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Especificidade dos artefatos arquitetônicos e urbanísticos

PARTE II: M ARCO T EÓRICO

4.3 Especificidade dos artefatos arquitetônicos e urbanísticos

Como a pintura ou a escultura, a obra de arquitetura é resultante de um fazer humano, produto de uma atividade criativa, emana verdade e, consequentemente, autenticidade. Também similarmente às obras das artes plásticas, agrega a instância estética, por ser construída a partir de um processo de criação que revela a forma específica por meio da qual seu criador a concebeu, e a instância histórica, por se constituir em um documento vivo dos processos de constituição e conformação ao longo do tempo.

Todavia, para além dessas instâncias, as obras de arquitetura trazem certas particularidades que precisam ser exploradas para se saber o que significa verificar a autenticidade nesses artefatos.

A primeira delas, e a que mais fortemente a distingue das demais expressões artísticas, é que a arquitetura se consubstancia por meio do espaço. Compreender qual a natureza desse espaço e por meio de quais elementos se concretiza70 torna-se, portanto, um

requisito fundamental para se discutir a autenticidade de artefatos arquitetônicos e urbanísticos.

Primeiramente, ao tratar da natureza desse espaço, Zevi (1996) traz uma contribuição importante:

(...) o caráter essencial da arquitetura - o que a distingue das outras atividades artísticas - está no fato de agir com um vocabulário tridimensional que inclui o homem. A pintura atua sobre duas dimensões, a despeito de poder sugerir três ou quatro delas. A escultura atua sobre três

de su capacidad para “contar historias convincentes” (Leigh et al., 1994); es decir, de la autoridad que los demás usuarios le conceden” (VIÑAS, 2004, p. 173).

70 É importante ressaltar que a discussão sobre o espaço arquitetônico e urbanístico e sua conservação aqui

realizada não busca esgotar o tema, mas exclusivamente trazer subsídios para a estruturação da abordagem teórica da autenticidade do patrimônio cultural proposta. Pode-se dizer que é apenas um sopro inicial numa questão fundamental e ainda pouco explorada dentro do campo da Conservação urbana, o qual demandará ainda profundas reflexões.

dimensões, mas o homem fica de fora, desligado, olhando o exterior das três dimensões. Por sua vez, a arquitetura é como uma grande escultura escavada, em cujo interior o homem penetra e caminha (ZEVI, 1996, p. 17). Evaldo Coutinho (1998) expressa entendimento convergente para o de Zevi (1996), ao discorrer sobre o espaço arquitetônico:

[..] a sua condição mesma é a de fazer-se franqueável, convertendo, a quem o penetra, em participar da própria essência espacial. Na pintura de paisagem marinha, o espectador não passa além da moldura, não vai dentro da tela a fim de molhar as mãos, isso porque tem diante de si um caso de representação e não de realidade (COUTINHO, 1998, p. 38).

Em relação aos artefatos urbanos, como conjuntos, sítios e cidades, Zevi (1996) entende que a experiência espacial que é própria da arquitetura se prolonga nas ruas, praças e parques, ou “onde quer que a obra do homem haja limitado 'vazios', isto é, tenha criado espaços fechados”:

Se no interior de um edifício o espaço é limitado por seis planos (por um soalho, um teto e quatro paredes), isto não significa que não seja igualmente espaço um vazio encerrado por cinco planos ao invés de seis, como acontece num pátio ou numa praça. [...] tudo o que é visualmente limitado por cortinas, quer sejam muros, fileiras de árvores ou cenários, é caracterizado pelos mesmos elementos que distinguem o espaço arquitetônico. Ora, visto que todos os volumes arquitetônicos, todos os invólucros murais, constituem um limite, um corte na continuidade espacial, é óbvio que todos os edifícios colaboram para a criação de dois espaços: os interiores, definidos perfeitamente pela obra arquitetônica, e os exteriores ou urbanísticos, encerrados nessa obra e nas contíguas (ZEVI, 1996, p. 25).

