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Este é o segundo tema que emergiu dos depoimentos. O espaço ora considerado não é um espaço geométrico passível de ser medido com o metro quadrado, uma área ocupada. Trata-se do espaço existencial. Há vários tipos de espaços além do geométrico: do sonho, do primitivo, do mito, do esquizofrênico, do alucinado, entre outros. Nesse estudo o corpo próprio do profissional de saúde é o espaço onde efetuará seu enraizamento em um mundo e constituirá um ambiente. Por esta razão, conforme declara Merleau-Ponty (1999, p. 292) acerca deste espaço, ele “é aquele que compõe a cada momento nossa maneira própria de projetar o mundo”.

A realidade da vida cotidiana do corpo próprio dos profissionais de saúde para Berger e Luckmann (1993, p.38), aparece já objetivada, isto é, “constituída por uma ordem de objetos que foram designados como objetos antes da entrada do indivíduo na cena”. Portanto, a existência voluntária e racional do corpo próprio do profissional de saúde é um acontecimento coletivo, misturado a outros corpos próprios que se constituem uma potência e impedem a realização de movimentos mais amplos e mais livres, o que deixa sempre uma frustração, um vazio, uma

carência, uma insatisfação, “um esboço no ar”. Essa existência é o resultado da consciência perceptiva, ou seja, uma “percepção em situação”, pois está relacionada com os contextos existenciais específicos que são dados ao indivíduo no momento do seu nascimento e da sua morte.

Estes fenômenos representam a entrada e a saída, respectivamente, do indivíduo na existência espacial do corpo próprio. Segundo Merleau-Ponty, correspondem a um tempo natural que está sempre aqui. Por isso, de acordo com esse autor (1999, p. 290), “se eu quisesse traduzir exatamente a experiência perceptiva, deveria dizer que „se‟ percebe em mim e não que eu percebo [...] toda a percepção acontece em uma atmosfera de generalidade e se dá a nós como anônima”. Neste sentido, o nascimento e a morte só são apreendidos como horizontes pré-pessoais, isto quer dizer, sei que se nasce e se morre, porém não posso conhecer a experiência nem do meu nascimento nem da minha morte, pois elas pertencem a um mundo de generalidades que se dá a nós como anônimas. Sobre isso, afirma Merleau-Ponty (1999, p. 291): “Entre minha sensação e mim há sempre a espessura de um saber originário que impede minha experiência de ser clara para si mesma”. Portanto só posso me apreender como “já nascido” e ainda “vivo”.

No processo do seu desenvolvimento, o indivíduo, a partir do corpo próprio, é mantido na existência pessoal por um tempo não constituído por ele mesmo que lhe é dado. Logo, no caso do corpo próprio do profissional de saúde, sua consciência perceptiva, como apresentada no capítulo 4, perfila-se sobre um fundo de natureza. Para Merleau-Ponty (1999, p.465),

Enquanto percebo, e mesmo sem nenhum conhecimento das condições

orgânicas de minha percepção, tenho consciência de integrar “consciências”

sonhadoras e dispersas, a visão, a audição, o tato, com seus campos que são anteriores e permanecem estranhos à minha vida pessoal. O objeto natural é o rastro dessa existência generalizada. E, em primeiro lugar, todo objeto será, em algum aspecto, um objeto natural, ele será feito de cores, de qualidades táteis e sonoras, se ele deve poder entrar em minha vida.

Esse fundo de natureza é o seu corpo próprio, cuja estrutura orgânica permiti-lhe no processo da existência ir constituindo o mundo percebido, mediante parâmetros ou quadros de referências graças aos quais elabora o significado da experiência de cuidar/cuidado do corpo próprio do outro que está morrendo. Estes quadros são internalizados pelos indivíduos por processos concretos de interação

social. Neste aspecto, os padrões culturais utilizados pelos indivíduos para interpretar determinado episódio da experiência humana do morrer são criações sociais, ou seja, são processos de definição e interpretação construídos intersubjetivamente. Assim, para apreender o sentido do corpo próprio dos profissionais de saúde no cuidar/cuidado do corpo próprio do outro que está morrendo, é necessário levar em conta tanto seus aspectos subjetivos, o que determina um mundo de diferenças interpretativas, a partir do corpo próprio, como seus aspectos intersubjetivos, o que o torna “objetivo” para si mesmo e para os outros.

