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A noção de profundidade advém dos conceitos clássicos da percepção que negam que esta seja visível. Segundo Merleau-Ponty, Berkeley traça uma forma de mostrar que a profundidade não pode ser dada à visão, porque não pode ser registrada, considerando que os

52 A ideia de rosto invertido é utilizada por Merleau-Ponty na Fenomenologia da Percepção para mostrar que

mesmo observando algo que se desvia do seu padrão normal de realidade como a face às avessas que modifica completamente o sentido de rosto estando irreconhecível, o sujeito é capaz de mudar, de avançar de nível e reconhecer e se habituar à cena. Isso é possível porque o corpo do sujeito é vivo e experimenta as situações como estando inserido nelas.

olhos do corpo próprio só conseguem ver projeções sensíveis do espetáculo. “[...] O que chamo de profundidade é na realidade uma justaposição de pontos comparáveis à largura” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 343). A ideia de profundidade se concretiza, portanto, em uma justaposição de pontos que se comparam a largura; no entanto, não se pode conceber o sentido de profundidade, quando se fala de espacialidade de situação, fundada apenas nas noções de geometria; talvez baseada nas dimensões de espaço abordado por Euclides, que o compreendia como comprimento, largura e profundidade, mas é preciso pensar essa realidade como “dada a uma percepção viva que habita o espaço e ela ‘anuncia um certo vínculo indissolúvel entre as coisas e mim’” (DUPOND, 2010, p. 22). Existe, deste modo, um espaço entre o corpo e o percebido, este é contado a partir do corpo que jamais realiza a experiência de ver se não estiver no mundo percebido, que é concebido não como espaço geográfico, mas como espaço situado, efetivo. Esse fato se realiza não em um meio exterior, em que não haja o envolvimento entre o corpo e as coisas. “[...] O espaço nos é dado na profundidade do mundo, nós não podemos percebê-lo como um ser totalmente positivo, determinado por um pensamento de sobrevôo sem os pontos de vista de nosso corpo.” (CAMINHA, 2010, p. 247). Considera-se que o espaço não é definido por Merleau-Ponty como uma abstração de conteúdos sensíveis e os fenômenos estão ocupando um espaço físico, a espacialidade não está reduzida a algo externo, mas vai além da experiência do sujeito de compreender aquilo que está fora de si. A profundidade invisível se identifica à largura e, desta forma, como coloca Merleau-Ponty, o intelectualismo53 faz aparecer, na experiência de profundidade, um

sujeito que faça sua síntese, porque ele reflete em uma profundidade realizada em uma justaposição de pontos simultâneos, considerando que esta forma não é tal como se apresenta ao sujeito, mas a profundidade de um expectador situado lateralmente.

Segundo Merleau-Ponty, para tratar a profundidade como uma largura vista de perfil, é preciso que o sujeito abandone seu lugar, seu ponto de vista sobre o mundo e pense em uma espécie de ubiguidade. Considerando a existência de Deus, é possível pensar que Ele está em todas as partes, logo, a largura equivale a profundidade. Tanto o intelectualismo como o empirismo não dão um relato da experiência humana no mundo, eles dizem o Deus poderia pensar. Sem sombra de dúvida é o mundo que convida o sujeito perceptivo a constituir as dimensões e pensá-lo sem ponto de vista. O sujeito não sabe nada sobre o mundo e o espaço objetivo, pois se procura descrever o fenômeno do mundo, ou seja, seu nascimento que nos

53“O intelectualismo apresenta-se ordinariamente como uma doutrina da ciência e não como uma doutrina da

percepção, ele acredita fundar sua análise na experiência da verdade matemática e não na evidência ingênua do mundo: habemus ideam veram” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 71-72). (Grifo do autor).

coloca neste campo de percepção, em que os sujeitos presentes estão sós e outros virão depois e a ciência e o saber não nivelaram a perspectiva individual, pois é através dela que o corpo tem acesso ao mundo.