Abordagem semelhante à de Zevi (1996) tem Pereira (1996), ao definir o espaço urbano:

O espaço urbano [...] tem de ser observado e analisado como o espaço arquitetônico, ou seja, como espaço formalmente definido a três dimensões, como espaço interno delimitado pelo pavimento, fachadas ou cortinas verdes e céu, onde se processam actividades e comportamentos, que contêm/ realizam a vida urbana, que produzem sensações e emoções e transmitem significados (PEREIRA, 1996, p. 30-31).

O espaço, seja arquitetônico, seja urbanístico, origina-se do ato de delimitar o vazio por meio de um invólucro construído. Cada espaço tem uma configuração própria, definida pelas características das partes componentes de seu invólucro e pelo modo como essas partes se encontram articuladas.

No caso dos edifícios, os maciços, as aberturas para o exterior, o teto, os materiais construtivos empregados são alguns desses componentes que desempenham diferentes papeis e assumem importâncias distintas na configuração do espaço. O espaço urbano, por sua vez, concretiza-se pelo desenho de sua malha, forma e material das vias, das calçadas, dos largos e das praças, perfil das fachadas, tipo e função do mobiliário urbano existente, massa vegetal, entre outros aspectos.

Todavia, o que de fato define o espaço é a articulação entre todos esses componentes. Essa articulação não é o resultado de um somatório de partes. Resulta, na verdade, de uma relação entre essas partes. Doglioni (1997), ao discorrer sobre a natureza do espaço arquitetônico e urbanístico e sua autenticidade – e o faz a partir das noções de totalidade e inteireza –, constrói uma interessante discussão sobre essa articulação:

A fábrica é, portanto, pela sua natureza um total, para retomar a distinção de Brandi, mas ao mesmo tempo é também, em muitos casos, um

inteiro, porque todas as partes operam para formar uma unidade, que

reconduz ao projeto de arquitetura com base no qual a construção foi realizada […]. Entre a fábrica71 como inteiro e a fábrica como total, ou seja, como soma de partes, pode-se tentar instituir um termo médio, ou seja, a

fábrica como relação entre partes construídas separadamente, dentro de um

único contexto, concorrendo para um único fim. Cada parte é especialmente qualificada em sua relação com as demais (estruturais, funcionais, arquitetônicas), a ponto de essa relação poder ser considerada uma cota da autenticidade da parte e uma estrutura de sustento da autenticidade do inteiro (DOGLIONI, 1997, p. 237, itálico do autor, tradução nossa).72

Assim, a compreensão do espaço arquitetônico e urbanístico e, consequentemente, de sua autenticidade, passa, necessariamente, pelo reconhecimento de quais são essas relações e qual a importância relativa de cada uma delas na configuração espacial do sítio.

Ainda que o espaço seja o protagonista da arquitetura, ele não parece ser o objeto para o qual se voltam os esforços preservacionistas na Conservação urbana (AMORIM; LOUREIRO; NASCIMENTO, 2007). Na realidade, a visão dominante nesse campo parece fragmentar a natureza própria do espaço, ao tratar os aspectos construtivos, estruturais e estilísticos do

71 Fábrica, segundo a Carta de Burra (1999), é todo o material físico do sítio, incluindo componentes, dispositivos,

objetos, entre outros.

72Citação no idioma original: “La fabbrica è dunque per sua natura un totale, per riprendere la distinzione di

Brandi; ma al tempo stesso è anche, in molti casi, un intero, per la concorrenza di tutte le parti a formare una unità, riconducibile al progetto di architettura in base al quale la costruzione è stata realizzata. [...] Tra fabbrica come intero e fabbrica come totale, ossia come soma di parti, si può tentare di istituire un termine medio, ossia la

fabbrica come relazione tra parti costruite separatamente entro un unico contesto per concorrere ad un unico fine.

