• Nenhum resultado encontrado

4 DIREITO, POLÍTICA E JUSTIÇA: A PARIDADE PARTICIPATIVA COMO

4.2 A esfera pública (re)pensada

Repensar o conceito de esfera pública é extremamente relevante quando falo de discursos e silenciamentos. Mas não poderia tratar de outra(s) visão(ões) sem passar pelo conceito de esfera pública habermasiana. Habermas elaborou o conceito no livro “A

transformação estrutural da esfera pública”, em 1962, e sua importância tanto política como

teórica, segundo Nancy Fraser (1992, p. 140), ajuda a evitar algumas confusões conceituais. Uma delas é sobre o conceito empregado pelos feminismos contemporâneos compreendendo que 'esfera pública' seria tudo o que não engloba o âmbito doméstico.

[...] uma confusão que envolve o uso da mesma expressão "esfera pública", mas em um sentido menos preciso e menos útil que o de Habermas. A expressão tem sido usada por muitas feministas para se referir a tudo que está fora da esfera doméstica ou familiar. Portanto, o uso da "esfera pública" neste caso identifica três coisas analiticamente diferentes: o Estado, a economia oficial do trabalho remunerado e os cenários do discurso público. (FRASER, 1997, p. 140).

No entanto, a não especificação dessas três esferas em uma única denominação traz consequências teóricas e político práticas, como exemplo, quando a luta pela desprivatização do trabalho doméstico e a relação de cuidados são identificadas como mercantilização (FRASER, 1992, p. 141). Para Fraser, o conceito de Habermas pode auxiliar a superar tais questões, uma vez que a “esfera pública”, (inicialmente)155 sobre a ótica deste autor, é

conceitualmente distinta do estado, pois é um local para “produção e circulação de discursos”, e da economia oficial uma vez que é um local “para debater e para deliberar e não para compra e vender [...] e estas distinções são centrais para a teoria democrática” (FRASER, 1992, p. 141). A esfera pública seria, portanto, um local em que as questões fossem oferecidas e debatidas a partir de um diálogo aberto, ou seja, “é o espaço genuíno no qual uma sociedade fundada na autonomia dos indivíduos realiza seus discursos de autocompreensão e desenvolve sua práxis discursiva de legitimação” (WERLE, 2013, p. 151).

Fraser (1992, p.141-142), então, assume como premissa que a “esfera pública” habermasiana é indispensável para a teoria social crítica e para a prática política democrática e, ainda, que para entender os limites da democracia, em uma sociedade capitalista, o conceito deve ser usado. Entretanto, o conceito elaborado por Habermas não é totalmente satisfatório, visto que se encontra limitado por algumas questões, como as desigualdades, mesmo alegando ser inclusiva. A ideia de esfera pública habermasiana

[...] carregava um ideal de discussão racional, sem restrições sobre questões públicas; essa discussão deve ser aberta e acessível a todos; interesses puramente pessoais seriam inadmissíveis, desigualdades de status seriam deixadas de lado e os envolvidos na discussão debateriam como iguais. O resultado de tal discussão seria uma opinião pública no forte sentido de um consenso sobre o bem comum. (FRASER, 1992, p. 143, grifo meu).

Fraser critica esse ideal de esfera pública (burguesa), pois, para ela, haveria um problema quando não se olha para as desigualdades, seria como dizer que elas não existem ou não são relevantes para se encontrar uma solução, fato que oferece vantagem para os grupos dominantes (Quando não se sabe qual injustiça predomina, como remediá-la?) e, outro ponto é que deliberar como iguais não é suficiente, é necessário uma igualdade social substantiva.

Esse ideal burguês é desconstruído à medida que parcelas não-burguesas começaram a ter acesso à esfera pública. Fraser ressalta que a questão social pela “luta de classes” separou grupos com interesses distintos, polarizando a sociedade. Menciona que protestos de ruas e acordos negociados à meia-noite, por parte dos interesses privados, substituíram o debate público baseado no bem comum. “Consequentemente, a democracia do estado de bem-estar, a sociedade e o estado se misturaram; a publicidade, como exame crítico do Estado cedeu lugar às relações-públicas e as mídias de massa montam shows que manipulam a opinião pública” (FRASER,1992, p. 143-144).

Baseada em revisitação historiográfica, os autores Joan Landes, Mary Ryan e Geoff Eley (FRASER, 1992, p. 143-144) sustentam que a versão habermasiana idealiza a esfera pública liberal e que, apesar da retórica da publicidade e acesso a todos, sempre foi constituída por algumas exclusões significativas, apesar de que “o que mais importa a Habermas é demonstrar que nela [esfera pública] se forma um ideal de humanidade, o qual é analisado nos seus componentes de liberdade, solidariedade mútua e igualdade” (WERLE, 2013, p. 156). Para Landes, Geoff Eley e Ryan156 a exclusão das mulheres da esfera pública é

ideológica, está relacionada ao gênero, e as exclusões de gênero “foram relacionadas com outras exclusões enraizadas no processo de formação de classe” (FRASER, 1992, p. 144).

Esse fato ajuda a explicar o agravamento do sexismo na esfera pública, que insiste em separá-la da esfera privada, funcionando como um código que diferencia e separa os superiores dos inferiores e que atribui os homens burgueses como uma “classe universal”. Todavia, há, para a Fraser (1992, p. 145), uma ironia, pois uma esfera que se diz pública, mediante um discurso público e racional, que prevê tratar questões de interesse comum e que pretende ser acessível a todos e a suspender a hierarquia de status se implanta como uma estratégia de diferenciação que visa a manter o público burguês como único e dominante.

No entanto, ressalta Fraser (1992, p. 147) que, pela historiografia de Ryan, é possível perceber que o público burguês nunca foi o único, surgiram públicos rivais, que incluem os nacionalistas, os campesinos populares, as mulheres da elite e os proletariados. Sempre houve uma pluralidade de públicos, conflitivos e competitivos entre si.

Com a expansão desses contrapúblicos, prossegue Fraser (1992, p. 150-152) a exclusão formal da participação das mulheres na esfera pública era uma questão de tempo, mas ainda havia (e ainda há) “impedimentos informais” que as mantinham (e ainda as mantêm) à margem desse espaço. Tais impedimentos são protocolos de discursos (estilo, decoro) que, segundo observações feministas, há uma tendência dos homens interromperem mais as mulheres, de falar mais e por mais tempo, enquanto as intervenções das mulheres são preteridas ou ignoradas. Fraser cita Jane Mansbridge ao ressaltar que a deliberação pode ser usada como uma “máscara da dominação” quando há a transformação do “eu” por “nós” na argumentação, fato que também se relaciona com a raça, a classe.

Às vezes os grupos subordinados não podem encontrar a voz correta ou as palavras para expressar seu pensamento e quando o fazem descobrem que não são escutados. São silenciados, induzidos a manter suas necessidades em evidência e se escuta dizer “sim” quando disseram “não”. (MANSBRIDGE, 1990 apud FRASER, 1992, p. 151).

Então, como as desigualdades podem ser usadas como meio de reprodução da dominação por meio dos discursos mantendo a marginalização das mulheres nesse espaço, para que uma esfera pública que seja capaz de incluir as mulheres com uma participação paritária, substancial, é necessário que “as desigualdades sociais sistêmicas sejam eliminadas [...] a democracia política requer uma igualdade social substantiva” (FRASER, 1992, p. 154).

Desta forma, uma resposta à exclusão realizada pelo público dominante e que ajuda a expandir o espaço discursivo parte de uma diversidade de públicos alternativos, os

“contrapúblicos subalternos”, local em que os grupos subordinados “criam e circulam

contradiscursos para formular interpretações sobre seus interesses, identidades e necessidades” (FRASER, 1992, p. 156). Os contradiscuros devem incluir também assuntos que antes eram considerados privados, como a questão da violência contra a mulher e também permitir tanto a promoção de “públicos fracos”, em que há somente a formação de opinião quanto de “públicos fortes”, contemplando a formação de opinião e a tomada de decisão (FRASER, 1992, p. 169;172).

Entretanto, ao repensar a esfera pública, mais uma vez, Nancy Fraser (2008) reconhece que sua perspectiva anterior estava amparada a uma ótica Westfaliana, ou seja, do princípio territorial, do Estado Nacional, em que o conceito de cidadania limita as reivindicações por justiça, o que ela considera como um marco reprodutor de injustiças (ver mais no tópico 3.2.2 desta dissertação, p. 73). Passando, então, para um novo marco Pós- Westfaliano, a autora propõe uma esfera pública transnacional. No livro “Transnationalizing

Nash, Fuyuki Kurasawa, Kimberly Hutchings e David Owen) sobre a sua reformulação da esfera pública. Com exceção da mudança de seu princípio de “todos os afetados”, em geral, a autora não altera seus requisitos e considerações sobre o que já havia proposto, de que sua abordagem de esfera pública não é única, nem unitária, muito menos desconectada de outros locais de comunicação, reafirmando que é “uma das criadoras da ideia de múltiplos públicos ligados em uma rede comunicativa que abrange diferentes escalas”157 (FRASER et al, 2014, p.

133-134, tradução minha), mas é uma esfera que possibilite que todos os sujeitados a determinada estrutura de governança sejam sujeitos reivindicantes, ou seja, sujeitos que estão aptos e possuem legitimidade para reivindicar questões de justiça que os afetam.