homem sem alma pede uma atenção maior em nossa vida cotidiana. Os
pedintes são uma parcela, mas aqui eu vou ampliar os sujeitos de análise. E os
lixeiros e os múltiplos trabalhadores braçais? Esses que não correspondem a
uma norma de limpeza e tem de estar encardidos em função da sua profissão,
eles também são ignorados. Há antagonismos gritantes em nossa sociedade,
não somente operários como muitas análises sugerem:
É um conflito que se encontra, geralmente, oculto. Certamente, a verdadeira dificuldade é esta falta de reconhecimento. Há uma recusa em reconhecer os antagonismos. Para aqueles que indicam a necessidade de lidar com o problema da pobreza e a exclusão (a real distribuição é menos facilmente aceita). Isto será feito por efeitos multiplicadores da City (mas sabemos que esse vazamento não acontece), ou, uma versão
70 Em protesto a isso Raul Seixas canta o seguinte: ―Todo homem tem direito de viver a não ser pela sua própria lei/ da maneira que ele quer viver/ de trabalhar como quiser e quando quiser/ de brincar como quiser/todo homem tem direito de descansar como ele quiser/ de morrer como ele quiser/todo homem tem direito de amar como ele quiser/ de beber o que ele quiser/ de viver aonde quiser/ de mover-se pela face do planeta livremente, sem passaporte/ porque o planeta é dele. o planeta é nosso.‖ (SEIXAS, A lei de, 1988).
mais recente, em breve, virtualmente, todos serão englobados nessa nova economia (então, assim, quem vai esvaziar as latas de lixo, cuidar dos doentes, ser o nosso policial...?) (MASSEY, 2012, p. 224).71
Qualquer ator social está, passivo a uma experiência desse naipe,
poetas, cientistas, ninguém está livre de ―trompar‖ com ―mini-pontos‖ fixos de
carência, mendicidade, miséria ou qualquer que seja os nomes dados a estas
situações. Esses pontos fixos de mazelas não criaram no sujeito sem alma um
sentido espacial? Claro que sim, o sujeito desalmado repensa suas atitudes em
relação àquela localidade, no mínimo ele irá repensar o seu lugar de trajetória,
não passará mais por aquele trajeto, evitará ter transtornos do espaço. Estes
pontos fixos de mazela são transtornos do espaço, mas do nosso espaço
moderno e capitalista. É assim mesmo que somos: evitamos os encontros com
aqueles que se sujeitam a pedir esmola. Fica ainda uma pergunta: o homem
sem alma não dava esmola porque perdera sua alma dando esmola? Será que
ele também passou necessidades? Difícil responder a essa pergunta: mas
deixou aqui outras perguntas, estão condenados a não ter alma aqueles que
pedem esmola nos espaços das calçadas, das sarjetas? Determinados
espaços condenam a alma? O Areôtorare e seus irmãos de sangue parecem
estarem livre dessa punição.
Há um território poético que envolve sujeitos em distintas posições
hierárquicas. Se, por um lado, tem um sujeito que agencia o controle do
espaço, outros sujeitos engendram transformações radicais nesse espaço.
Esse espaço maior é parcelado, marcado por temporalidades que têm
durações e variações escalares conforme as sequências de espaços. Há uma
topografia que estabelece dois planos, uma que estabelece relações em cima
do morro e outro que está situado em uma superfície um pouco mais plana,
logo abaixo. Há um jogo poético que confronta esses dois planos e coloca em
oposição os homens e as pedras.
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Chomsky debatendo a questão da divisão do trabalho em uma sociedade anarquista manifesta o seguinte pensamento: ―Suponha que que haja algum resíduo de trabalho que realmente ninguém queria fazer, qualquer que seja – certo, então eu digo que esse resíduo de trabalho deve ser divido igualmente e, além disso, as pessoas serão livres para exercer seus talentos como julgarem conveniente‖ (CHOMSKY, 2004, p. 62).
Homens e pedras
O encarregado da pedreira, um sujeito forte, cara de português e verdugo,
dá uma volta pelo rancho de madeira e, em seguida o sino badala
chamando os operários para a luta.
Pobres operários! Ignorantes, inconscientes, rudes voltam à refrega. E, no espaço de um minuto, onde o silêncio era profundo, agora
o barulho é medonho, de atudir,
de ensurdecer...
Só se ouve o ruído fino e frenético do aço que geme Na carne dura e rija das pedras lascadas
De um lado, os britadores, num ritmo desordenado, vão quebrando,
esmigalhando, esfarinhando
nos seus dentes robustos lascas e lascas
das pedras dinamitadas na montanha. De outro lado caminhões carregados, esburacando a terra, passam, rangendo em disparada, como loucos infernais Lá em cima, no alto do morro côxo
dois homens trabalhando, zombando da morte.
Aqui mais abaixo, com a ajuda de alavancas enormes, braços poderosos movem massas de pedra,
que rolam pesadas Enchendo o Ar de faíscas fuzilantes De fogo.
De vez em quando um mulato descansa o malho e passa o dedo grosso na testa enrugada. Ouve-se então, um tinido de aço.
que batesse, em cheio, num bloco de pedra. É o suor do mulato que se cristaliza em aço. Agora é fim do trabalho... Silêncio!
Mas eu continuo a ver
Aqueles homens, lá em cima zombando da morte... Agora é linda a refrega... Silêncio!
Mas eu continuo a ouvir
o ruído fino e frenético do aço que geme na carne dura e rija das pedras lascadas Silêncio!...
Silêncio!...
O sol é um martelete de ouro perfurando o espaço! (MATOS, 1935, p. 13-16).