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CAPÍTULO II AS INSPIRAÇÕES E A MILITARIZAÇÃO DO HOSPITAL

3. O espírito militar da Ordem

Em meados do século XII, menos de cem anos após a fundação do Hospital, Raymond e seus irmãos serventes enfrentaram uma situação potencialmente mais grave em relação à sua estabilidade. Em decorrência do financiamento e da participação em uma incursão militar extremamente mal sucedida no Egito, a Ordem acabou se prejudicando seriamente em termos políticos e financeiros, e teve que tomar medidas drásticas para retomar seu prestígio na Terra Santa e na Europa (RILEY-SMITH, 1967, p. 73). Este delicado contexto, apesar de trágico, marcava a gradativa transição dos Hospitalários a um cenário absolutamente distinto daquele anteriormente trabalhado pelas bulas papais e normatizações internas.

A Ordem paulatinamente mesclou suas funções assistencialistas originais ao aparato militar dos Estados Cruzados entre os anos de 1118, com a ascensão de Raymond à hierarquia de Grão-Mestre36, e 1187, com a retomada de Jerusalém pelas forças de Saladino. Embora as atividades caritativas e os demais serviços médicos e sociais estendidos aos peregrinos não tenham perdido forças até o ano de 1291, os irmãos militares certamente tornaram-se focos da atenção popular neste intervalo de tempo. Isto não apenas catapultou as responsabilidades administrativas do Hospital, mas também prejudicou parte da credibilidade dos irmãos serventes que, por uma questão infraestrutural de logística, não se envolveram em batalhas físicas.

Para que se compreenda o nível dessas pressões sobre o interior da Ordem, deve-se primeiro determinar as circunstâncias do acréscimo militar às atividades regulamentadas da instituição, e seu grau aproximado de influência sobre a opinião dos peregrinos e autoridades da época. Mais especificamente, é necessário compreender em que medida os cavaleiros foram treinados e/ou contratados pelo Hospital, e o possível cenário que demarcou seus privilégios sociais e políticos sobre os demais irmãos serventes. Quando, como e por que a assistência e a caridade, elementos norteadores da Ordem até o início do século XII, tornaram-se atributos meramente complementares de sua história?

36 Raymond era um homem de muitas percepções. Entre 1118 e 1120, e quase imperceptivelmente, as

homenagens que o Hospital estendia a João Esmoler foram substituídas pela proteção espiritual de São João Batista. É provável que tenha existido uma ligação direta entre a construção de novos hospitais, a ruptura com os beneditinos e a mudança de padroeiro, pois São João Batista era seguramente mais prestigiado e conhecido entre os peregrinos ocidentais. A mudança de patrocínio também pode ser justificada pelo fato de que em algum momento a Ordem incorporou às suas fundações um pequeno edifício nas adjacências da Igreja bizantina de São João Batista (NICOLLE, 2008, p. 17).

É fato que, já por volta da década de 1130, Raymond de Puy e sua instituição independente tinham acumulado prestígio e riquezas suficientes para contribuírem um pouco além com a proteção da Terra Santa. Em parte, essa proteção se dinamizou ao longo das duas décadas seguintes, com a aquisição ou construção de outros albergues e hospitais menores espalhados pelos territórios europeus e palestinos. Embora a data exata de cada uma dessas novas propriedades não esteja disponível, as bulas papais e outras correspondências dão conta de revelarem o contexto aproximado da maior parte delas. Contudo, a despeito da militarização ser um fenômeno de proteção gritantemente expansivo, seu rastreamento documental é muito mais complexo. O primeiro indício “oficial” de seu surgimento no Hospital é do início de 1182, com a formalização dos

Estatutos de Roger des Moulins, o oitavo Grão-Mestre da Ordem. Esta normatização

refere-se aos irmãos militares como “irmãos armados”, e inclui seu treinamento em uma pequena lista de “atividades paralelas”37 do complexo hospitalar.

