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Dentro dessa visão queer, assumimos “contradiscurso” como uma posição de resistência e subversão da matriz cisgênera e heterossexual. Os discursos literários constituídos em um regime de escrita de si buscam responder a uma conjuntura

sociocultural de três séculos que exclui sujeitos que não se conformam a suas regras compulsórias. Somente uma teoria e uma política pós-identitária conseguem promover uma crítica a essa conjuntura sem se acabarem presas por sua lógica de prescrição de identidades a serem seguidas. Diante do quadro apresentado,

[...] não se deve imaginar um mundo do discurso dividido entre o discurso admitido e o discurso excluído, ou entre o discurso dominante e o dominado; mas, ao contrário, como uma multiplicidade de elementos discursivos que podem entrar em estratégias diferentes. [...] Os discursos, como os silêncios, nem são submetidos de uma vez por todas ao poder, nem opostos a ele. É preciso admitir um jogo complexo e instável em que o discurso pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e efeito de poder, e também obstáculo, escora,

ponto de resistência e ponto de partida de uma estratégia oposta. O discurso

veicula e produz poder; reforça-o mas também o mina, expõe, debilita e permite barrá-lo. Da mesma forma, o silêncio e o segredo dão guarida ao poder, fixam suas interdições; mas, também, afrouxam seus laços e dão margem a tolerâncias mais ou menos obscuras (FOUCAULT, 1999, p. 95-96, grifos nossos).

Os discursos literários que tematizam o próprio sujeito enunciador, as escritas de si, respondem a uma cena de interpelação que pergunta “quem é você?”. Segundo Butler (2015), um sujeito tematiza a si próprio em um discurso quando é obrigado por um sistema de justiça e castigo. No caso dos discursos que compõem nosso corpus, a consideração desses sujeitos como seres abjetos incita que essa cena se configure violentamente. Mesmo assim, as/os sobreviventes respondem e o fazem de modo a possibilitar uma discussão por direitos.

Tomar posse do discurso que circula publicamente pode ser um primeiro estágio para a integração de quem enuncia, no sentindo de que “[...] falar é existir absolutamente para o outro” (FANON, 2008, p. 33). Transformar-se em possuidor da linguagem dá acesso ao mundo que essa linguagem expressa – que lhe é implícito – e, portanto, aumenta o poder de intervenção desses sujeitos nas normas vigentes. Fanon (2008) aborda as experiências de identidades negras em espaços permeados pelo colonialismo, porém acreditamos que o debate que propõe sobre o complexo de inferioridade sócio-historicamente imposto a elas, inclusive apreendido nos ambientes escolares, pode ser deslocado para as experiências transgêneras. Faz-se necessário dialogar com essas experiências e, como postula Butler (2004), criar espaços que asseguram seus direitos e que, com isso, percebam-se dignas e dignos de vida vivível e visível.

Embora a escrita de si, em suas mais diversas formas – diários, cartas, memórias – possa ser compreendida, à primeira vista, como privada, as questões públicas a atravessam. Aos sujeitos vetados dos espaços públicos, por uma questão de normas de gênero ou de transgressão dessas normas, resta a escrita de si como única possibilidade de expressão (GOMES, 2004). Os diários de Herculine, apresentados anteriormente, são emblemáticos nesse sentido.

Na condição de escritas de si, os discursos que analisamos dão continuidade a uma prática pioneiramente desenvolvida no cenário brasileiro durante a década de 1980 (MOIRA, 2018). A curiosidade do público pelas narrativas trans não impediu, na época, a neutralização dessas identidades. Eram recorrentes nessas publicações o desrespeito ao nome defendido, empregando-se, no lugar, o nome de registro, a interferência dos escritores dos prefácios, que procuram explicar o motivo da transgeneridade. Segundo Moira (2018), a crítica recebe, em sua maioria, com desprezo essas produções.

A escrita de si, por intermédio de um olhar queer, possibilita o “contradiscurso”, a subversão.

