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escreve um artigo publicado na revista belga Artefactum: Magazine of

Contemporary Art in Europe (Set.-Out. 1989), a propósito de uma individual patente em

Lisboa e em Bruxelas.

Este texto começa por focar a recorrência de Julião Sarmento ao "vocabulário iconográfico de um certo discurso amoroso do cinema" enquanto "corte" adaptado à pintura. Nazaré argumenta que este corte cinematográfico enforma uma "lógica de restrição" que impele ao "sentimento de indiscrição sadicamente estimulado e frustrado". Daí as "zonas removidas sobre a superfície da tela pintada, as texturas discretamente criadas pela colagem, a incompletude e a pequenez dos motivos, as sombras, a tela dividida". Análise que se reporta directamente para a tensão, deliberadamente forjada por Sarmento, entre revelação e ocultamento, que a crítica da época já vinha aflorando.

Mencionando a simultaneidade de contrários – entre "vitima e agressor, espectador e protagonista, vivo e sob o perigo de morte", a propósito de uma obra que a autora destaca, Abismos (1989), Nazaré acaba por tocar, ainda que de passagem e sem qualquer problematização de fundo, na tónica do hermafrodita. Ficando assim essa via de análise aberta para incursões teóricas futuras mais arrojadas feitas sobretudo pela mão de Delfim Sardo – fio exploratório da máxima pertinência não aflorado pela grande maioria da crítica portuguesa e internacional.

Por ocasião da individual na galeria Marga Paz (Madrid, 1989/90), três críticas aparecem em periódicos madrilenos mesmo no final do ano de 1989: Pablo Llorca, "La duda como tema (II)" (Diario 16, Dez. 1989); José Ramon Danvilla, "Julião Sarmento:

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Leonor Nazaré nasceu nas Caldas da Rainha em 1963. Actualmente é assessora de direcção no Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão da Fundação Calouste Gulbenkian desde 1999. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, Português/Francês, na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, em 1985. Em 1991 concluiu estágio profissional com dois anos de formação pedagógica teórica e prática. Concluiu um D.E.A (Diplôme d’Etudes Approfondis): «La Philosophie et la Cité», variante «Esthétique», na Universidade de Paris X, Nanterre; a equivalência ao grau de Mestre em Ciências da Comunicação, foi atribuída pela Universidade Nova de Lisboa em 1999. Leccionou línguas, literatura, técnicas de tradução e Jornalismo em diferentes graus do ensino Secundário, didáctica da língua na Universidade Autónoma de Lisboa e língua e cultura portuguesas no Instituto Camões em Paris. É crítica de arte desde 1989: foi colaboradora permanente do jornal Expresso entre 1989 e 1997 e pontual de algumas revistas de arte nacionais e estrangeiras; foi autora de cursos e conferências na área da arte contemporânea; assinou vários textos de catálogo, entrevistas e compilações de carácter enciclopédico na área da arte contemporânea como o CD-ROM publicado pelo IAC em 1999. Comissaria exposições de arte contemporânea. Em 2004 integrou o corpo dirigente da secção portuguesa da AICA (Associação Internacional de Críticos de Arte).

imagenes, realidad e ivento" (El Punto, 15-12-1989); e Fernando Hiuci, "Enfasis y Fusion: otra revelation peninsular" (El Pais, 30-12-1989).

Pablo Llorca87 é o mais incisivo e desenvolto nas caracterizações genéricas e conjunturais que tece, ao parecer querer definir ainda uma situação histórica, paradigmática – não raras vezes imputada ao fenómeno dos “regressos à pintura” dos Anos 80 –, que por ser genericamente orientada pelos signos do relativismo e da des- hierarquização de valores, permite que diversos registos e linguagens confluam e convivam, sem contradição aparente, num mesmo plano de expressão. Este autor inicia o seu texto constatando assim que, naquele preciso momento, eram exibidos em Madrid trabalhos de artistas que, não obstante serem de “idades e origens artísticas diferentes”, partilhavam “um espírito similar na realização das suas obras”. Na óptica deste crítico, Julião Sarmento, Javier Baldeón e Jaime Llorente eram então “coincidentes” em razão de suscitarem “inquietudes comuns, repletas de dúvidas que confluem na nova arte”. Llorca argumenta que,

