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Escritos de ambiência e cultura urbana

Em carta dirigida a João Condé e publicada em 21 de julho de 1946 no Suplemento Letras e Artes do jornal A Manhã, Guimarães Rosa explicava por que escolhera, em Sagarana, o interior de Minas Gerais como palco de sua ficção:

Àquela altura, porém, eu tinha de escolher o terreno onde localizar as minhas histórias. Podia ser Barbacena, Belo Horizonte, o Rio, a China, o arquipélago de Neo-Baratária, o espaço astral, ou, mesmo, o pedaço de Minas Gerais que era mais meu. E foi o que preferi. Porque tinha muitas saudades de lá. Porque conhecia um pouco melhor a terra, a gente, bichos, árvores. Porque o povo do interior – sem convenções, “poses” – dá melhores personagens de parábolas: lá se vêem bem as reações humanas e a ação do destino: lá se vê bem um rio cair na cachoeira ou contornar a montanha, e as grandes árvores estalarem sob o raio, e cada talo do capim humano rebrotar com a chuva ou se estorricar com a seca.1

Tomada essa confissão ao pé-da-letra, o regionalismo de Guimarães Rosa deveria sua eclosão a três fatores primordiais: um afetivo – a saudade da terra natal; um pragmático- racional – a maior familiaridade com o objeto; um estético-metafísico – a possibilidade oferecida para a apreensão e representação de aspectos de uma humanidade mais pura e verdadeira e do modo como as vidas sofrem as suas mutações. O êxito do livro de estreia avaliza a decisão e, em teoria, promove as três condições acima ao patamar de fórmulas de sucesso. Bem realizar uma obra e alçar-se a escritor célebre demandariam a feliz seleção de uma matéria rara e profícua sobre a qual tivéssemos extenso domínio e com a qual cultivássemos empatia profunda e genuína. Nos 21 anos seguintes, Corpo de baile, Grande sertão: veredas, Primeiras estórias e Tutameia recolocam os mesmos requisitos e a mesma estratégia de modo intensificado, porquanto Rosa incursionará pelo espaço do sertão (e entre a sua gente) de maneira cada vez mais incisiva e programática. Como decorrência das pesquisas de campo e bibliográficas e dos inúmeros depoimentos e histórias fornecidos pelos habitantes interioranos, amplificam-se conhecimento, conexões sentimentais, e perspectivas a explorar.

Quis o destino, porém, que Guimarães Rosa fosse um homem cosmopolita, um estudioso sem fronteiras e um espírito sensível à multiplicidade das manifestações mundanas.

1 Carta reproduzida em ROSA, Vilma Guimarães. Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008, p. 443.

Donde resultou que as ligações emocionais, a erudição enciclopédica e a percepção dos problemas existenciais humanos, embora tendo no espaço geográfico do sertão a sua fonte priviliegiada, a ele não pudessem ficar restritos. Rosa viverá 13 anos em Belo Horizonte, 4 em Hamburgo, 2 em Bogotá, 3 em Paris e 24 no Rio de Janeiro, totalizando 46 anos de vida a residir em grandes centros urbanos2. Não parece razoável assumir, sem maiores investigações, que quase meio século de experiências citadinas não tenha agido sobre a sua produção literária. O fato é que agiu. Uma recensão dos textos de Estas estórias e Ave, palavra, acrescidos das narrativas inacabadas do arquivo de Guimarãse Rosa, irá distinguir mais de 30 composições em que o sertão (ou outra região interiorana do Brasil, como o Pantanal) não provê o “cenário” dos acontecimentos ou reflexões. Chamarei de “ambiência urbana” a atmosfera que predomina nesses escritos, em que eventos, assuntos e objetos associados a um meio culto, intelectualizado e regido por problemas e relações interpessoais distintos do mundo rural (pelo menos em superfície) têm a sua aparição ou desenvolvimento. O status dessa literatura na obra de Rosa é ambíguo, contudo. Em seus livros canônicos publicados em vida, a cidade aparece, em geral, muito discretamente, como ponto de fuga; ou pontualmente, em contos como “Darandina” e nos prefácios de Tutameia. Os textos de ambiência e cultura urbana, Guimarães Rosa deu-os aos jornais, e relegou-os, por fim, a coletâneas heterogêneas que nem pôde ver impressas. É como se eles precisassem ser escritos, mas não devessem manchar um percurso literário zelosamente edificado sobre a mitopoética sertaneja3.