Ainda no campo dos registros oficiais, somente após a queda de Jerusalém, em 1187, e o avanço da Ordem para a fortaleza de Margat, em meados de 1188, é que os irmãos militares receberam reconhecimento das autoridades seculares e eclesiásticas, e as novas regras e estatutos do Hospital passaram a descrevê-los em minúcias. No ano de 1206, ainda em Margat, o décimo segundo Grão-Mestre Hospitalário, Alfonso de Portugal, formalizou a normatização que previa com quantas espadas, escudos e cavalos cada um dos cavaleiros seria agraciado, e quais seriam as pré-condições para suas eventuais ascensões hierárquicas dentro da organização militar da instituição (VERTOT, History, I, p. 197-199). Armados, montados e acompanhados por escudeiros particulares, os irmãos militares gradativamente conquistaram a atenção de seus inimigos e aliados.

Não obstante, mesmo em termos de décadas, estabelecer a ideia de que o Hospital teria a iniciativa de invadir o contexto bélico da Terra Santa, especialmente fora de suas heranças assistencialistas, é uma tarefa complexa. Uma das tentativas mais esforçadas foi feita pelo pesquisador Alan Forey, que se dedicou a identificar em que medida a Ordem “enxertou” o espírito militar entre seus irmãos serventes antes de 1160, e em que compasso esse espírito se desenvolveu a partir das quatro ou cinco décadas seguintes.

37 O Estatuto de 1182 previa uma rotina dividida entre orações e discussões acerca de assuntos religiosos,

e exercícios de recreação, manutenção física, trabalho e treinamento marcial. Os irmãos de armas também foram informalmente “separados” por nascimento nobre ou comum, embora não houvesse diferença prática entre os dois contingentes.

Mas, se os estudos contemporâneos de Forey oportunamente indicaram a crescente belicosidade da Ordem em meados do século XII, por que seu envolvimento nas frentes de batalha levou quase trinta anos para ser mencionado em documentos oficiais? Raymond du Puy, Auger de Balben, Arnaud de Comps e Gilbert d'Aissailly, os quatro Grão-Mestres entre as décadas de 1120 e 1170, aparentemente tinham algum interesse particular em comum para não mencioná-la abertamente (FOREY, 1984, p. 75-80). Levando em consideração as muitas dificuldades pelas quais os Hospitalários passaram em relação à admissão de suas atividades exclusivamente assistencialistas, seria natural que seus líderes temessem pela desaprovação das autoridades à súbita inclusão de cavaleiros. O Hospital não podia se dar ao luxo de colocar seus incentivos financeiros em risco, muito menos o apoio real e papal.

Tanto Alan Forey quanto Jonathan Riley-Smith são cautelosos em suas análises, mas ambos sugerem que a militarização hospitalária pode ser muito mais antiga do que se imagina. Algumas correspondências de Raymond du Puy, dirigidas aos líderes da Igreja no Ocidente e escritas entre os anos de 1119 e 1124, usam a palavra “militia” como sinônimo de “irmão servente”, provável indicativo de que o Hospital já estava envolvido em algum nível de belicosidade na Terra Santa. É importante acrescentar, porém, que Raymond pode ter usado a palavra em seu sentido simbólico, consideravelmente popular à época, referindo-se a monges e funcionários leigos como “cavaleiros de Cristo” (RILEY-SMITH, 1967, p. 53-58). Riley-Smith não descarta a possibilidade desse “simbolismo” ser proposital, com o Grão-Mestre da Ordem subliminarmente preparando as autoridades eclesiásticas de Roma para a instrução militar que estava gradativamente impondo aos irmãos serventes. A despeito dos motivos e circunstâncias para a utilização do termo, parece indiscutível que Raymond já se enxergava em um campo de batalha.

É possível que Riley-Smith esteja certo em relação à cautela do Grão-Mestre. Grande parte dessas cartas foi escrita para agradecer aos prelados da Igreja pelos constantes auxílios espirituais, e, não menos importante, solicitar mais esmolas e doações aos Hospitalários. Logo no início de cada correspondência, Raymond comumente incluía a informação de que os irmãos serventes dedicavam-se tanto ao ministério da caridade quanto o clero de Jerusalém, e que suas forças em comunhão de recursos apenas dinamizariam o serviço. Nesse contexto, não há muito espaço para presumir que o Grão-Mestre teria chances de assumir a militarização sem ser rechaçado, mesmo porque o Hospital ainda não tinha propriedades suficientes para se afirmar no

cenário bélico da Terra Santa. Ao solicitar mais doações e concessões, Raymond poderia estar trabalhando justamente neste problema.