os valores que em outros tempos eram rotundos foram diluindo-se durante a década; o artista torna visível essa dúvida. Não toma partido por nenhum desses valores, trabalhando, não obstante, a partir deles. […] O artista agora não utiliza um valor artístico concreto como meio de expressão. Esses valores (a cor, a abstracção, a figuração, as texturas, etc.) ‘são o tema’. Daí muitos deles fluírem harmonicamente entre abstracção e figuração, que já não são instrumentos mas temas.

Após esta espécie de intróito, Llorca centra-se exclusivamente no trabalho de Julião Sarmento que então era exibido na galeria Marga Paz. Faz primeiramente referência a “uma confrontação como inquietude” e a um “enquadramento” de índole “neo-expressionista” que marcara os seus primeiros anos do decénio de 80. De modo esquemático, as caracterizações passam pela expressão de “dualidades, mas numa forma mais unitária”, sinalizando uma justaposição de “cenas figurativas com imagens

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Formado em História da Arte, Pablo Llorca é correspondente da revista Artforum de Nova York, e coordenador da secção de cinema e vídeo da revista de arte Exit Express (Madrid). Foi o curador convidado do PhotoEspaña 2004 e encabeçou os seguintes projectos de curadoria: Nieva negro: Artistas canadenses contemporâneos (Fundación Canal, Madrid, 2004), Arte Termita contra Elefante Blanco - Comportamientos actuales del Dibujo (Fundación ICO, Madrid, 2004), Icónica (Museo Patio Herreriano, Valladolid, 2006) e El mundo descrito (Fundación ICO, Madrid, 2008). Em 2002 e 2003, coordenou dois programas audiovisuais do Museu Reina Sofia. Já dirigiu seis longas-metragens, inúmeras curta- metragens e diversas produções audiovisuais, tanto no campo documental como no da ficção.

abstractas”. Daqui é retirada uma consequência: “Através da relação dessas imagens [Sarmento] sugere outras propostas em torno da representação e da narração, da depuração e da retórica, da memória e da criação…”.

É significativo notar o modo como Julião Sarmento, no limiar do decénio, é ainda aclamado em Espanha. Enquanto “outra revelação peninsular”, o artista português surge, sob a pena de Fernando Hiuci – comissário e critico de arte espanhol, actualmente director da revista Arte y Parte –, “integrado no retorno à pintura […] que marcou a entrada dos anos oitenta”, tendo alcançado uma “projecção internacional mais sólida”. Hiuci menciona a presença de Sarmento na Documenta 7, onde fora, com o espanhol Barceló, “a outra excepção ibérica incorporada no discurso geral sobre o ressurgimento europeu”.

De seguida, o crítico espanhol reitera alguns lugares comuns sumamente sinalizados, em jeito de caracterização genérica do trabalho de Sarmento, que lhe são imputados desde o início da década. Destaca a sua “trajectória cosmopolita”, uma “fragmentação” pictórica que põe em “relação diversas imagens” ou a “participação activa do leitor”. Nessa sequência, já sobre as pinturas exibidas na mostra madrilena, notará que estas se “deslocam” do “clima das suas propostas” em razão de ter “desaparecido” a ênfase colocada nas “divisões da obra em territórios que relembram a independência dos factores postos em jogo”.