Uma abordagem crítica desses escritos deverá passar, com maior ou menor profundidade, com maior ou menor êxito, pelas seguintes indagações: (i) o que existe no tema ou episódio de vinculação urbana que se fez pertinente de elaboração literária no imaginário de um escritor tão comprometido com o mundo do sertão?; (ii) essa ambiência “alternativa” impõe novas exigências ou determinações formais para a configuração do texto rosiano?; e (iii) que tipos de efeitos de sentido específicos o autor potencializa a partir esse novo “terreno” literário? A resposta para a primeira pergunta passa pela admissão de que um grande escritor não pode ter seu escopo de atuação limitado por um grupo fechado de motivos, tipos de personagens, espaços geográficos ou procedimentos formais: como já adiantamos, a faculdade de engendrar simpatias, estimular o estudo aplicado e dar origem a eventos extraordinários ou genuinamente

2 Fechando a conta dos 59 anos da existência de Guimarães Rosa, serão 9 anos passados em Cordisburgo e 4 anos entre Itaguara e Barbacena.

3 A título de comparação, quase todos os contos “sertanejos” de Primeiras estórias e Tutameia também estamparam primeiro as páginas de jornais e nem por isso foram deixados de lado.

representativos não é prerrogativa do sertão. Quanto à segunda pergunta (de que modo o conteúdo regula a forma?), mostraremos que existem, de fato, algumas características que se manifestam com maior tendência nesses escritos urbanos, mas, outrossim, que muitas das técnicas retórico-compositivas e dos dilemas relevantes da ficção rosiana independem da paisagem em que estão insertos, havendo profusas interseções formais e temáticas entre as estórias do sertão e da cidade.

Opressão, introspecção, desajustamento

Na primeira entrevista concedida por Guimarães Rosa após a publicação de Sagarana, o escritor afirmou:

O regionalismo de Sagarana talvez não seja um gênero, mas sim uma contingência. À medida que vou vivendo e sonhando, participando de um mundo diferente do da minha infância, vou sentindo que mais tarde serei capaz de me tornar um escritor da

cidade, quando os fatos e as pessoas de hoje forem partes da minha memória,

constituírem lembranças e saudades, como as de Cordisburgo e Itaguara.4

Fatos, pessoas, lembranças e saudades tomam uma fisionomia bastante peculiar em grande parte da literatura de ambiência e cultura urbana de Guimarães Rosa: a forma de uma disforia sem horizontes de superação. Mesmo variados os temas e a conformação textual, algumas constantes atravessam esses escritos que, pela sua recorrência e diferenciação com respeito aos traços da obra sertaneja padrão de Rosa, parecem ser determinados por essa incursão pelo mundo citadino, mesmo que a intenção do autor não tenha sido disso de todo consciente: a sensação de desajuste e distanciamento social, isto é, de não pertencimento à comunidade e seu modo de vida; a relação conflituosa com o outro; o recurso à introspecção como fórmula confessional do discurso; o sentimento de angústia, opressão e melancolia; a impossibilidade de equacionar os conflitos e operar uma mudança benéfica para a vida das

4 BORBA, José Cesar. Histórias de Itaguara e Cordisburgo. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 19 maio 1946, grifos meus.

personagens; a larga aplicação da experiência autobiográfica do autor, muitas vezes minimamente mascarada.

Ladislau

Excetuados aqui os primeiros contos publicados entre 1929 e 1930, o ambiente urbano invadirá a literatura rosiana tão cedo quanto a data de sua primeira viagem à Europa. No arquivo literário de Guimarães Rosa, um dossiê de notas identificado pela rubrica Europa, Cidade, Alemanha, Itália encerra uma narrativa sem título, composta de 4 fólios datilografados em tinta vermelha sobre um papel jornal bastante envelhecido5. Conquanto o escrito prescinda de datação, seu conteúdo e o aspecto gasto do suporte legitimam a conjectura de ter sido ele redigido à época em que Guimarães Rosa viveu na Alemanha, entre 1938 e 1941.

Um narrador onisciente em terceira pessoa descreve os primeiros momentos da chegada de um navio à costa da Alemanha, a partir da perspectiva de um dos passageiros, nomeado Ladislau. Algumas operações de bordo são detalhadas e personagens são caracterizadas, mas o foco desse fragmento de narrativa são os pensamentos e o estado-de-espírito de Ladislau, exteriorizados, muitas vezes, pelo emprego do discurso indireto livre. A estória se interrompe, contudo, sem que o protagonista alcance ver a terra europeia pela primeira vez em sua vida.