Neste tema agrupei todos os aspectos passíveis de ser analisados a partir da perspectiva da espacialidade do corpo na existência do mundo percebido dos depoimentos do sujeito: contexto, coação externa, julgamento, obrigação e vivências e ações terapêuticas.

O corpo próprio do profissional de saúde ao cuidar/cuidado do outro que está morrendo existe em um contexto específico: o mundo-instituição onde trabalha, o qual está inserido em uma sociedade, que também possui suas normas e conceitos em relação ao fenômeno da morte/morrer compartilhados por todos os integrantes do mesmo grupo com o mesmo marco cultural. Ele, portanto, está condicionado a este contexto e assim a objetividade alcançada a partir da sua introspecção – a consciência perceptiva – se converte em um fato subjetivo, pois falar de morte/morrer na sociedade onde vive é considerado um tabu. Quem vivencia a experiência humana do morrer assistindo o outro que morre não pode se manifestar e falar abertamente desta experiência, em virtude da coação externa provocada pelo grupo social que impõe a lei do silêncio.

... de colocar, não é querer colocar claro ... quem tá lá não tá podendo dizer sua experiência .. (VILA).

... eu já tive experiência na família do meu pai, do meu sogro, do meu irmão ... o meu sogro era mesmo que ser meu pai e eu soube enfrentar ... quando eu vou trabalhar um adolescente, um adulto jovem da idade dos meus filhos 18, 20 e 21 anos ... (DURGA).

... relembrando aquele momento que tive de dar o resultado de HIV a uma menina que acabou de entrar na UNIFOR ... é muita carga em cima do profissional ... assim procuro um relacionamento com meu marido da melhor

forma possível ... com meus filhos, com as pessoas com quem convivo, com quem trabalho ... (DURGA).

Diante desta coação externa e da subjetividade por ter perdido sua objetividade, porquanto não pode validar a consciência perceptiva pela comunicação no seu próprio grupo, o corpo próprio do profissional de saúde não mais considera sua obrigação fazer alguma coisa pelo outro corpo próprio que está morrendo. Também já não sabe o que fazer e o grupo nada sugere. A confusão se estabelece, pois o corpo próprio do profissional de saúde se encontra percebendo várias perspectivas de um mesmo fenômeno captadas pelo seu corpo próprio, na relação com o corpo próprio do outro que está morrendo e na interação com o contexto específico onde ambos estão inseridos.

... a gente sabe que às vezes não é por conta da gente mas da própria paciente ... (SULIS).

... com a doença ele vai percebendo essa finitude ... (DEMÉTER).

Por não reconhecer estas várias perspectivas e sentindo a necessidade de resolver o conflito gerado por esta confusão na sua atuação como profissional de saúde, seu corpo próprio submete-se a uma coação externa mais ampla, ou seja, uma realidade que impõe a todos a doença e a morte. Assim ele se tranqüiliza para continuar atuando como profissional de saúde, porque agora a doença e a morte deixam de ser algo intrínseco, que não pertence ao corpo próprio e nem é inerente à condição humana, para ser algo que vem de fora. Significa que ainda se pode tentar evitar ou ao menos atrasar se determinados comportamentos e atitudes forem abandonados ou negados para outros serem introduzidos. A morte e a doença passam a ser algo que nos é dado externamente.

... então esse sofrimento, muitas vezes além do sofrimento, da dor ... eu cuidei deste paciente na unidade, inclusive foi assim chocante ... eu tava vindo de outros hospitais clínicos ... e nunca tinha tido essa experiência de trabalhar com paciente com doenças ... que não tinham cura ... (DURGA). A experiência da consciência perceptiva vista sob a perspectiva do contexto e da coação externa desvela a relação com o mundo e nele podemos encontrar e compreender o corpo próprio do profissional de saúde que se abre para

o cuidar/cuidado do outro corpo próprio que está morrendo. Essa abertura ocorre quando ele se define e define o outro no processo de morrer e na morte como uma conduta a ser realizada no mundo, como uma certa tomada de posição sobre o mundo natural, social e cultural que rodeia a ambos.