1.3. Anos 90

Os anos 90 representam não só o momento americano da carreira de Julião Sarmento – 1991 é o ano da primeira exposição do artista em Nova Iorque, numa galeria de prestígio (a Louver)88, que se consolidará com a exposição individual na Galeria Ruth Bloom (Los Angeles) e com a sólida relação de trabalho estabelecida mais recentemente com a Galeria Sean Kelly (Nova Iorque) –, como marcam ainda, através de uma série de exposições antológicas de consagração, o reconhecimento por parte das grandes instituições, tanto no nosso país – Fundação de Serralves (Porto, 1992)89 e Fundação Gulbenkian (Lisboa, 1993) – como no estrangeiro – Witte de With (Roterdão, 1991), IVAM (Valência, 1994), Haus der Kunst (Munique, 1997), Hirshhorn Museum and Sculpture Garden (Washington) e Palacio Velazquez (Madrid, 1999).90

No plano das mostras colectivas, merece destaque as participações em várias exposições internacionais de prestígio, entre as quais avultam Metropolis (Martin- Gropius Baú, Berlim, 1992), Unbound: Possibilities in Painting (Hayward Gallery, Londres, 1994) e a representação portuguesa na XLVII Bienal de Veneza (Padiglione Portoghese, Palazzo Vendramin ai Carmini, Veneza, 1997).

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"[...] e com considerável êxito de crítica (recensões nas revistas americanas 'Artforum','Art News' e 'Arts Magazine')", tal como nos assinala Alexandre Melo (Melo 1999[estudo], 167-169).

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Contudo, o mais importante foi o facto de pela primeira vez uma instituição poderosa e respeitada no sistema artístico português ter aberto as suas portas a um fluxo criativo até então precariamente divulgado entre nós.

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Para esta selecção de exposições individuais somos devedores do estudo de Alexandre Melo (Melo 1999 [estudo]), onde se refere que, "no plano internacional, depois das já referidas exposições em espaços institucionais espanhóis e algumas exposições de pequena dimensão em espaços institucionais menos relevantes - como a Stadtische Galerie (Erlangen, 1989) ou a Stadtische Galerie am Markt (Schwabisch Hall, 1990) - a exposição no Witte de With em Roterdão (1991) assinala uma primeira visão antológica significativa da obra de Sarmento no estrangeiro. Uma visão que se alarga e amplia com a exposição no IVAM em 1994. Neste âmbito merecem ainda destaque as participações em várias exposições internacionais de prestígio entre as quais avultam 'Metropolis' (Martin-Gropius-Bau, Berlim, 1991) e 'Unbound - Possibilities in painting' (Hayward Gallery, Londres, 1994)."; Já depois de 1994, merece destaque a exposição que constitui a representação portuguesa à Bienal de Veneza 1997; também digna de menção é a retrospectiva, a maior até ao momento, realizada na Haus der Kunst (Munique, 1997)".

Duas individuais simultâneas fazem de 1990 um ano alemão para Julião Sarmento. Enquanto o artista português apresenta na Galeria Bernd Kluser, em Munique, um conjunto de pinturas novas que “reforçam a sobriedade característica do trabalho recente do autor” (João Pinhanda, “Julião Sarmento na RFA”, Expresso/"A Revista", 21-07-1990), no Museu de Schwäbisch Hall (Städtische Galerie am Markt), é exibida uma retrospectiva que incluí vinte e um trabalhos sobre papel, com datas de 1983 a 1988. Desse modo, dois dos contributos de fundo que abrem o ano de 1990 são os ensaios (nunca traduzidos do alemão) que figuram no catálogo da individual que levou o significativo título de Julião Sarmento: Gemälde und Arbeiten auf Papie.91

No texto de introdução – "Zur Ausstelung" (Siebenmorgen 1990, 5-6) –, depois de destacar a vasta reputação internacional que o trabalho do artista português havia adquirido nos últimos dez anos, o director daquele Museu, Harald Siebenmorgen, reitera a afinidade entre o pintor português e o poeta Fernando Pessoa, peremptoriamente estabelecida por Armin Zweite dois anos antes (que o autor cita). É a esse propósito que Siebenmorgen nota que Julião Sarmento abre "um mundo que se compõe de alusões, correspondências, multiplicidade de significados, mas que simultaneamente formula [...] num tema pictórico a divisão de cada identidade".

