• Nenhum resultado encontrado

4.2 Encontro no espaço inundado

4.2.1 Espaço-corpóreo-vocal

Novarina (2003) fala de maneira poética e sensível sobre a ‘travessia’ do espaço pela voz: “No mais profundo de nós: o desejo de travessia. Travessia do mar Vermelho, travessia do túmulo, travessia da página, do espaço, do palco” (NOVARINA, 2003, p. 47). Esta a ideia de travessia que a voz pode realizar no espaço cênico, furando-o e preenchendo-o, se torna o pontapé inicial para se pensar a relação que existe entre ator, voz e o espaço de criação.

De cima do palco, o ator busca maneiras de ultrapassá-lo com a voz; levá-la, com suas palavras-matrioscas, para frente, para cima, para todos as direções possíveis, preenchendo todo o local, atravessando-o. Existem relações possíveis de serem feitas entre o ator e o espaço cênico para que esta travessia possa acontecer: ao interagir com o chão de madeira do palco, ao sentir em sua pele a luz dos refletores, a energia que emana da plateia, ao misturar-se com os outros sons que ecoam pelo teatro, a voz do ator, possivelmente, passa a preencher todo o espaço e a fazer parte, com(por) com a matéria que ali existe. A voz e o espaço começam a se tornar um, e talvez isto seja a travessia de Novarina (2003), o preenchimento do espaço pela voz.

Novarina (2003) se utiliza de metáforas instigantes para se referir a este possível preenchimento como, por exemplo, o cromatismo das palavras e como elas devem pintar o espaço ao serem lançadas:

Palavras e gestos são lançados, gastos, materiais, entregues, espetaculares, frontais. O ator fala numa luta de cores. […] As palavras se derramam como matéria, fazem manchas vermelhas, amarelas, azuis. Uma frase se inventa invertendo-se, como o pintor vira seu quadro e continua no outro sentido. O espaço vai pra dentro da linguagem. (NOVARINA, 2003, p. 38)

O ator pode pintar o espaço com suas palavras e sonoridades, pintar o palco, o teto, o ar que circula dentro do teatro, como um processo de alquimia. Para Novarina (2003), o ator encara o espaço cênico enquanto um quadro e pinta-o com a sua voz. Contudo, nesta pesquisa busca-se o sinestésico, ou seja, qualidades da voz que transcendam o comum e que atinjam um estado corpóreo de percepção, provocando este, também, no espectador. Portanto, pensemos na voz que vai além de preencher o espaço, inundando-o, afogando-o, para que também afogue o espectador. Como isto pode acontecer?

Podemos pensar no ator, na voz e no espaço misturando-se de maneira a tornarem-se um só. Pensemos para além da travessia e do preenchimento: pensemos na criação de um ‘espaço- corpóreo-vocal’. O que poderia ser isto? O filósofo e ensaísta português José Gil, quando nos fala

da relação do dançarino com o espaço, abarca a noção do ‘espaço-corpo’ e da transformação que o artista pode realizar no espaço ao seu redor. Sobre a fusão entre corpo e espaço, ele afirma que:

Embora invisíveis, o espaço, o ar adquirem texturas diversas. Tornam-se densos ou tênues, tonificantes ou irrespiráveis. Como se recobrissem as coisas com um invólucro semelhante à pele: o espaço do corpo é a pele que se prolonga no espaço, a pele tornada espaço. (GIL, 2004, p. 45)

Gil (2004) foca seu discurso na interação entre corpo e espaço, mas para esta pesquisa, trago sua noção de espaço-corpo também para a voz, na medida em que aqui entende-se corpo-vocal. Portanto, pensemos neste espaço-corpóreo-vocal desta maneira. A voz também pode modificar o espaço na medida em que se mistura com ele; o ar e o ambiente da cena podem adquirir novas texturas, sensações, gostos e cores a partir da fusão entre o espaço e o corpo-voz do ator. Então, possivelmente, concretiza-se o preenchimento do espaço pela voz, pois dentro desta concepção, eles se tornam um só.

Tanto Novarina (2003) quanto Gil (2004) nos falam sobre o desaparecimento da dicotomia entre o ‘espaço interior’ e o ‘espaço exterior’ do ator. Novarina coloca que “se diz que há o espaço interior e o espaço exterior. Em todo caso, dá pra ver bem, no teatro, esses dois espaços voltarem a formar o mesmo” (NOVARINA, 2003, p. 48). Gil diz que a qualidade do espaço a ser almejada é “um espaço como o espaço do corpo, onde o interior e o exterior são um só” (GIL, 2004, p. 47). Ambos nos falam da fusão do exterior com o interior do ator, trazendo a ideia de que o ator engole o espaço ao mesmo tempo que o espaço engole o ator – e, consequentemente, sua voz também engole e é engolida no/pelo espaço. Os espaços deixam de existir, dando lugar a um espaço só. É a partir desta noção que o ator pode transformar o espaço cênico em um espaço sinestésico sonoro, ou seja, um espaço diferenciado, preenchido, inundado, no qual também os espectadores se encontrarão imersos na voz e nas palavras da cena, pois o próprio espaço se configurará enquanto voz e palavra. Neste espaço-corpóreo-vocal, tudo que nele se encontra se materializa em voz.

Neste sentido, o espaço se torna metafísico – retornamos aqui para o propósito primeiro, para Artaud (1999) e sua noção de metafísica. Da mesma maneira que a palavra-matriosca pode ser pensada enquanto uma palavra metafísica, e que o corpo arranha-céu também pode ser um corpo metafísico, podemos entender este possível espaço-corpóreo-vocal também como metafísico; afinal, a voz sinestésica é pensada, desde o início desta pesquisa, enquanto uma voz metafísica. O espaço vem a se tornar, então, este lugar que vai além do físico, do comum, onde circulam fluxos subjetivos, vozes, sons, energias e frequências vibratórias (MARTINS, 2008), que tocam os que ali estão presentes de maneira sinestésica.

Documentos relacionados