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ESPAÇOS HISTORICAMENTE OCUPADOS PELA VÍTIMA NO SISTEMA

Como explanado anteriormente, foi após a Segunda Guerra Mundial, que os estudos direcionados a construção de uma Vitimologia começaram a emergir, fato histórico capaz de dar visibilidade ao tratamento dispensado as vítimas como consequência das imensuráveis violências cometidas no período de guerra. Isto posto, revelou-se a necessidade de reconstrução do enfoque dado a vítima de qualquer crime.

Em verdade, após esse reconhecimento da inevitabilidade de reestruturação de paradigmas no que diz respeito à vítima, reconheceu-se a existência de três estágios referentes ao estudo vitimológico, numa análise histórica: “o protagonismo, também denominado de idade de ouro da vítima; a fase do esquecimento; e a fase do redescobrimento181”.

4.2.1 A vítima como protagonista

O protagonismo, intitulado como idade de ouro da vítima, se estendeu até o final da Alta Idade Média, consistindo em um movimento do Direito Penal na valorização

180ROSSI, Giovana. Os estereótipos de gênero e o mito da imparcialidade jurídica: análise do discurso

judicial no crime de estupro. 2015. 92 f. Monografia (Direito) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015.

181FALEIROS JR, Roberto Galvão; BORGES, Paulo César Corrêa. Vitimização do criminalizado:

aspectos ilícitos do sistema penal brasileiro. In: FREITAS, Maria Helena D’Arbo Alves de; FALEIROS JÚNIOR, Roberto Galvão. p. 76-103. Estudos Contemporâneos de Vitimologia. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011. p. 85.

da vingança privada, exercida juridicamente pela vítima, atuando, neste mister, como protagonista182.

Posteriormente, a vingança ilimitada exercida pela vítima foi sendo substituída por regras, a partir das quais uma autoridade pública passou a deter a competência de verificar se os limites estabelecidos condiziam com as normas em vigor. Neste momento, surge a figura do Juiz, um terceiro, de fora da situação, capaz de decidir com maior responsabilidade e menos paixão o rumo dos acontecimentos. Com o decorrer do tempo, mais especificamente no século XII, ocorre a transição da vítima de sujeito protagonista do conflito penal, para simples colaborador, traçando o limite entre o protagonismo da vítima e a sua neutralização, não havendo mais a pretensão de atender os interesses da vítima183.

Compartilha-se do entendimento de que a valorização da vítima e a promoção da vingança privada são situações opostas, que de maneira nenhuma devem convergir. O ato de valorizar a vítima concentra-se no estímulo de sua participação digna no processo de responsabilização penal.

4.2.2 Uma vítima neutralizada

Com o início da Baixa Idade Média, a vítima foi esquecida, ou seja, neutralizada, visto que, definitivamente, o Estado assumiu a função de conduzir a responsabilização penal e, consequentemente, punir o criminoso. Assim, o afastamento da vítima é gradual, e a análise do conflito penal passa a se concentrar, no crime, no criminoso e na pena184. Deste modo, o sujeito vítima sempre foi visto como mero objeto e não uma

parte na relação processual.

Neste sentido, a vingança privada é assumida pela entidade Estatal, e o papel da vítima passa a ser o de sujeição, no intuito de promover a aplicação fria da lei, sob a justificativa de que o Estado seria isento de paixões e conceituado pela

182ROSA, Larissa; MANDARINO, Renan Possela. O lugar da vítima nas ciências criminais: política

criminal orientada para a vítima de crime. In: DINIZ, Eduardo Saad (Org.). O lugar da vítima nas ciências criminais. São Paulo: LiberArs, 2017. p.315-326.

183JORGE, Alinne Pedra. Em busca da satisfação dos interesses da vítima penal. 2002. 165 f.

Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2002.

184ROSA, Larissa. MANDARINO, Renan Possela. O lugar da vítima nas ciências criminais: política

criminal orientada para a vítima de crime. In: DINIZ, Eduardo Saad (Org.). O lugar da vítima nas ciências criminais. São Paulo: LiberArs, 2017. p.315-326.

imparcialidade, embora compreende-se a explícita representação de poder no que tange ao exercício do jus puniendi. A vítima era única e exclusivamente o sujeito passivo do crime, não havendo interesse em seu estudo, como se esta não estivesse inserida no acontecimento criminal185.

4.2.3 Redescobrimento ou novo protagonismo na participação da vítima?

Para se referir a esse momento, a doutrina utiliza amplamente, a expressão redescobrimento, que se revela, de certo modo, inapropriada, afinal a vítima, que atualmente é objeto de estudo da Vitimologia, não comporta as mesmas características da que almejava a vingança privada ou daquela que era totalmente subordinada ao Estado, sem nenhuma espécie de questionamento. Na contemporaneidade, o conceito de vítima carrega intrinsecamente os atributos resultantes do princípio da dignidade humana186. Pode-se falar em uma nova espécie

de protagonismo, totalmente dissociada da justiça com base na vingança privada, pois entende-se que tanto o criminoso, quanto a vítima são protagonistas da persecução penal, afinal é o rumo da vida dos mesmos que está em discussão.