A profundidade nos obriga a rejeitar o prejuízo do mundo e a reencontrar a experiência primordial onde ele brota; entre todas as dimensões, ela é, por assim dizer, a mais ‘existencial’, porque – é isso que há de verdadeiro no argumento de Berkeley - ela não se indica no próprio objeto, evidentemente ele pertence à perspectiva e não às coisas; portanto, ela não pode nem ser extraída destas, nem se posta nelas pela consciência; ela anuncia um certo elo indissolúvel entre as coisas e mim, pelo qual estou situado diante delas, enquanto a largura pode, à primeira vista, passar por uma relação entre as próprias coisas, em que o sujeito perceptivo não está implicado (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 345).

Toda essa discussão nos leva a buscar novas formas de compreender a profundidade, não fundada em pontos, mas em perspectivas que ultrapasse as alternativas clássicas para lidar com a relação entre sujeito e o objeto.

Através da experiência de perceber, não se pode considerar a profundidade como medida e largura como afirmava a clássica concepção de percepção. Esta experiência impõe um novo olhar para essa ideia que expressa o sentido de que a percepção efetiva não deixa seu lugar e nem seu ponto de vista sobre o mundo. “A percepção da profundeza nos faz reencontrar a experiência do jorramento do mundo percebido, que corresponde ao desdobramento mesmo da exterioridade para o sujeito que percebe” (CAMINHA, 2010, p. 249). As percepções das coisas não são medidas por uma distância objetiva, pois o sujeito vive a experiência de ver e todo espaço objetivo ganha um sentido de subjetividade e esse espaço entre o sujeito e a coisa é convertido pelos globos oculares, pois o corpo se aproxima do objeto sem movimentar sua estrutura física, assim também como aproxima os objetos de si.

Ter a experiência da profundidade é sempre vivê-la reencontrando seu sentido imanente. No fundo, convergência e tamanho aparente não são nem signos, nem causas da profundidade; eles estão presentes na experiência da profundidade, que pressupõe uma orientação em direção àquilo que vemos a distância. Nossa percepção não concerne nem a um conteúdo objetivo, em si, nem a um conteúdo de consciência para si, mas àquilo que nós vemos em profundidade (CAMINHA, 2010, p. 249).

Pode-se ainda fazer uma abordagem quando se trata da profundidade nas pinturas modernas. Estas, por sua vez, nos fornecem a sensação da existência de dimensões que, muitas vezes, ficam ocultas aos nossos olhos. “As dimensões são os componentes gerais do

mundo sensível, aqueles por meio dos quais tal mundo se prepara do seu interior para ser percebido” (FERRAZ, 2009, p. 166). Porém, é possível compreender que por sensível não se considera apenas aquilo que se pode notar, mas é possível ponderar sua existência relacionando com o que não podemos identificar, ou seja, como componentes que não se mostram diretamente ao sujeito. Segundo Merleau-Ponty, o sensível não é somente o que constitui as coisas, mas tudo quanto está no mundo, mesmo quando se encontra, de modo, implícito, ou seja, ausente.

Dentre essas condições presentes na pintura, está presente a profundidade, que, segundo Ferraz, não é representada como largura dos objetos, mas é pelo que Merleau-Ponty escreve sobre profundidade, uma “explicitação de um mútuo entrelaçamento das coisas, que ocultam parcialmente umas às outras e instituem, assim, uma densidade no campo visual” (FERRAZ, 2009, p. 166). Talvez a dúvida de Cézanne relacione bem esta questão quando ele pinta os quadros dando destaque às formas: umas maiores e outras menores, permitindo que algumas delas se sobressaiam sobre outras. “A perspectiva vivida, a de nossa percepção, não é a perspectiva geométrica ou fotográfica: na percepção, os objetos próximos aparecem menores, e os objetos afastados maiores, do que numa fotografia, [...]” (MERLEAU-PONTY, 2013, p. 132). Essa nova abordagem sobre profundidade é derivada dos textos tardios de Merleau- Ponty, em que ela não mais prima pela organização interior do ser, mas pelas formas com que a profundidade retrata a realidade do sujeito, que impulsiona a realidade do mundo percebido.