 1979, tomou

96 Embora sem ter sido objecto de um encerramento formal, há muito que a Academia Musical União

Familiar de Telheiras – AMUF deixou de existir. Extinta a aldeia, a AMUF morreu com ela.

de trespasse a “Tasca do Rabaçal”, na Estrada de Telheiras; esteve lá 21 anos, até abrir o seu “Cantinho”, em 2000.

Na aldeia de Telheiras, Manuel morava numa “barraca”, junto ao convento; agora vive em Caneças, onde construiu uma casa, em 1995, e deixou de morar em Telheiras. Mas lembra-se bem de como era Telheiras “antigamente”. “Comecei a trabalhar com 15 anos, na fábrica de tijolo, no sítio onde é hoje a estação dos Correios. Trabalhei lá um ano e meio. Depois passei-me para a indústria hoteleira. Estive a trabalhar no café, na Estrada de Telheiras, para o Mário Grifo, mas depois fui trabalhar por minha conta para o nº 124, uma tasca onde fiquei 21 anos”.

“Quando cá cheguei só existia a estrada, o resto eram quintas. E havia a adega, o restaurante da quinta de S. Vicente e a fábrica da cerâmica; pertencia tudo aos mesmos donos. A quinta ía daqui até ao Carrefour, com vinhas, lagares e vacarias. (...) Iamos tomar banho à AMUF98, pois havia lá balneários, um para homens outro para mulheres. Conhecíamo-nos todos; agora muita gente já morreu”. E num desabafo, cruza o “antigamente” com o “hoje” – “Para mim, antigamente era melhor do que hoje. Havia mais honestidade. Como negócio agora é melhor, mas naquela altura também não era mau. Havia umas 12 tascas e todos conseguiam viver. Vendiam carvão, lixívia e fazia-se comer. Foi quando começou a construção toda e acabou tudo”...

António Pereira da Silva, tem 62 anos. Está em Telheiras desde 1970, chegou com 25 anos – “Vim do Ultramar e estava à procura de uma casa para trabalhar. Acabei por ficar aqui, com a loja e a habitação. Quando vim para cá, isto começava lá em baixo, onde é a Churrasqueira do Campo Grande, e ía até Carnide, até á Luz... À volta das casas da estrada, eram só quintas e algumas azinhagas. Era mais puro, mais saudável; bastava ter as quintas à volta. Mas agora é melhor. Temos mais condições para trabalhar e para viver nas casas”... António vive mesmo na aldeia de Telheiras, numa das raras casas que a EPUL não expropriou mas queixa-se – “Não fiquei muito bem. Quero entrar em casa e não posso, está tudo cheio de carros. Às vezes não se consegue respirar por causa dos escapes; quero mandar fazer uma medição à poluição do ar... E o «bairro» novo? “O

98 Associação Musical União Familiar, hoje desactivada. “A AMUF era a nossa distracção, com cinema,

bairro, segundo consta, começa com aqueles prédios ao pé do Sporting e já se diz que vai até à Horta nova. Telheiras agora é muito grande”...

Como muitos residentes, mesmo dos que moram dentro do «Triângulo», António também não sabe onde começa e acaba Telheiras.

O príncipe e a Senhora...

Corria o ano de 1610 (ou 1611, não se sabe ao certo) quando desembarca em Lisboa, vindo nas naus da India, o príncipe de Ceytara e Catecorlas, um jovem de 32 anos, herdeiro do trono de Cândia, “um dos que há no Ceilão”99. Educado na fé cristã pelos frades franciscanos, junto de quem se refugiara aos 13 anos, com sua avó, fugindo da sanha de um tio que lhe usurpara o trono e o queria matar; o príncipe, preto, tinha um nome cristão, recebido no baptismo: D. João de Cândia.

Durante os quinze anos passados com os frades, primeiro em Manar e depois em Goa, no Colégio dos Reis Magos de Bardês, o jovem oriental fora iniciado na Doutrina e aprendia boas-maneiras, tal como a ler e a escrever latim. Até que um dia o Conselho de Portugal achou que convinha tirá-lo da India e trazê-lo para o reino100, e assim se explica a sua chegada a Lisboa.

Portugal estava, à data em que aqui chegou D. João de Cândia, sob a dominação castelhana, e, por isso, foi a Filipe II que o príncipe negro pediu “cómodo e estado” com que pudesse viver em Lisboa, conforme à sua qualidade. Deu-lhe o rei 4.000 cruzados de tença, saídos dos cofres da Casa da India e, mais tarde, uma outra, também de 4.000 cruzados, por ter renunciado aos seus direitos sobre o reino de Cândia. Com a tença, D. João de Cândia, então já sacerdote, uma vez que tomara ordens em Madrid, em 1625, recebeu também a dignidade de Grande de Espanha, e “assento no banco dos bispos”101, além de autorização para ficar a residir em Lisboa. Regressado de Espanha, é

99 Trindade, P. (1991), “Da Conquista Espiritual do Oriente”, in Cadernos Culturais, Nº1. Lisboa: Centro

Cultural de Telheiras.

100 Ibidem 101 Ibidem

no“tranquilo e bucólico arrabalde de Telheiras”102 que este homem, agora com 48 anos,

e, ao que se dizia, dado a galanteios e aventuras amorosas103 apesar dos votos e da idade, compra uma quinta “com as suas casas de morada” que, em 1633, transforma num convento, destinado à convalescença de frades franciscanos, com uma igreja votada a Nossa Senhora da Porta do Céu104. Mas o rico prelado, oriundo de misteriosas paragens, não tem já muitos anos para se entregar à prece no seu pacato convento. Nove anos depois, em 1642, com 64 anos, D. João de Cândia exala o último suspiro no seu palácio

FIG 13

102 J.M. Cordeiro de Sousa, J. M. C. (1991), “O Oratório de Telheiras (Breves notas para a sua história)”,

in Cadernos Culturais, Nº1. Lisboa: Centro Cultural de Telheiras.

103 Na Monografia do Lumiar, Mantas J. (coord.), (2003). Lisboa: CML, pode ler-se que D. João de

Cândia, “Apesar de se ter convertido ao sacerdócio, teve, de Susana Abreu, duas filhas, que foram religiosas franciscanas no Convento de Vialonga”, Maria de Candia e Simoa Baptista.

104 Também referida como Nossa Senhora da Porta Coeli.

Legenda: Nossa Senhora da Porta do Céu - A imagem da Senhora ainda está na igreja de Telheiras mas não é a original e a chave que segura nas mãos Já não é de prata. (Fonte: Centro Cultural de Telheiras)

da Mouraria. Em cumprimento do seu desejo expresso enterram-no “num carneiro que mandara fazer por baixo do altar mor”105, no seu convento de Nossa Senhora da Porta do Céu.

Nossa Senhora da Porta do Céu, Nossa Senhora das Portas do Céu106, Nossa Senhora da Chave da Porta do Céu, tudo são invocações da Virgem, num local onde a presença antiga de celtas e romanos havia deixado outras portas para comunicar com o divino: o deus Lug, dos celtas, a que sucedeu S. Vicente, e a deusa Juno, dos romanos, criadora da Via Láctea, que cedeu o lugar a Nossa Senhora da Porta do Céu.

A imagem original desta invocação da Virgem, entretanto desaparecida, segurava na