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Esmiuçando as concepções pessoais sobre o trabalho ambulante

8. TRAJETÓRIAS, SENTIDOS DO TRABALHO E PROJETOS FUTUROS

8.2 Sentidos atribuídos ao trabalho ambulante

8.2.1 Esmiuçando as concepções pessoais sobre o trabalho ambulante

Rosa considera o comércio ambulante muito cansativo e, por isso, em um primeiro momento, tem dificuldade em perceber vantagens nesta ocupação. Ainda assim, reconhece que nas ruas consegue ganhar mais do que nos outros locais em que trabalhou. Para ela, o trabalho de ambulante é sofrido, sendo uma oportunidade quando a pessoa está desempregada e não tem outra opção.

A opinião de Rosa quanto à sua atividade atual sofreu variações ao longo das conversas que tivemos. Ao mesmo tempo em que reconhece prontamente as desvantagens do trabalho nas ruas, lembra que também se deparou com dificuldades em outros locais, a exemplo de uma empresa em que trabalhou por um ano:“ era muito sofrido, não tinha horário de almoço, era domingo a domingo, só tinha uma folga na semana, aí era difícil pra mim”.

Para Rosa, o ideal seria trabalhar como doméstica em uma casa de família – desde que com uma boa remuneração, o que normalmente não ocorre, conforme observa. Uma vantagem deste trabalho seria a possibilidade de dormir lá, o que a pouparia da necessidade de pagar aluguel. Sua opinião contrasta com as obsevações de grande parte das mulheres entrevistadas por Garcia et al. (2010), que associavam o trabalho doméstico à humilhação – e preferiam, portanto, a autonomia proporcionada pelas ruas. Isto revela tanto diferenças nas vivências particulares de cada pessoa que influem significativativamente na forma como percebem o trabalho (Blustein, 2011) quanto a importância que a sobrevivência e a redução de gastos assume na vida de Rosa, que tem no aluguel do imóvel em que mora uma despesa consideravelmente alta. Ao longo de sua trajetória, a baixa remuneração aparece como principal motivo para que optasse por trocar de ocupação. Assim, embora tivesse prazer em

trabalhar como ascensorista e empregada doméstica, precisou buscar ocupações que lhe oferecessem um maior rendimento.

Rosa também é quem mais demarca dificuldades da atividade como ambulante relacionadas ao convívio com colegas e clientes. Nesse sentido, o aspecto relacional do ato de trabalhar aparece, em parte, em sua faceta negativa, o que possivelmente influencia os sentidos que o trabalho atual assume para ela.

Na narrativa de Sandra, a ideia de trabalho como fonte de sobrevivência, conquanto reconhecida como extremamente importante, não é o elemento de maior destaque: o trabalho precisa, sobretudo, ser fonte de satisfação e, portanto, estar associado àquilo que ela gosta de fazer. Ela, que nunca teve o emprego formal como meta, considera que a forma como trabalha é uma escolha, uma opção de vida. Na sua trajetória, sempre priorizou a possibilidade de trabalhar com aquilo de que gostava. Sua relação com o estudo segue este mesmo padrão: optou por estudar temas de seu interesse e que contribuíam para a sua formação pessoal, em vez de seguir uma lógica mercantil e buscar cursos que poderiam propiciar oportunidades de trabalho. Esta satisfação está atrelada sobretudo ao produto que vende, que tem a ver com seus gostos pessoais e atrai um público que também se identifica com este universo. A imbricação do trabalho com outros elementos de sua vida pessoal é, portanto, evidente.

Ao ser perguntado sobre o que seria, para ele, o trabalho ideal, foi justamente a possibilidade de não trabalhar e viver viajando que Romário ofereceu como resposta. O trabalho aparece sobretudo associado à sobrevivência. Em sua narrativa, destaca que o comércio ambulante é seu “pé de meia” e que o dinheiro obtido com as vendas na rua lhe possibilitou comprar a sua casa. Ao mesmo tempo, o trabalho também aparece associado ao prazer, pois conversa com muitas pessoas, brinca e faz amizades: “com chuva ou sem chuva, é gostoso trabalhar”. Certa vez, decidiu abrir uma loja, mas fechou em cerca de quinze dias, alegando saudade da rua Teodoro Sampaio.

Além disso, considerando as dificuldades que muitas pessoas têm em obter trabalho, uma outra dimensão emerge na narrativa de Romário: o trabalhar enquanto privilégio. Deste modo, mesmo um trabalho que ofereça baixa remuneração deve ser valorizado, porque ficar sem trabalhar é uma possibilidade ainda mais danosa.