Apesar de o relato ter seu cunho testemunhal disfarçado pela instalação de um narrador heterodiegético, múltiplas e indisputáveis evidências nele introduzidas endossam a possibilidade de reputá-lo como uma ficcionalização da experiência autobiográfica do próprio Guimarães Rosa:

1. “Ladislau” teria sido o primeiro nome escolhido por seus pais para batizar o autor6; 2. O navio, “General Artigas”, citado na narrativa, é o mesmo que levou Rosa à

Alemanha;

3. Ladislau tem trinta anos, a mesma a idade de Guimarães Rosa quando embarca para a Europa;

4. Alude-se duas vezes a uma “cidadezinha de Minas Gerais” na qual o protagonista teria passado a sua infância;

5 FJGR/IEB-USP, JGR-EO-01,01; p. 172-175. A partir de agora, citações retiradas desse manuscrito serão indentificadas apenas pelo número da página em que se encontram.

6 Diz Vilma Guimarães Rosa: “Este [Guimarães Rosa], pelo gosto paterno, se chamaria Ladislau. Mas prevaleceu o João, escolha em honra de São João, que nascera três dias antes...”. Cf. ROSA, Vilma Guimarães, op. cit., p. 395.

5. O destino de Ladislau é explicitamente referenciado como não menos que o “Consulado Geral, em Hamburgo”.

Não será descabida, destarte, a hipótese de Guimarães Rosa, em terras germânicas, ter iniciado um romance autobiográfico a glosar a sua primeira estada europeia. Que a narrativa truncada sugira romance e não conto ou novela, parece justificar o andamento lento, a constituição de uma galeria de personagens, a diligência na exploração psicológica do herói, a inexistência, em curto alcance, de intriga ou conflito. Continuado, “[Ladislau]” poderia ter amadurecido como um romance urbano centrado na introspecção de uma personagem culta.

No domínio técnico-composicional, “[Ladislau]”, embora redigido de forma segura e aspergido de felizes escolhas expressivas, é uma narrativa convencional quando comparada aos contos de Sagarana e ao restante da obra rosiana: não há rastros de neologismos ou sintaxe arrevesada e a narração é cronológica (com incursões retrospectivas bem marcadas) e espoliada de obscuridades, sendo meta do narrador explicar eventos e sensações íntimas o mais clara e analiticamente possível; o tom é grave e sorumbático. No nível estilístico, o texto está impregnado de imagens, ora na forma de comparações explícitas, ora de construções metafóricas:

O que Ladislau sentiu foi como um pequeno susto, como que ao toque de um

despertador de manhã cedo, ou, no meio de uma dança, brusca parada da orquestra.

(p. 172)

Sete horas da noite, ainda com muita claridade, flutuando no cinzento. (p. 172) Pensar é às vezes coisa esquiva, livre e alta, como a música. (p. 172)

Não era como ele, Ladislau, que sorria mas escapulia, isolando-se como gota de óleo,

na água insípida dos grupos de gente. (p. 173)

[...] fantásticas visões que subiam para o mundo invisível, cavalgando o aroma das

tintas de impressão, e do papel bonito. (p. 173)

Porque o homem [Augustin Klein] se aplicava à “sua” Alemanha, como sobre árdua

lição esquecida, tentava refazer o seu passado. (p. 174)

E sempre que podia, [Diniz] se isolava, como um animal doente. (p. 175, todos os grifos são meus)

Acompanhando o olhar de Ladislau e tingido dos sentimentos dessa personagem – que logo qualificaremos –, esse princípio de narrativa desvela como objetivo secundário apresentar

uma espécie de painel do microcosmo que constitui o navio. Um grupo numeroso de personagens aparentemente acessórias vai desfilando ao longo do texto, aparecendo e desaparecendo, num movimento que tem correspondência formal com as perambulações de Ladislau pelas dependências da embarcação e o fluxo de suas meditações: “Bitte Schon”, o steward atencioso; Frau Doss, viúva espalhafatosa e de posses; o “Poeta d’Água Doce”, pálido e lúgubre; Herr Juul, “o da Bayer”; Herr Hohnold, ruivo; Brício, gorducho, desenvolto, leviano; Annemarie Klein, de ascendência alemã, mas brasileira e interessada em Ladislau; Herr Klein, interessante e com os mesmos gostos e temperamento do protagonista; Dr. Hänfling, ex-soldado com queda pelo pôquer; Amaral, mordaz; Diniz, o apaixonado que deixara a amada no Brasil. De cada personagem ficamos sabendo algo dos traços e da vida pretérita, procedimento que acaba esboçando um quadro social em diminuto das espécies de viajantes que cruzavam o Atlântico rumo à Europa naquele final da década de 1930. É provável que, com o desenvolvimento do enredo, o panorama saísse enriquecido.

