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2. O Primado da Graça no Comentário à Carta de São Paulo aos Romanos

2.5. A graça do Espírito Santo

Jesus Cristo foi «constituído Filho de Deus em poder, segundo o Espírito santificador» (Rm 1, 4a). A santificação humana acontece pela doação divina do Seu Espírito Santo. É Jesus quem confere ao Homem o Espírito Santo, o que denota a Sua divindade, como evi- dencia o apóstolo João em Jo 15, 26. Neste sentido, a graça santificante que nos justifica advém-nos de Jesus e do Espírito Santo: «fostes santificados, fostes justificados em nome do Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito do nosso Deus» (1 Cor 6, 11).

Os romanos eram gentios e ignoravam a lei de Moisés e, como tal, aparentemente, esta não lhes dizia respeito. Assim, por esta razão, como comenta São Tomás no capítulo 7, alguns aplicaram a referência paulina à lei como sendo a lei natural366, a qual era conhecida por todos durante a vida, «no entanto, esta interpretação aparenta não concordar com a

363 Cf. In Rom., c. 8, l. 6 (714). 364In Rom., c. 11, l. 4 (927). 365In Rom., c. 11, 1. 4 (929). 366 Cf. In Rom., c. 7, l. 1 (520).

intenção do Apóstolo que tem sempre em mente a lei de Moisés, quando fala sobre a lei sem a modificar qualitativamente»367. Desta maneira, é melhor afirmar que os cristãos romanos não eram só gentios, existindo entre eles muitos judeus368, e, assim, tem sentido a sua abor-

dagem à lei, pois, quando aborda a lei de uma maneira absoluta e indeterminada369, refere-se

sempre à lei de Moisés. A lei tem domínio sobre o Homem durante todo o seu tempo de vida e, como tal, é dissolvida aquando da morte. São Paulo, comparando com o matrimónio, afirma a morte para a lei com o intuito de poder existir uma entrega a Jesus ressuscitado de entre os mortos e, dessa maneira, ser frutuoso (cf. Rm 7, 4). Deste modo, comenta São Tomás no capítulo 7, sucede com os que integram o Corpo de Cristo e se tornam Seus membros, morrendo e sendo sepultados com Ele nas águas do baptismo e, morrendo para a lei, no sen- tido em que a obrigação da lei termina, podendo pertencer a outro, a Cristo, no qual, ressus- citando com Ele, recebemos uma nova vida370 e, como tal, «a obrigação da antiga lei cessa

em virtude da morte pela qual nós morremos com Cristo»371. Esta transformação opera uma

mudança substancial na medida em que, antes dela, o Homem vivia exclusivamente segundo a concupiscência da carne produzindo frutos para a morte eterna e, depois, passa a viver segundo o Espírito que impregna todo o seu ser, produzindo frutos para a vida eterna (cf. Rm 8, 9).

A escravidão à lei de Moisés é inexistente ao dar lugar, pela graça de Cristo que é a fé, à servidão do Espírito que nos dá um coração novo e um espírito novo ao invés da velha lei, pela qual ninguém será justificado diante de Deus (cf. Rm 3, 20). A transformação da vida segundo a antiga lei para uma vida que se oriente, não já pelos desejos carnais, mas pela Lei do Espírito é operada por graça de Deus, pela força do Espírito Santo pois «a lei do espírito liberta o Homem do pecado e da morte, pois na lei do espírito está Cristo Jesus. Logo, pelo facto de alguém estar em Cristo Jesus, é liberto do pecado e da morte»372. Consequentemente, como salienta o santo de Aquino no capítulo 8, «a lei do espírito é causa de vida; o pecado e a morte, que é um efeito do pecado, são excluídos pela vida, pois o pecado em si é uma morte espiritual da alma e, como tal, a condenação só se dá por meio do pecado e da morte. Então, nenhuma condenação existe nos que são em Cristo Jesus»373.

367In Rom., c. 7, l. 1 (520). 368 Cf. In Rom., c. 7, l. 1 (520).

369 O termo grego , lei, em Rm 7, 1, não é precedido de artigo, o que sugere tratar-se de uma lei

indefinida ou qualitativa em vez de ser uma lei definida.

370 Cf. In Rom., c. 7, l. 1 (527). 371In Rom., c. 7, l. 1 (528). 372In Rom., c. 8, l. 1 (601). 373In Rom., c. 8, l. 1 (601).

