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O ESFORÇO PARA RELACIONAR FÉ E VIDA

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O DISCURSO DA BASE E OS SEUS TEMAS FUNDAMENTAIS

2.2. O ESFORÇO PARA RELACIONAR FÉ E VIDA

A interação da fé com a vida é uma constante nas práticas pastorais das Ceb’s, pelo menos é o que podemos ver no discurso de assessores e no discurso da base. A maior parte do discurso de assessores dá ênfase ao engajamento político que aparece como desdobramento do comprometimento de fé do militante, enquanto a base discorre nuances diferentes. No discurso da base existe a indicação de que alguns dos padres que apóiam o movimento popular são grandes incentivadores do engajamento do povo das comunidades, entretanto o apoio que eles dão é somente no início, sendo que não há um acompanhamento no decorrer da militância política. “Os padres empurram para a política, mas na hora do vamos ver tiram o corpo fora; põem lenha na fogueira e saem” [sic] (SEDOC, 1986, 405).

Como o engajamento é um processo difícil, uma luta, o povo lamenta que não haja uma permanência do apoio, quando a situação se torna mais desafiante. Este lamento seria porque não tem suficiente condição de sustentar o seu engajamento e militância política ou porque sente como significativo que haja alguém diferente dele apoiando e, de certa forma, dando diretivas para o processo? Ou será o lamento a expressão de que para haver

continuidade da interação fé e vida é necessário que a comunidade eclesial continue acompanhando seu membro que se tornou militante político para alimentar a sua mística e espiritualidade?

Isso já foi percebido pelos assessores e denota que o processo da luta popular não é sentido do mesmo jeito por todos. Não poucas vezes o incentivo para a luta vem de agentes de pastoral e assessores que levantam a bandeira antes que o povo sinta a luta como sua. É o próprio povo da base que demonstra isto quando diz que “há confusão na cabeça das comunidades: uns com opção política e outros sem opção; se dividem; fé e política não faz casamento” [sic] (SEDOC, 1986, 405). Parece indicar que existe concretamente a dificuldade de emplacar na luta, ou seja, articular a base em torno da interação da fé com a vida, de modo que não seja apenas a aplicação do que é idealizado, mas um engajamento consciente por parte do povo. Apesar disso, no relato da base parece que a comunidade tem certa clareza sobre a importância disso, como afirmam:

Uma comunidade que só se preocupa em rezar, em fazer culto, não se preocupa com os outros irmãos; [...] Vamos arrancar algumas ripas do cercado! Vamos sair e ver o que se passa ao redor e tentar fazer alguma coisa, tentar libertar um pouco os mais próximos. [...] Nas reunião, às vezes, distribuímos tarefas e na outra reunião voltando quem se encarregou presta conta da tarefa que lhe foi confiada. Nas celebrações fazemos a reflexão do evangelho comparando a caminhada do povo de Deus naquela época com a nossa de hoje. [...] A gente procura sempre juntar o Evangelho com a vida porque não adianta celebrar só o culto sem fazer esta ligação... [...] A leitura da Bíblia sem a leitura da realidade é como separar a cabeça do corpo [sic] (SEDOC, 1975, 1068; 1978, 263; 1981, 171; 1986, 396).

Pelo que dizem, aos poucos parece que o povo vai manifestando a importância de não ter uma separação entre o que vive no culto e o que vive na vida em sociedade e isto vem junto com a identificação com o povo que tem sua história contada na bíblia. A leitura passa a ser feita com uma lente no texto sagrado e outra na realidade como se fosse uma coisa só, um corpo que vive pela atuação conjunta dos seus membros. O cuidado exclusivo com a vida de oração revela o esquecimento da responsabilidade social, do compromisso com o próximo; por isso a necessidade de ultrapassar os limites da casa de oração para ver a realidade, olhar o que se passa em redor e tentar fazer algo que ajude as pessoas a superarem seus problemas e se libertarem da opressão. Embora haja quem resista à mistura da fé com a vida, a maior parte do povo descobre aí o valor de sua fé e o valor de sua vida. Ele se sente impulsionado pela fé a agir na vida e impulsionado pela vida a buscar clareza e razão para a sua luta na fé.

Em alguns momentos o povo justifica o seu engajamento na luta política com a sua participação na vida de comunidade. Uma pessoa afirmou: - “Sou filiada ao PT por causa da

Igreja” (SEDOC, 1986, 405). O que demonstra que a luta por uma participação mais igual na comunidade despertava para a luta social e criava nas pessoas o interesse em buscar os meios próprios para sustentar esta luta. Como a política partidária era um caminho próprio para buscar maior incisão nas legislações e nos movimentos de reivindicação, então eles identificavam o Partido dos Trabalhadores, de então, como o que respondia aos seus anseios. Se a Igreja apresentava as características da organização atenta às necessidades do povo, os militantes das Ceb’s, que se descobriam com aptidão para o mundo da política, procuravam filiar-se a partidos que continham em seus estatutos e propostas o caráter de comprometimento com as causas do povo. Parece até que a escolha pelo engajamento político partidário faz parte das escolhas orientadas pelo compromisso de fé.

O problema do desenraizamento desses que se inseriram na política partidária não parece ser sentido no princípio da caminhada das Ceb’s, ao menos pelo que pudemos ver dos depoimentos documentados até o final da década de setenta e início da de oitenta. Vimos no discurso de assessores que à medida que o indivíduo se engajava neste tipo de política, ia se descolando da prática de base e, conseqüentemente ia perdendo o apoio e acompanhamento por parte dessas mesmas comunidades. No entanto, a primeira compreensão que o povo tem da implicação social e política de sua fé está ligada aos movimentos reivindicatórios que surge nos grupos formados a partir da própria comunidade. É por isso que não há no seu discurso uma separação entre a luta para exercer papel na comunidade e a luta por fossa, por terra, por escola, e assim por diante, conjugando comunidade de fé e luta social. Pelo menos no princípio, o povo parece compreender mesmo que as comunidades de base onde ele vive são como são porque misturam a vida com a fé e transitam entre o culto e a realidade como um caminho normal de implicação recíproca. Vão ao templo para celebrar o que vive e ali são incentivados, pela história de outros povos e pela experiência de Deus próximo a si, a retornarem para a vida com vontade de transformar o mundo.

A mistura da fé com a vida muda as orações tradicionais e trazem para o interior do culto na comunidade os problemas vividos na realidade. Assim consta num relato:

[...] Da falsificação dos documentos, livrai-nos Senhor! Da confiança cega do povo nos proprietários e políticos... Das nossas roças invadidas...

Pelas campanhas de filtros, fossas e saúde que estão se realizando, obrigado Senhor!

Pelas cercas derrubadas pelo povo...

Por todos que lutam pela defesa dos nossos direitos... [...] [sic]55

55 Cf. Relatório do Encontro Provincial de Animadores de CEBs MA (1981). In. Centro Memória e Caminhada da Universidade Católica de Brasília (UCB). Banco de Dados [Material digitalizado]. Prateleira 1981. Arquivo 232.1 4647a.

Se nas preces comunitárias a vida se encontra, isto indica que o movimento inverso é também correspondente, ou seja, por causa da fé é que a luta por melhores condições de vida no dia-a-dia acontece. É bem presente nas comunidades de base, conforme os relatórios, esse esforço de não alienar a fé da vida e nem esta daquela, pois isto parece ser uma das grandes conquistas dessa nova forma de vida eclesial. De fato, a noção de libertação endossa este movimento de, à luz da fé comunitária, perceber as inadequações da vida em sociedade, sobretudo a situação de opressão e mover as pessoas para a superação.

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