O motivo axial de “[Ladislau]”, todavia, é o impacto que a chegada à Alemanha provoca no herói, não sendo casual que a narrativa tenha início justamente à embocadura do rio Weser, uma entrada fluvial do noroeste do país. O jogo no qual Guimarães Rosa mergulha a sua personagem é baseado numa radical oposição entre expectativa – os sonhos, esperanças e promessas da primeira viagem à Europa – e aquilo que Ladislau vem a verificar ou pressente ser a realidade. Na forma preambular em que foi legada, “[Ladislau]” é uma narrativa de desencanto.

O estado de frustração tem a sua manifestação primeira no fato de Ladislau não ser capaz de experimentar nenhuma excitação ou maravilhamento no instante de seu avizinhamento da Alemanha. Pelo contrário, tudo o que ele visualiza é prosaico e pouco atraente: sirenes, nevoeiro, manobras da tripulação, a gente do navio se divertindo como dantes:

Era o momento de reviver, em toda a sua veemente ânsia, os momentos mais caudalosos e agudos de desejos: as leituras aguçantes, as facilidades adivinhadas, as belezas tanto imaginadas... [...] E, no entanto, logo agora a realidade se escoava regular, prosaica, sem violência, sem o impacto fulgurante de um milagre... Aquele acontecimento, tão transcendente e coroatório na sua vida, estava faltando festa. [...] Mas a realidade inundava tudo, vulgar e estúpida. (p. 172-173)7

7 Esse sentimento de frustração é similar ao que acomete Manuelzão, em “Uma estória de amor”, incapaz como Ladislau de abrir-se para a condição de gratuidade e extroversão da festa que organiza e preside, constatação que antecipa um dos principais argumentos desta tese, de que existe uma permeabilidade inconteste e copiosa de temas,

Dramatiza-se o confronto entre o desejo e a impotência do homem em satisfazê-lo, seja em virtude da imperfeição inerente às coisas, seja pela deficiência do próprio indivíduo em aceitar que o real nunca pode se ombrear com a miragem: “A Europa, queria-a irreal, se transmudando continuamente em beleza, qual lavor de fadas, e com outra ordem de acontecimentos, de leves leis, onde só a alegria fosse possível” (p. 173). A narrativa procura construir um Ladislau estranho e sensível, descontente da vulgaridade do mundo e das pessoas, iludido por idealidades e belezas essenciais inalcançáveis – um ser destinado a eterno estado de carência. A ele Annemarie Klein teria dito: “— O senhor é um ‘únikum’ (p. 173). Mais à frente, o narrador pergunta: “Devia estar alegre, e alegre estava. O que faltava então?” (p. 173). Além, num parágrafo filosofante, duas formulações denunciam o ideal malogrado: “Só na amplitude livre do espírito, na virgindade pura do ser livre e sem liames, residiria a exaltação soberana. Só no abstrato o espírito poderia abarcar a totalidade do território que é seu legado” (p. 175).

Um ano apenas após a escrita de Sezão/Contos, Guimarães Rosa desliga-se momentaneamente do encantado e tumultuoso universo sertanejo para delatar, sobre o pano de fundo de uma atmosfera urbana, requintada e convencionalizada, a desilusão de uma alma ávida de sublime no seu atrito com a banalidade e pequenez do mundo. Guimarães Rosa recusa Guimarães Rosa? À extroversão, segue-se a introversão. À alacridade, a melancolia. À comunidade rural, a sociedade citadina. E, no entanto, talvez não seja exatamente isso. Sezão/Contos, de 1937, já continha duas narrativas (futuramente renegadas) em que o tom reflexivo e pessimista era predominante – “Uma história de amor” e “Questões de família”. Sagarana manterá dessa primeira versão do livro de contos a desolação de “Sarapalha” e o desconcerto do mundo (consertado, ao final, por um deus-ex-machina) de “Conversa de bois”. “[Ladislau]” expõe mais agudamente o contraste entre um Guimarães Rosa desabusado e jovial, e outro meditativo e elegíaco; um ocupado em ressaltar a mágica maravilhosa e redentora do mundo, e outro a remoer as suas calamidades, tragédias e desventuras; um que retorna inapelavelmente ao espaço folclórico de sua infância e outro que quer dele, o tanto quanto possível, distanciar-se.

motivos e procedimentos narrativos entre textos “marginais”, narrativas inacabadas e obra édita de Guimarães Rosa.