Linha interpretativa que vai levar este autor a postular um valor simbólico assente na estreita homologia entre tema e solução compositiva, designadamente quando se refere a uma "dissolução do insubstituível" enquanto "libertação de constrangimentos inevitáveis". Nessa óptica, está em jogo um fazer pictórico que, de "forma subcutânea", tematiza um conjunto de "insignificâncias" a fim de as combinar "no mesmo plano". Neste ponto, entrevê-se uma enunciação fundamental, adstrita ao fim das hierarquias centralizadoras, que – segundo o autor – resulta aqui explanada numa íntima correlação entre forma e conteúdo ou entre composição e tema. Leitura corroborada pela invocação da “descontrução” de Paul de Man ensaiada anteriormente por Armin Zweite, em 1988, enquanto proposta de análise do trabalho de Julião Sarmento.

Outra sugestão interpretativa digna de nota é o enunciado de Siebenmorgen em relação ao facto de Julião Sarmento apresentar nos seus quadros "o tema da História e

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Escreve João Pinharanda, a seu propósito, que “a inauguração foi precedida de uma conferência de Armin Zweite (director do Stadtischen Galerie im Lenbachhaus, Munique)” (João Pinhanda, “Julião Sarmento na RFA”, Expresso/"A Revista", 21-07-1990).

da experiência como recordação, mas também como esquecimento". Tópico que, segundo o autor, permite a Sarmento formular "uma visão extremamente pessoal e individualista e essencialmente céptica e fragmentária do tema da época 'Trabalhos sobre a História'" – espreita aqui um substrato semântico até ao momento não aflorado, e que irá encontrar na crítica procedente profícuos desenvolvimentos.

Seguindo também o enlace já anteriormente tecido entre a pintura de Julião Sarmento e a obra literária de Fernando Pessoa, Bettina Pauly (Pauly 1990, 8, 10, 12 e 14), no mesmo catálogo que acompanha a mostra do Museu de Schwäbisch Hall (Städtische Galerie am Markt), refere que a obra do poeta modernista português "gira à volta da perda da identidade", porque ao escrever "sob diferentes pseudónimos" o sujeito da escrita divide-se "em diferentes personalidades, diferentes aspectos do seu eu". Resultado: constata-se "uma série de fragmentos", justamente como na pintura de Sarmento, ao romper "com a noção tradicional de quadro, para criar uma unidade a partir de partes individuais, muitas vezes com estilos e técnicas contraditórios".

Esta diversidade simultânea de estilos e de técnicas leva a autora, tal como a grande maioria dos críticos alemães destes anos (ávidos conhecedores do neo- expressionismo), a colocar a tónica numa espécie de pastiche pictórico pós-moderno entrevisto, ainda que não confesso ou formalizado mediante esse jargão: "Sarmento usa diferentes estilos de pintura; podemos observar pintura abstracta e figurativa, significante e banal".

Posto isto, através da análise de uma série de obras-chave, a autora desenvolve uma linha interpretativa que, tendo tudo a ver com a supramencionada fragmentação, nos lança, sem grande risco, continuamente para a tematização dos distúrbios na unicidade do sujeito moderno, ilusoriamente sem fissuras, cuja condição é presidida pelo primado da consciência. Ao longo do discurso de Bettina Pauly notamos uma série de dualidades invocadas que parecem relançar um conjunto de premissas conotadas com o romantismo, já então apontadas pela massa crítica logo nos primeiros anos da década de 80. É nessa óptica que devemos ler passagens como a que refere que Sarmento “mostra como os pensamentos e emoções das pessoas provêm de diferentes planos da consciência"; o pintor "tenta estabelecer uma ligação entre intuição e pensamento e transpô-la para imagens"; não devendo ainda ser suprimido nesse gesto "nenhum campo

que defina o sentimento e o pensamento: recordações de eventos do quotidiano ou da infância, bem como fantasias, sonhos e anseios, objectos do dia-a-dia, sexualidade”.