Se você tiver um jeitinho de trabalhar, continua focado naquele serviço. Eu sempre falo pra alguns colegas, conhecidos, aqui. Ganhando um salarinho de 1000 reais, 1200 reais. E falam que não dá pra viver com esse salário. Eu falo: “meu amigo, é o seguinte: é ruim com ele, pior sem ele. Porque cê tá trabalhando cê tá recebendo. E se você ficar desempregado, de onde vai tirar dinheiro? Então continua, mantém seu emprego, porque é daí que você tá tirando alguma coisa”. [Romário]

Ao longo de toda a narrativa de Alceu, também coexistem várias significações atribuídas ao trabalho, mas observa-se que este aparece associado, sobretudo, à sobrevivência: para garanti-la, todo trabalho era válido, formalizado ou informal, com contrato por tempo indeterminado ou temporário. Como criança que passou dificuldades, as referências à luta pelo pão de cada dia são inúmeras e o comer bem aparece como um dos principais requisitos para se poder trabalhar. O comércio ambulante, em sua opinião, deveria ser realizado pelas pessoas mais pobres, para as quais a rua de fato aparece como uma das melhores alternativas possíveis. Sua crítica se direciona às pessoas que, tendo muito mais do que o suficiente para o seu sustento, estão constantemente buscando modos de lucrar mais, tirando a oportunidade de quem realmente precisa daquele trabalho para sobreviver.

A fala de Alceu exalta o trabalho como algo que o homem e a mulher nasceram para fazer. A satisfação e a identificação com o que se faz também aparecem de forma marcante na sua fala e, em sua opinião, são elas que devem orientar a escolha do trabalho a ser realizado por cada pessoa. Para ele, quem gosta de trabalhar na rua, salvo raras exceções, não se adapta a outro lugar. O trabalho ideal é aquele que é feito com amor pelas pessoas, revelando que a dimensão da satisfação com o trabalho também é importante em sua percepção. Alceu acredita que tirar o trabalho da população, como foi feito na gestão de Kassab, equivale a tirar a alma das pessoas, privando-as da possibilidade de garantir o seu sustento e a sua sobrevivência.

Na opinião de Alceu, todo trabalho é válido. “Tudo é digno. Catar papelão é digno, catar latinha é digno, pedir é digno, roubar não”. Ainda que muitos trabalhos que realizou ao longo de sua trajetória tenham lhe oferecido uma série de dificuldades, que são reconhecidas pelo próprio Alceu e influenciaram sua opção pela informalidade, o pior trabalho para ele era aquele que provocava um incômodo físico, este avaliado como insuportável.

A identificação com a categoria “trabalhador”, em oposição ao “vagabundo” ou “ladrão”, também é evidente na fala de Alceu – questionando um pareamento que parte da população ainda faz do comércio ambulante com a criminalidade. Tanto ele quanto seus irmãos se orgulham de terem conseguido manter a dignidade apesar de todas as dificuldades financeiras que passaram.

Para Carlão, o trabalho é visto enquanto fonte de sobrevivência, mas é importante que traga, também, identificação e autonomia. Parte do seu trabalho, a confecção de bijuterias, ele faz por prazer, como um momento em que pode relaxar: no seu tempo livre, sente vontade de criar novos brincos, colares e acessórios. Trabalhar na rua também o agrada, e é difícil, para ele, ver desvantagens neste tipo de trabalho. Carlão, assim como Alceu, considera que ser seu

próprio chefe oferece uma motivação para trabalhar diferente daquele que recebe ordens de terceiros.

Se eu sair daqui eu já era. Acabou comigo. Eu faço tudo! Faço tudo. Sei fazer instalação, sei rebocar uma casa, sei fazer tudo. Mas eu gosto é de fazer isso aqui. Que aqui eu tenho minha liberdade. Eu tô aqui, de repente saio, vou lá num bar tomar um café, depois vou lá embaixo. É livre. É liberdade, né? E o gozado é que a gente não falta, né? Todo dia tá aqui. O povo na loja não vem trabalhar, pô, caramba, o cara não vem trabalhar. Agora ele tem funcionário. Você é dono do seu, cê vem todo dia, todo dia cê tá aqui. [Carlão]

Há, também para Carlão, uma identificação com a categoria “trabalhador”. Tanto é que deseja continuar trabalhando após a aposentadoria – porque, segundo ele, “se a pessoa aposenta e se encosta, já era, fica inválido pro resto da vida. Tem que continuar ativo, trabalhando”.

Concordando com a ideia de Carlão, João considera o trabalho tão importante para a sua vida que deixar de trabalhar um único dia lhe faz mal. A doença aparece ligada não ao excesso de trabalho, mas à sua falta: “não consigo ficar parado, só no domingão. Sem trabalho eu fico doente”. Além disso, o trabalho está ligado à sobrevivência e às suas conquistas, como a compra do seu carro. Embora tenha trabalhado um bom tempo da sua vida em empresas, decidiu sair por conta do baixo salário. O trabalho na rua é visto como vantajoso tanto por oferecer uma remuneração maior quanto pela autonomia que oferece.

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