Se a subversão for possível, será uma subversão a partir de dentro dos termos da lei, por meio das possibilidades que surgem quando ela se vira contra si mesma e gera metamorfoses inesperadas. O corpo culturalmente

construído será então libertado, não para seu passado “natural”, nem para

seus prazeres originais, mas para um futuro aberto de possibilidades culturais (BUTLER, 2016, p. 164)

Ora, diferenciando-se de seus adversários mais claros, aqueles que pregam uma suposta neutralidade positivista, científica, os sujeitos trans contam com as novas configurações do campo literário para produzirem coletivamente seus discursos. A configuração dos modos de criação e circulação dos discursos literários sofreu grandes alterações nas últimas décadas, chegando-se a uma “laicização da criação, [...] na qual entram, em proporções variáveis, uma parte de expressão de si e uma parte de integração num grupo” (MAINGUENEAU, 2016a, p. 107).

Após apresentarmos, no capítulo seguinte, a disciplina AD e sua perspectiva enunciativo-discursiva, conforme desenvolvida por Maingueneau, no capítulo “O discurso literário como discurso constituinte”, regressamos ao campo do discurso literário.

3 A ANÁLISE DO DISCURSO EM SUA PERSPECTIVA ENUNCIATIVO- DISCURSIVA

Na atualidade, sob a denominação “análise do discurso”, existem trabalhos bastante heterogêneos. Uma diversidade tamanha que torna árduo qualquer trabalho de balanço dessas produções, apesar de Patrick Charaudeau (1999) e Maingueneau (1997, 2007, 2015a, 2015b) terem se lançado a tal empreendimento.

Segundo Maingueneau (2015a), Zellig S. Harris introduz, em um artigo publicado em 1952, o termo “análise do discurso” para se referir a uma unidade linguística transfrasal – um texto. Por pesquisar dentro de um paradigma estruturalista, Harris analisava a estrutura textual, levantando a repetição de alguns elementos, e traçava as regularidades textuais para, só então, relacioná-las a realidades sócio-históricas, atitude que se aproximava do estruturalismo literário francês da década de 1960 e, logo, empregava o termo “análise” em seu sentido de decomposição, apenas.

Ao examinar a diversidade desse imenso campo, Maingueneau (2007) esclarece que o termo “análise do discurso”, apesar de ser um rótulo empregado por pesquisas de inspirações muito diferentes em cada parte do mundo, pertence às ciências da linguagem, pelo menos em sua concepção mais corrente, e envolve diversos saberes de outras áreas. Ao investigar os conceitos sugeridos para o termo, o autor depara- se, em linhas gerais, com duas posições.

Ainda de acordo com Maingueneau (2007), conceituações mais abrangentes e pouco delineadas do termo “análise do discurso” rivalizam com definições mais objetivas. Enquanto aquelas ligam-no a “uma espécie de superlinguística, na qual se reconciliariam forma e função, sistema e uso” (MAINGUENEAU, 2007, p. 16), estas, bastante restritivas, ora excluem-se da definição as pesquisas que não se localizam na problemática pelo qual definidores se interessam, ora ignoram a diversidade de pesquisas desenvolvidas em seu nome, localizando alguns trabalhos ou como parte da análise das interações orais, ao lado da Análise da Conversação, ou nos estudos dos fenômenos de coerência e coesão textual do campo da gramática do texto. Embora esta posição possa conferir respeitabilidade e visibilidade a uma disciplina desenvolvida em torno de trabalhos diversos das fronteiras da Linguística, produz um

distanciamento de sua natureza interdisciplinar, que entrecruza dados linguísticos e aspectos sociais.

A dificuldade de conceituar a “análise do discurso” também deriva da relação entre “discurso” e “análise do discurso”, que aparenta ser uma relação entre objeto empírico e disciplina que estuda esse objeto (MAINGUENEAU, 2007). Por se tratar de um domínio vasto, o discurso só constitui um objeto do saber, quando assumido por diversas disciplinas que o exploram alicerçadas em um interesse específico.