Desta maneira, como prossegue São Tomás no capítulo 8, a lei do Espírito [lex spiri- tus] pode significar, por um lado, o próprio Espírito Santo, sendo assim uma lei que é dada para o Homem ser induzido para o bem, pela habitação do Espírito Santo na mente para ensinar e instruir; e, por outro lado, pode significar o efeito do Espírito Santo, ou seja, «a fé

Jo 2, 27) e inclina os afectos para a caridade: Cor 5, 14)»374. A lei do espírito, também conhecida como nova lei [lex nova], é, por isso, o próprio Espírito Santo ou algo que o Espírito Santo produz nos nossos corações375.

São Paulo afirma, em Rm 8, 9, que, aqueles a quem escreve, vivem segundo o Espírito, e não segundo a carne e que, habitando, pelo amor, o Espírito Santo neles, é possível concluir que são templos de Deus (cf. 1 Cor 3, 16-17). Conclui o santo de Aquino, no capítulo 8, que os benefícios vêm para nós pelo Espírito Santo e que a ponderação de vida segundo a carne conduz à morte. Por esta razão, somos devedores a Deus pela sua graça imensa para con- nosco376, pois os que são filhos de Deus são herdeiros da vida gloriosa de Deus pelo facto de

que o Espírito os ilumina, ou seja, «quem é conduzido [pelo Espírito Santo] não age por conta própria. O Homem espiritual não é apenas instruído pelo Espírito Santo sobre o que deve fazer, mas o seu coração é também movido pelo Espírito Santo»377. Isto poder-nos-ia levar a pensar que São Tomás afirma que o Homem perde a liberdade e vontade tornando-se numa mera marioneta nas mãos de Deus, no entanto, não é isso que acontece. Em ordem a respon- der a esta questão torna-se importante aprofundar os efeitos do Espírito Santo em nós: temor e amor (cf. Rm 5, 5). O temor não se identifica com o medo, mas, pelo contrário, trata-se do temor de ser condenado e perder o bem que é o próprio Deus conduzindo, por isso, o Espírito Santo, por meio do temor, ao amor a Deus. O temor como efeito do Espírito Santo é graça de Deus infusa no nosso espírito378.

374In Rom., c. 8, l. 1 (602).

375 São Tomás de Aquino trata em In Rom., c. 8, l. 1 da concepção de graça incriada e graça criada,

embora não as nomeie desta forma. Para compreender esta associação, torna-se importante considerar que ele aborda a graça como sendo o próprio Espírito Santo ou os seus efeitos e, em segundo lugar, qual a concepção da tradição teológica sobre graça incriada e criada. A primeira «é Deus mesmo, enquanto Ele prederterminou no Seu amor desde toda a eternidade os dons da graça, enquanto se comunicou a si mesmo (graça de união) na encarnação à humanidade de Cristo, enquanto mora nas almas dos justos e enquanto se entrega aos bem-aven- meio destes actos»; e a segunda, a graça criada, «é um dom sobrenatural distinto de Deus ou um efeito causado por Deus». L.OTT, Manual de Teología Dogmática, Herder, Barcelona, 1966, 344.

376 Cf. In Rom., c. 8, l. 2 (633). 377In Rom., c. 8, l. 3 (635). 378In Rom., c. 8, l. 3 (641).

O Espírito Santo ajuda, segundo São Paulo, na relação com os eventos exteriores ao Homem, dirigindo-os para o bem (cf. Rm 8, 28-32). Neste sentido, «sabemos que tudo con- tribui para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados, de acordo com o seu desígnio» (Rm 8, 28), inclusivamente no que aparenta ser mau, Deus consegue tirar daí o bem, pois ele quer o bem do universo. Poderia ser questionado em que situações os pecados se ordenam para o bem, no entanto, não existe nenhuma concretização em que tal facto se verifique dado que, como constata Santo Agostinho, «o pecado é nada e os Homens tornam-

se nada quando pecam»379. O bem do Homem é o amor e a perseverança, pois «a fidelidade

no tempo é o nome do amor; de um amor coerente, verdadeiro e profundo a Cristo»380. Deste

modo, conclui São Tomás no capítulo 8, que «amar é querer o bem ao amado; mas para Deus, querer é fazer [ ]. Logo, Deus converte todas as coisas para o bem daqueles que O amam»381.

379AUGUSTINUS, In Iohannis Evangelium, Tractatus CXXIV, 1 §13 in CCSL 36, 8.

380 BENEDICTI PP. XVI, Iter Apostolicum in Lusitaniam: Fatimae in Vesperarum celebratione apud

ecclesiam Sanctissimae Trinitatis, in AAS 102 (2010) 321-322.

3. A TEOLOGIA DA GRAÇA NO COMENTÁRIO: