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Sem prejuízo do plano geral do pensamento de Goldmann, apresentado (em mui apertada síntese) acima, mostra-se necessário determos-nos num de seus aspectos mais condizentes com nosso escopo neste trabalho. Goldmann leciona que “a literatura e a filosofia são, em planos diferentes, expressões de uma visão do mundo e que as visões do mundo não são fatos individuais, mas sim fatos sociais”262. O mesmo autor, como vimos acima, conceitua a visão do mundo como “um ponto de vista coerente e unitário sobre o conjunto da realidade”263. Essa visão de mundo, entretanto, é negada por Goldmann como sendo estritamente individual; é, então, “um sistema de pensamento que, em certas condições, se

261 GOLDMANN, Lucien. A criação cultural na sociedade moderna. São Paulo: Difel, 1972, p. 68. 262 GOLDMANN, Lucien. Dialética e cultura. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 73. 263 GOLDMANN, op. cit., p. 73.

impõe a um grupo de homens que se encontra em situações econômicas e sociais análogas, isto é, a certas classes sociais”264.

Tal fato não desautoriza, de modo algum, a apreciação da criação do escritor no plano estético, pois:

A obra literária é, como dissemos, a expressão de uma visão de mundo, de uma maneira de ver e de sentir um universo concreto de seres e de coisas e o escritor é um homem que encontra uma forma adequada para criar e expressar este universo. Pode ocorrer, entretanto, uma defasagem maior ou menor entre as intenções conscientes, as idéias filosóficas, literárias ou políticas do escritor e a maneira pela qual ele vê e sente o universo que cria.

Neste caso, toda vitória das intenções conscientes será fatal à obra, cujo valor estético dependerá da media em que expresse, malgrado e contra as intenções e as convicções conscientes de seu autor, a maneira pela qual ele sente e vê, realmente, os seus personagens265.

Vale dizer, então, que será de acordo com o conteúdo266 da obra, com o universo criado pelo escritor e sua coerência interna, que a obra de arte literária será julgada por seu valor artístico, definindo Goldmann “a obra de arte como um universo de coisas e seres concretos, visto através de uma certa perspectiva, e mencionamos a coerência interna e a unidade da forma e do conteúdo como suas duas outras características principais”267.

Mas Goldmann não se detêm nessa noção; importa também considerar o próprio autor da obra, pois, conforme Reis “vivendo num tempo e num espaço concretos, dialogando de diversas formas com a cultura e com o imaginário em que se acha inscrito, o escritor representa uma cosmovisão que de certa forma traduz essa sua relação com o seu tempo e espaço históricos”268, o que, de certa forma, afigura-se óbvio. Mas essa interação entre o

escritor, seu tempo e a concepção espaço-temporal que ele possa ter é ultrapassada pelo “escritor de gênio”, assim conceituado por Goldmann:

Cada escritor expressa, efetivamente, em sua obra, sua maneira de ver, de sentir e de imaginar um mundo.

[...]

Mas o escritor de gênio parece-nos ser aquele que consegue realizar a síntese, aquele cuja obra é ao mesmo tempo a mais imediata e a mais refletida, dado que sua sensibilidade coincide com o conjunto do processo e da evolução histórica, aquele que – para falar de seus problemas mais concretos e mais imediatos – coloca implicitamente os problemas mais gerais de sua época e de sua civilização e para quem, inversamente, todos os problemas essenciais de seu tempo não são coisas

264 Ibidem, p. 73.

265 GOLDMANN, Lucien. A criação cultural na sociedade moderna. São Paulo: Difel, 1972, p. 75-76. 266 GOLDMANN, op. cit., p. 84.

267 Ibidem, p. 85.

268 REIS, Carlos. O conhecimento da literatura: introdução aos estudos literários. Porto Alegre: EDIPUCRS,

sabidas, convicções, mas realidades que se exprimem de uma maneira imediata e viva em seus sentimentos e em suas intuições.

[...]

No fundo, isto significa simplesmente dizer que um escritor de gênio é aquele cuja sensibilidade é a mais vasta, a mais rica e a mais universalmente humana269.

O grande escritor é, precisamente, o indivíduo excepcional que consegue criar em certo domínio, o da obra literária (ou pictórica, conceptual, musical, etc.), um universo imaginário, coerente ou quase rigorosamente coerente, cuja estrutura corresponde àquela para que tende o conjunto do grupo; quanto à obra, ela é, entre outras, tanto mais medíocre ou tanto mais importante quanto mais sua estrutura se distancia ou se aproxima da coerência rigorosa270.

Tais colocações271, com as reservas cabíveis, ressoam de forma uniforme às

considerações que já tecemos nos tópicos acima, acerca da universalidade dos temas tratados por Conrad; entretanto, dentro da linha teórica a ser desenvolvida, é evidente que os temas versados em OAS não teriam sentido caso não fossem examinados, também, dentro da ótica dos grupos sociais que lêem a obra conradiana.

Com efeito, mesmo esse universo imaginário272 retratado no romance em questão, por mais fugidio que fosse (e não é o caso) à experiência empírica, poderá, como mencionamos acima, ser “rigorosamente homólogo, na sua estrutura, à experiência de um determinado grupo social ou, pelo menos, relacionado com ela de uma forma significativa”273, já que “não há qualquer contradição entre a existência de uma relação estreita da criação literária e com a realidade social e histórica e a imaginação mais poderosa”274.

Diante desses referenciais teóricos, mostra-se possível o exame, no campo da Sociologia da Literatura, das possíveis visões de mundo dos leitores que se depararam e se deparam com OAS, de sorte a questionarmos o eventual espelhamento entre as consciências de classe presentes num e noutro momento, sua percepção e reação desse retrato dos “problemas essenciais de seu tempo”, vertidos nesse romance de Conrad, num verdadeiro caleidoscópio de ângulos de visão. É o que procedemos adiante, com a devida síntese necessária aos limites deste trabalho.

269 Ibidem, p. 87-88.

270 GOLDMANN, Lucien. Sociologia do romance. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967, p. 209.

271 Interessante ponderar sobre as colocações de HEGEL acerca da genialidade do artista, de forma geral: O que

[...] caracteriza o gênio, na medida em que possui um caráter natural, é a facilidade da produção interior e o

engenho técnico exterior de que dá provas em algumas artes (1996, p. 321). Acerca da inspiração para a obra,

refere ainda verificar-se que as grandes obras artísticas foram produzidas por motivos exteriores. [...] A atitude

do artista é, então, a de um talento natural que se encontra em face de um assunto que já existe; um acontecimento exterior, uma ocasião oportuna I[...] incitam-no a desenvolvê-lo e servir-se dele para se exprimir

HEGEL, Georg Wilhelm Friederich. Curso de estética: o belo na arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996, 323).

272 GOLDMANN, Lucien. Sociologia da literatura. Lisboa: Estampa. [s.d.], p. 43. 273 Ibidem.

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