Para Bettina Pauly, apesar de Julião Sarmento tentar "ter em conta todos os aspectos do pensamento consciente e inconsciente e do sentimento" – quando forja uma "linguagem pictórica específica" que possa reflectir a "capacidade humana de pensar em imagens e de relacionar emoções com imagens" – também está "ciente das barreiras com as quais nos deparamos constantemente". Ora, são justamente essas "fronteiras" que, segundo a autora, o pintor tenta "ultrapassar".

A exposição individual que acolhe os trabalhos mais recentes de Julião Sarmento na Galerie Bernd Klüser, em Munique, vai desencadear alguns ecos no capítulo da produção de crítica publicada em periódicos internacionais.

A que figura no Frankfurter Allgemeine Zeitung (11-08-1990), com o título de "Einheit und Gegensatz: Juliao Sarmento in der Münchner Galerie Bernd Klüser", tem a assinatura de B. S. A. Depois de destacar o facto de Portugal, "que ocupa um lugar marginal no contexto da arte actual", ter conseguido com Julião Sarmento "um artista de categoria internacional", o autor apenas enuncia considerações de carácter formal e semântico que, na essência, pouco acrescentam ao anteriormente referido pela crítica precedente, mas que interpretam de modo acertado a passagem para um novo ciclo da sua trajectória.

A primeira consideração, é que as obras patentes em Munique "são provas renovadas da continuidade de uma capacidade viva e inesgotável de desenvolvimento" de um artista "que partiu da arte conceptual para a pintura".

A segunda dá-nos conta de uma mutação formal e compositiva em que "da aproximação temporária a David Salle [já] não resta quase nada". Na sequência dessa constatação, salienta-se o facto das novas obras de Sarmento serem pautadas por um "colorido reduzido e austero”, onde "várias camadas de cor sobrepostas dão um efeito de transparência”, sugerindo “profundidades”, ao mesmo tempo que as “estruturas em camadas ganham valor significante através do uso de materiais granulosos".

Mais interessante do ponto de vista semântico é o artigo "Fragmente: Julião Sarmento in der Galerie Klüser", também publicado num periódico alemão

(Süddeutsche Zeitung, 1-2-1990), da autoria de Eva Karcher. Texto que começa por enunciar que a "identidade é uma ficção" e que "se existe um pintor que transpõe esta afirmação [...] para imagens, é Julião Sarmento". Para a Karcher o pintor português "desconstrói [...] a realidade e a experiência do mundo e da vida".

Sob um filtro interpretativo enformado pelo ar dos tempos, ainda claramente afecto ao ditames pós-modernistas no que concerne ao repensamento da identidade do

Self, Eva Karcher irá notar que,

Sarmento vê-se incapaz de encarnar as fendas na consciência perante a aparentemente infinita disponibilidade de todas as ideias. Uma vez que (aparentemente) não há nada que não tenha já sido escrito, pintado, sonhado, desejado, esperado, o artista pinta fragmentos das suas recordações, experiências, desejos, esperanças e sonhos.

Será então sob os "códigos de uma linguagem da melancolia e do cepticismo" que autora entrevê, nestes "aforismos pintados", a asseveração fundamental de que em "cada um destes fragmentos espelha-se o mundo" que, "de outra forma, não existe".

Encontramos no catálogo da exposição colectiva De Verzameling II, que tem lugar no Museum van Hedendaagse Kunst (Antuépia, 1990), um pequeno texto intitulado “Julião Sarmento” (Beul 1990, 130-131) assinado por Bert de Beul.