Ciascuna parte è specialmente qualificata dalle relazioni che ha con le altre (strutturali, funzionali, architettoniche), al punto che queste relazioni possono esssere considerati una quota dell´autenticità della parte e una struttura di sostegno dell´autenticità dell´intero” (DOGLIONI, 1997, p. 237, itálico do autor).

invólucro edificado de forma isolada, e não como partes que, articuladas, consubstanciam o

espaço arquitetônico ou urbanístico. Como já foi explicitado, a forma como a UNESCO73

propõe a verificação da autenticidade dos bens culturais a partir de um conjunto de aspectos – forma e projeto, materiais e substâncias, tradições e técnicas, localização e espaço – é um reflexo claro desse entendimento.

Face ao exposto, o que se pode constatar é que os artefatos da arquitetura e do urbanismo só podem ser adequadamente compreendidos quando se tem como ponto de partida uma visão integradora, baseada no que Zevi (1996) chama “interpretação espacial”, por meio da qual todos os elementos componentes desses artefatos só podem ser julgados com a medida do espaço.

Passando à segunda dessas particularidades, ela diz respeito ao fato de a arquitetura ser uma arte utilitária. De modo distinto das obras de artes plásticas, o fim principal dos artefatos arquitetônicos e urbanísticos é fornecer abrigo ao homem na realização das diversas atividades necessárias à sua vida em sociedade.

Assim, ainda que a mudança seja uma característica intrínseca a todos os artefatos artísticos, naqueles arquitetônicos e urbanísticos assume uma dinâmica distinta em razão dessa sua particularidade. Essa dinâmica de mudança no tempo parece ser potencializada pelo fato de que, enquanto as “manufaturas móveis” são construídas para estar em museus ou protegidas de intempéries e das ações humanas, as “manufaturas arquitetônicas” permanecem onde a história as colocou, expostas à ação da natureza e do homem (MARCONI, 1984).

Bardeschi (2004), ao discorrer sobre o inerente processo de transformação dos artefatos arquitetônicos e urbanísticos no tempo, afirma que não há dúvida de que o processo histórico muda a cidade, muda os edifícios, muda tudo, e é determinante também por modificarem e fazerem evoluir novos níveis sucessivos de identidade. Desse modo, esse constante transformar, faz desses artefatos obras não de um autor, mas de uma sociedade, de uma coletividade (BARDESCHI, 2004).

73 A única atualização ao longo do tempo que se pode perceber na abordagem da UNESCO, no que diz respeito

ao espaço – na verdade mais à escala do espaço que a sua natureza espaço propriamente dita –, foi a gradativa ampliação do quadro tipológico de bens passíveis de ser reconhecidos como patrimônio. Se em um dado momento esse conjunto estava circunscrito apenas aos edifícios monumentais isolados, hoje em dia ele contempla artefatos urbanísticos de diferentes escalas.

Tratando-se especificamente das transformações que afetam esses artefatos, pode-se dizer elas assumem diferentes formas. Em alguns casos, são o resultado da reprodutibilidade continuada dos processos construtivos que advêm do passado e permanecem até o presente. Como exemplo, pode ser citado o periódico refazer do Templo Ise Shinto no Japão e a curta vida útil dos materiais de certas construções africanas, que requerem contínuas substituições.

Em outros casos, as modificações a que os artefatos arquitetônicos e urbanísticos são submetidos não estão mais vinculadas ao rito ou ao ciclo de produção que os originou, uma vez que eles já cessaram, mas a novas circunstâncias e agentes, que podem, com isso, tanto agregar valores estéticos, históricos e outros, como lhes ser nocivas.

Cada uma dessas formas de mudança responde a determinadas necessidades. A legitimação de tais necessidades pela sociedade e o modo como as respostas a elas se inscrevem na materialidade e na não materialidade do artefato, são questões que dizem respeito diretamente à autenticidade. Além disso, a depender da natureza da mudança, a verificação da autenticidade nesses artefatos deverá ser feita com bases distintas, envolvendo diferentes aspectos.

Explicitadas essas considerações a respeito das particularidades dos artefatos arquitetônicos e urbanísticos, já existem elementos suficientes para se iniciar a discussão sobre sua autenticidade. Desse assunto tratará a seção a seguir.