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ESPACIALIZAÇÃO DA RELIGIÃO

1 GEOGRAFIA EM CASSIRER: PERSPECTIVAS PARA GEOGRAFIA DA

1.6 ESPACIALIZAÇÃO DA RELIGIÃO

Mergulhamos a partir daqui no universo da religião enquanto forma simbólica. Procuramos entender como os sujeitos conformam seus mundos e como espacializações são geradas nesse processo, tendo em vista que os discursos de partida são os religiosos. Cada uma das formas simbólicas propostas por Cassirer possuem uma dimensão espacial própria do pensar humano. A religião engloba seu universo simbólico através das funções de expressividade e representação. Sua origem está junto do mito, ligada à consciência da finitude humana. Para Cassirer, “desde o início, o mito é religião em potencial” ([1944] 2005b, p.146).

Inicialmente, em sociedades tradicionais, vemos que os mitos culturais são a atmosfera perene onde o Homem vive e existe. Nessa espacialidade o ser humano está mais próximo dos seus sentimentos do que de representações. O mito é não-teórico em sua essência. Sua lógica não pode ser medida por concepções científicas. O mito “realiza um momento de mediação no limiar da realidade enquanto expressão sensível e intuição perceptual” (GIL FILHO, 2010, p.06).

Mito e religião estão próximos, porém, o pensar religioso transcende o sentir mítico, se expressando através de representações. Assim como nos mitos, a noção de sagrado e profano também está presente na religião. O que os diferencia é a forma de conformar o mundo. No mito, o que prevalece são os sentimentos, na religião, o que prevalece é a representação.

A alienação entre a dimensão mítica e o pensamento religioso é a marca mais presente entre religiões que possuem livros sagrados e discursos de legitimação

históricos. O pensamento religioso transpassa as dimensões das expressões partindo assim para um espaço de representação construído a partir da linguagem e abstração própria de um espaço concebido.

Como também verificado em Silva e Gil Filho (2009), a espacialização das ideias religiosas primeiro se dá através do sentir mítico-religioso, posteriormente através da ação das palavras, pois “quando se torna dizível se espacializa” (p.78). O sentimento torna-se discurso através das narrativas, essa é a esfera da representação e da ação religiosa.

É necessário mais do que nomear o sentir mítico religioso, já que esse é subjetivo. A religião se caracteriza por ordenar a narrativa do fenômeno religioso, de maneira que a organização das ideias ultrapasse a caracterização dada pelo sentir mítico. Dessa forma, a religião passa a ser a forma de conhecimento a objetivar o mundo. Vista dessa forma, a religião não se restringe a uma modalidade social, ela se configura em um sistema simbólico reunido em torno da experiência do concreto.

A construção da objetividade e da espacialização das ideias religiosas se dá por intermédio das palavras, é através da oralidade ou textualidade que se difunde o saber religioso. Quando o Homem se apropria desse conhecimento, passa a ser um sujeito “espacializador” da religião utilizando-se do discurso religioso. Dessa forma, as representações que permeiam o discurso ganham meios para se espacializarem para além do espaço de criação.

O discurso fundador é o responsável por transfigurar as experiências religiosas e míticas dos seus fiéis em verdades religiosas, esse é um primeiro passo para a espacialização do fenômeno religioso. Esse discurso representa um poder simbólico gerido pelos sacerdotes. O/a líder religioso/a pode reestruturar o discurso na busca de uma maior eficácia simbólica, os enunciatários, por sua vez, espacializam a experiência religiosa no mundo. Cassirer nos dá pistas para entendermos a necessidade que o Homem religioso sente em espacializar sua experiência. De acordo com o autor, o crente conhece apenas duas coisas: a si mesmo e a Deus, e não lhe interessa conhecer mais nada.

El creyente necesita comunicar a otros su fe, infundirles su pasión y su unción religiosas para estar seguro de la fe que le anima. Y sólo puede

hacerlo por médio de imágenes que empiezan siendo símbolos para acabar convirtiéndose em dogmas. (CASSIRER, [1942] 2005a, p.79)6

A comunicação da fé é realizada por meio da linguagem, fruto desse processo temos a experiência do Homem religioso, que é expressa através de distinções sociais e espaciais, resultando em uma nova ordem em sua vida que passa a ser permeada pela lei divina. A conversão do fiel, através do discurso religioso, se reflete no espaço em novos trajetos e práticas sociais. Assim, a religião passa a oferecer um lugar seguro, onde a ordem impera, diferente dos impulsos anárquicos encontrados no “espaço aberto” do mundo.

O discurso cristão erigido a partir da interpretação do texto de Marcos (16, 15-16), “Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura”, forma uma espacialização baseada na difusão dos ensinamentos religiosos. Pregar o evangelho torna-se uma forma de demonstrar amor ao próximo. Nesse sentido, a expansão territorial significa também a espacialização das ideias religiosas. Ao sacralizar os lugares e difundir suas representações religiosas o crente passa a espacializar o sentir religioso. As experiências próprias de cada indivíduo encontram-se em estados de latência nas narrativas, por essas constituírem-se de um caráter representacional. “A impregnação das ideias religiosas sobre a percepção leva o Homem a espacializar o sentimento religioso em ações cotidianas” (SILVA E GIL FILHO, 2009, p.79).

O processo de espacialização do fenômeno religioso ganha dinâmica através do agir do fiel. O espaço no qual ele vive é marcado pelo discurso religioso acionado para explicar a sua vida. Em outras palavras, a objetivação do mundo vai depender para o sujeito religioso das narrativas e interpretações sagradas. O espaço material funciona, dessa maneira, como propulsor e extensão do fenômeno religioso. Propulsor no sentido de ser o meio das percepções. Extensão, pois nas paisagens religiosas se apresenta como símbolo espacializado.

Diante do exposto, nos apropriamos da ideia de estruturas7 de Bourdieu ([1974] 1998) para dar mais clareza à maneira como o discurso religioso se

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Tradução nossa: “O crente necessita comunicar aos outras a sua fé, infundir-lhes sua paixão e sua unção religiosas para estar seguro da fé que ele anima. E somente pode fazer-lo por meio de imagens que começam sendo símbolos para acabar convertendo-se em dogmas.”

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Nos apropriamos da ideia de estrutura com a pretensão de articular o conceito de forma simbólica ao de habitus religioso (aprofundado no cap. 2). Partimos da hipótese de que as estruturas

espacializa. O discurso religioso aparece como estrutura estruturante da manifestação sócio-espacial da religião. As práticas sociais, por sua vez, surgem como realidades estruturadas a partir da forma simbólica religião. Frente a esse cenário, a instituição religiosa, seus profissionais do sagrado, cosmovisão e dogmas, aparecem como estruturas estruturadas do espaço religioso.

O Homem experiencia o espaço dando-lhe sentido a partir das formas simbólicas. Assim, o espaço passa de uma base material da sua existência para um espaço carregado de sentido, no caso da religião, um espaço sagrado.