Rei de ouros, Rei de espadas

“[Ladislau]”, ao que tudo indica, foi iniciado no intervalo entre Sezão/Contos e a publicação de Sagarana, e poderia não passar de uma composição oportunista instigada pelas excitações de uma viagem inédita. A disposição rosiana de se afastar do veio literário aberto por seu primeiro livro de contos sobrevive à efeméride, todavia. Rei de ouros, Rei de espadas é narrativa mencionada apenas uma vez nos índices de Guimarães Rosa: uma lista de obras ordenada alfabeticamente em que se acham Sagarana, Corpo de baile e Grande sertão: veredas, mas não Primeiras estórias (ver Anexo 1, índice 8). Já uma folha avulsa integrante dos manuscritos redacionais desse projeto permite datar com menor incerteza senão a escrita dos primeiros rascunhos, pelo menos o processo de concepção do empreendimento: trata-se de um debuxo autógrafo de folha de rosto de livro na qual se inscrevem, além do nome do autor e do desenho de cartas do baralho, três informações valiosas ao historiador: primeiro, a caracterização de Rei de ouros, Rei de espadas como “romance”, qualificativo aposto entre parênteses abaixo do título; segundo, a data de 1945, alterada, por meio de rasura, para 1946; por último, a referência à “Editora Universal”, casa que publicou as primeiras duas edições de Sagarana, sinalizando que, na altura do esboçar-se dessa folha, o relacionamento com a editora já havia sido firmado8. Naturalmente, é impossível precisar o efetivo grau de comprometimento e empenho de Guimarães Rosa no sentido de finalizar todo um romance entre anos de 1945 ou 1946. Em verdade, entre os poucos manuscritos do texto – aos quais se somam algumas páginas de esquemas, planos e “estudos” para a narrativa –, não existe versão que ultrapasse a amplitude de 25 fólios. Assim, a folha de rosto e a data nela inscrita podem não ter passado de exercício ocioso ou aspiração baldada. Não pode mesmo ser descartada a hipótese de ela resultar de um exercício lúdico aventurado antes mesmo de qualquer linha do texto ter sido escrita.

Outro manuscrito, contudo, adiciona um capítulo subsequente à história dessa narrativa. Antecedendo o texto de uma das versões do romance, uma nova folha de rosto traz agora o nome da “Livraria José Olympio, Editora” e a data de 19509, dados que nos induziriam a reconhecer que na mesma década do planejamento e escrita de Corpo de baile e Grande sertão: veredas, Guimarães Rosa também se ocupara de um romance que vinha idealizando, provavelmente, desde a primeira metade da década de 1940. Será importante, dessa maneira, tentar verificar o que o escritor mineiro pretendia com essa obra.

8 FJGR/IEB-USP, JGR-M-18,40. As primeiras duas edições de Sagarana foram publicadas pela Editora Universal, ambas em 1946; a terceira edição do livro, já pela Editora José Olympio, data de 1951. 9 FJGR/IEB-USP, JGR-M-18,27.

A investigação torna-se mais atraente quando constatamos que Rei de ouros, Rei de espadas, à primeira vista, pouco se assemelha ao que Guimarães Rosa tinha escrito até então ou ao que viria a escrever, no geral, mais adiante. Grosseiramente, esse princípio de romance inacabado conforma-se como uma narrativa em primeira pessoa na qual um narrador- personagem, à medida que relata suas ações num tempo presente ou resgata as memórias de um passado próximo, dramatiza os seus estados de consciência. O princípio estruturador do discurso é a análise: análise cerrada e cortante da personagem sobre si mesma, sobre as pessoas que a cercam e sobre o ambiente em que ela se vê inserida. Dentro da tipologia de romance que Alfredo Bosi parafraseia de Lucien Goldmann, esse fragmento de Rei de ouros, Rei de espadas pode ser classificado como “prosa subjetivizante”, pois

[s]ubindo ao primeiro plano os conteúdos da consciência nos seus vários momentos de memória, fantasia ou reflexão, esbatem-se os contornos do ambiente, que passa a 'atmosfera'; e desloca-se o eixo da trama do tempo "objetivo" ou cronológico para a 'duração psíquica' do sujeito.10

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