Importante salientar que o feminismo foi uma das bases para estimular o desenvolvimento do movimento vitimológico, na década de 1970. Ulteriormente, a Vitimodogmática surgiu como uma teoria adotada para justificar hipóteses de participação da vítima no comportamento delituoso, o que suscitou inúmeras críticas do movimento feminista, sobretudo nas espécies de delitos sexuais, no que se refere a representação da vítima provocadora187.

Como já mencionado, o movimento para a valorização da vítima como sujeito de direitos, essencial para a compreensão da dinâmica do crime, transcendendo o âmbito

185JORGE, Alinne Pedra. Em busca da satisfação dos interesses da vítima penal. 2002. 165 f.

Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2002.

186Ibid.

187SALGADO, Amanda Bessoni Boudoux. Abuso sexual nos transportes públicos: problematização do

Direito Penal sexual sob a perspectiva de gênero. In: GOMES, Mariângela Gama de Magalhães; FALAVIGNO, Chiavelli Facenda; MATA, Jéssica da. (Org.). Questões de gênero: uma abordagem sob a ótica das ciências criminais. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018. p. 37-62.

de mero objeto da persecução penal, se inicia após a Segunda Guerra Mundial, a partir da macrovitimização sucedida nessa época188.

Entende-se que o estágio atual se encontra em período de avanço da legislação no que compreende a dignidade humana relacionada a pessoa da vítima. Contudo, a problemática está no âmbito de aplicação dessa legislação, considerando-se as distorções e o afastamento da política criminal na prática de uma justiça que ao mesmo tempo não apresente resquícios de vingança e prime pelo respeito a vítima189.

Uma questão que merece visibilidade é a incidência da caracterização cultural relacionada a vítima. Esta é considerada socialmente como um retrato da inferioridade, sendo renegada em inúmeras oportunidades, atribuindo a mesma uma valoração negativa. Esse aspecto acaba sendo reproduzido, no âmbito da justiça criminal, como também no desprezo destinado pela sociedade190.

Em contraste ao movimento de valorização da vítima, os estudos vitimológicos, se descuidados, radicais, e distantes de uma análise sociológica e antropológica, podem recair sobre o fenômeno de criminalização da vítima, a qualquer custo. Consequentemente, a vítima é colocada no banco dos réus. Isto ocorre, especialmente nos crimes de estupro, tendo como vítima a mulher, no momento em que muitas vezes, a defesa do acusado, apresenta como ponto principal a acusação da vítima, demonstrada através da análise do modo de vestir, da existência de uma vida sexual ativa, ou até mesmo do horário e local em que a mesma se encontrava no momento da violação. Este é um exemplo de instrumentalização da Vitimologia para promover a culpabilização da vítima, uma vez que esta estaria contribuindo para a ocorrência do delito. Em verdade, trata-se de uma inversão de papéis191.

Fatidicamente, a Vitimologia ao se estender quase que exclusivamente à análise do comportamento da vítima, provocou o seu desamparo, colocando-a em total

188ROSA, Larissa. MANDARINO, Renan Possela. O lugar da vítima nas ciências criminais: política

criminal orientada para a vítima de crime. In: DINIZ, Eduardo Saad (Org.). O lugar da vítima nas ciências criminais. São Paulo: LiberArs, 2017. p.315-326.

189JORGE, Alinne Pedra. Em busca da satisfação dos interesses da vítima penal. 2002. 165 f.

Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2002.

190FALEIROS JR, Roberto Galvão; BORGES, Paulo César Corrêa. Vitimização do criminalizado:

aspectos ilícitos do sistema penal brasileiro. In: FREITAS, Maria Helena D’Arbo Alves de; FALEIROS JÚNIOR, Roberto Galvão. Estudos Contemporâneos de Vitimologia. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011. p. 76-103.

191KOSOVSKI, Ester. História e escopo da Vitimologia. In: KOSOVSKI, Ester; PIEDADE JR., Heitor;

desconforto, muitas vezes, ultrapassando os limites da neutralização, posta anteriormente. Nesta perspectiva, a preocupação em estudar a Vitimologia como objeto de novos processos de vitimização ainda é escassa no meio acadêmico. O estudo envolvendo as peculiaridades desse processo evolutivo deve abarcar vertentes multidisciplinares, à exemplo da psicologia e das ciências da saúde, no intuito de concretizar a proteção à vítima em sua totalidade192.

Ressalta-se que não há o desígnio de prejudicar qualquer direito pertencente ao acusado. No caso, o objetivo é prezar pela participação da mulher como vítima no sistema de justiça criminal, tendo assegurados todos os seus direitos estabelecidos pela dignidade humana, portanto, neste sentido, há o reconhecimento de movimentos que objetivam a valorização da vítima como pessoa humana, principalmente a vítima mulher. Portanto, a colocação da vítima como sujeito de direitos na persecução penal pode influenciar positivamente na política criminal, na oportunidade em que, sendo devidamente respeitada, a vítima mulher pode colaborar de uma maneira mais incisiva com as investigações193.