Depois de permitir entrever, em termos formais, um ecletismo estilístico feito de "diferentes fontes de inspiração" – em razão de invocar "desenhos de crianças, grafite, ilustrações comerciais, fotografias, pintura gestual e arte primitiva" –, o autor refere-se à obra de Julião Sarmento como estratégia que lida simultaneamente com "vários pontos de vista e interpretações". Para Beul, no trabalho do artista habita um "certo poder cinematográfico" composto de referências e imagens que fluem "ao acaso", como que alegorizando "uma realidade experienciada enquanto algo fragmentado e obscuro".

Este aspecto permite ao autor detectar, primeiro, o poder da escolha explanado num "pluralismo que permite ao observador uma grande margem de liberdade interpretativa"; e segundo, a "expressão esquizofrénica de um sujeito que já não é capaz de ordenar as suas experiências e impressões ou de as integrar num todo coerente e consistente".

Será também num catálogo de uma exposição colectiva patente na Alemanha,

Vom Haben und vom Wollen, Perspektiven für eine Staatsgalerie moderner Kunst, eine Ausstellung (Bayerische Staatsgemäldesammlungen, Munique, 1990), que surge, no

mesmo ano, um texto especificamente dedicado à obra de Julião Sarmento (Klingsöhr 1990, 32).

Por entre apreciações e comentários mais especificamente dedicados às obras exibidas, Cathrin Klingsöhr foca o seu olhar hermenêutico no "significado" da "expressão de medos castradores”, onde, segundo a autora, "permanece uma larga margem para associações e descobertas por parte do observador". Importa notar que para Klingsöhr, apesar das obras de Sarmento evocarem "não só uma dimensão psíquica marcadamente pessoal da existência humana" – na medida em que se referem "à estrutura desta linguagem do subconsciente" –, estas afastam-se radicalmente do Surrealismo tradicional, em razão de já não assentarem "num consenso da linguagem dos símbolos, mas no primado da expressão da própria experiência". Aspecto formalmente traduzido no modo com o artista "combina formas de expressão diferentes das usadas na pintura sua contemporânea".

No acertado dizer de Cathrin Klingsöhr, são "formas e símbolos estilisticamente diferentes", isto é, "elementos associativamente díspares e irrelevantes", colocados "perante as nossas capacidades fundamentais de recordação e imaginação para construir uma correspondência gráfica".

Na edição de Janeiro-Fevereiro (1991) da revista Artscribe , um vulto maior da crítica de arte, Michael Tarantino, escreve a melhor crítica feita à terceira exposição de Sarmento na Galeria Berd Kluser. Rompendo com o já estafante centramento na leitura do Eu fragmentado (e seus avatares auto-biográficos) que ainda vinha enformando a pena dos autores alemães, Tarantino – na esteira dos primeiros contributos de Helena Vasconcelos e Leonor Nazaré – colocará o seu assento na montagem enquanto procedimento adoptado pela pintura de Sarmento.

O crítico tematiza o mote “espaço entre as coisas”, pondo a “chave de leitura” da obra exibida na circunstância do artista português ser um “manipulador de imagens”. Nessa sequência, aflora a possibilidade da “interpretação errónea” (misreading), para enquadrar o “contexto sado-masoquista” a partir de uma cena tirada de um filme de Luis

Buñuel. Para Tarantino, este processo de “montagem pictórica” permite a Sarmento postular uma “negação do original”, na medida em que “simultaneamente reduz e expande da autonomia da imagem”92.

É mediante esta tónica que uma passagem merece relevo: “Ao escolher elementos da collage e da sobreposição, Sarmento joga um perigoso jogo” no qual cada “referência pictórica está intricadamente relacionada com a obra do artista no seu todo”. A súmula dos eixos exploratórios de Sarmento condensam-se, esquematizados, na seguinte frase: “O conteúdo sexual das imagens; o retrabalhar das cenas tiradas de filmes; a apropriação de estratégias formais do cinema, especialmente o uso da sequencialidade; a sobreposição de temas recorrentes... […] cuja significação não pode

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