Para Merleau-Ponty o corpo próprio é, antes de tudo, um sistema, onde diferentes aspectos interoceptivos e exteroceptivos se exprimem reciprocamente, e que comporta, ainda, relações com o espaço. A experiência da consciência perceptiva não é uma experiência vivida como se o corpo próprio fosse um bloco isolado; é, sim, uma experiência vivida como um esquema postural de referência, para o corpo próprio situar a posição da sua existência no mundo para si mesmo, em relação à direção vertical, à horizontal e à inter-relação que se coordena no meio em que ele está inserido. Os domínios sensoriais, principalmente os visuais e os táteis, como visto no capítulo 4, são de interesse para a experiência perceptiva do corpo próprio em si mesmo, o que corresponde à direção da verticalidade, isto é a interoceptividade e não se oferecem ao corpo próprio como regiões estranhas umas às outras, mas apresentam-se interligadas uma à outra formando um sistema.

...porque ainda era de menor, tinha 17 ou 18 anos na época... (SULIS).

Assim, formando um sistema, o corpo próprio do profissional de saúde não é um conglomerado de sensações. Quando ele assume o fenômeno da própria morte ao cuidar de outro morrendo, é possível descobrir um todo que já se projeta com um significado próprio e mais do que a sensação é o todo, que constitui o fundamento da experiência perceptiva do morrer. Considerando a horizontalidade, isto é, a exteroceptividade, o outro é percebido como um corpo visual que é interpretado pela noção que o profissional de saúde tem do seu corpo próprio, que aparece, então, como o invólucro visível de um outro esquema corporal; há aí uma impregnação postural do corpo próprio do profissional de saúde pelas condutas de que ele testemunha e assume no processo de morrer do outro dotado de

intencionalidade, como ser-no-mundo-morrendo, e consegue captar o outro corpo próprio como um diferente do seu, percebendo-o como corpo próprio encarnado.6

Entretanto, a princípio, análise da experiência perceptiva da própria morte ao cuidar do corpo próprio do outro que está morrendo encontra dificuldade de princípio, porque conforma o mundo cultural de uma consciência vista do exterior, de um pensamento que reside no exterior e que, aos olhos da consciência do profissional de saúde, já está sem sujeito e anônimo.

A presença do outro morrendo é um fato para o profissional de saúde e é preciso, que esse outro morrendo, seja de alguma forma compreendido ou vivido pelo corpo próprio do profissional de saúde, para que esse possa aceitá-lo. Merleau- Ponty esclarece que para o outro corpo próprio morrendo existir realmente para mim, é necessário que a existência não seja simplesmente consciência de existir por intermédio do corpo, mas que esse olhar do outro possa trazer também uma existência na qual o corpo próprio do profissional de saúde perceba intencionalidades, posicionamentos diferentes do dele, isto é, o corpo próprio do outro morrendo expressa algo diferente daquilo que o corpo próprio do profissional de saúde sente ou percebe.

O filósofo Merleau-Ponty assevera claramente que:

[...] pela reflexão fenomenológica encontro a visão não como „pensamento

de ver‟, segundo a expressão de Descartes, mas como o olhar em posse de um mundo visível e é por isso que aqui pode haver para mim um olhar de outrem, esse instrumento expressivo que chamamos de rosto, pode trazer uma existência assim como minha existência é trazida pelo aparelho cognoscente que é meu corpo (1999, p. 471).

Esse olhar do corpo próprio do outro que está morrendo que olha o corpo próprio do profissional de saúde que está cuidando expressa algo sobre a morte/morrer que pode ser compreendido pelos significados do corpo próprio de ambos. Entre o comportamento do corpo próprio morrendo e o corpo próprio

6 Corpo próprio encarnado: elemento único onde estão envolvidos corpo e espírito, sinal e significado,

como um estilo de ser. Cabe especificar, como Merleau-Ponty definiu em O visível e o invisível este peculiar conceito “carne” (chair): “a carne não é matéria, não é espírito, não é substância. Seria

preciso para designa-la, o velho termo „elemento‟, no sentido de que era empregado para falar-se da

água, do ar e do fogo, isto é, no sentido de uma coisa geral, meio caminho entre o indivíduo espácio- temporal e a idéia, espécie de pirncípio encarnado que importa um estilo de ser...a carne é um „elemento‟ do ser” (Merleau-Ponty, 1984, p. 136)

cuidando surge uma comunicação que tem por cenário o próprio mundo, a própria estrutura deste ser-no-mundo que implica a abertura ao outro que está morrendo, isto é, existir e co-existir no processo de morrer e na morte.

A unidade temática da Espacialidade do corpo no Mundo é apresentada no diagrama a seguir:

Fonte: Fig 4 Produzida pela autora da tese