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1. PARTE 1 – CORPOS DESPEDAÇADOS: ENTRELAÇAMENTOS ENTRE

1.3. Espectação

No livro Itinerant spectator/Itinerant spectacle, P. A. Skantze (2013) faz menção ao que, na língua inglesa, ela chama de the practice of spectating. Skantze refere-se especificamente às suas experiências como espectadora que se deslocou por cidades e por países no continente europeu – contexto coberto pelo livro – para comparecer a peças que

também deslocavam-se por diferentes países e cidades para encontrar suas audiências – logo, espectadora itinerante de peças itinerantes. O que a autora aponta como prática no ato

espectatorial é uma série de rituais e de procedimentos que vão desde a escolha de uma peça,

a compra do ingresso, a soma de percepções das diversas culturas e protocolos na conjuntura do evento teatral, até a relação com o espaço do teatro e, finalmente, a interação com a obra apreciada e os diversos processos subjetivos emergentes de cada uma dessas experiências. Logo, processos que a instruíram em uma prática espectatorial elaborada de forma “intuitiva, cumulativa e artesanal”11 e que se assemelha aos procedimentos de criação e de composição

da cena, assim como o da escrita (SKANTZE, 2013, p. 7). Portanto, processos criativos e composicionais que se instituem pela experiência.

Igualmente, a gama de associações, de aversões e de imagens derivada do exercício espectatorial diante de diferentes linguagens da cena, em especial, contribuem para a construção processual de um sistema referencial relativo tanto às artes da cena quanto ao ato

espectatorial diante de cenas diversas: uma formação de implicações estéticas, éticas e

políticas. Do argumento da autora, o mais relevante para este capítulo é a possibilidade inesperada de referirmo-nos aos processos espectatoriais como práticas no contexto do vocabulário que permeia as artes da cena no nosso contexto brasileiro, pois prática, até então, é essencialmente uma palavra utilizada em referência ao labor do artista que compõe a cena. Logo, não seria curioso o atrelar do ato espectatorial à ideia de prática, afinal não seria o espectador o oposto do praticante?

No que tange à expressão the practice of spectating, ela pode, na língua portuguesa, ser traduzida por (i) prática da recepção ou (ii) prática da expectação – de acordo com o termo utilizado por Jorge Dubatti (2011) e com a palavra disponível nos dicionários de língua portuguesa. Porém, sugiro uma pequena alteração na grafia da palavra (já empregada acima) que empresto de Dubatti: espectação. O termo recepção é um conceito já estabilizado e reconhecido dentro dos estudos referentes à cena, pois, advindo dos estudos literários, carrega uma linhagem teórica que engloba uma longa tradição de análise das diferentes camadas das relações espectatoriais com a recepção do objeto de arte. Numa abordagem menos especializada, a palavra “recepção” também carrega a ideia de alguém que recebe algo: um receptor. A função geral do receptor, nos diferentes contextos que habita, é a de receber, de fazer passar e/ou decifrar um código ou mensagem para a efetivação do processo comunicativo. Dessa forma, parece apropriado problematizar a escolha por esse termo no contexto da cena que se estabelece por vias de afecção e de embriaguez sensorial perpassada por opacidades – em vez de comunicar uma mensagem –, pois, mesmo que o ato do

espectador estabeleça-se pela inter-relação entre o semiótico e o fenomênico, existe na noção de receptor uma imobilidade que, nesse contexto, parece insuficiente para apreender a condição espectatorial. Logo, a noção de expectação trazida por Dubatti parece mais fecunda para tratar a dimensão fenomênica que compõe a experiência espectatorial aqui abordada e o deslocamento ontológico que se propõe ao espectador.

Existem, ainda, duas palavras designadas em duas línguas distintas para nomear o ato do espectador, e que, possivelmente, podem ajudar a iluminar o porquê da escolha feita pela palavra espectação (escolha que não se dá de forma descomplicada): spectatorship e

expectación. Spectatorship, na língua inglesa, faz referência à especificidade do ser

espectador, cujo sufixo, -ship, denota uma qualidade e evidencia uma condição. Por sua vez, a palavra “expectação” tem sido crescentemente considerada como outra forma de referência ao processo espectatorial e parece ter surgido como tradução direta do termo espanhol

expectación, empregado por Dubatti, como mencionado acima. Contudo, “expectação”, em

português, denota expectativa: o esperar ansiosamente por algo que se almeja, a ansiedade que olha com determinação para um horizonte que se deseja ver realizado. Logo, a escolha terminológica feita por Dubatti e traduzida para o português como “expectação” é, de certa forma, acertada quando direcionada ao ato espectatorial, pois adiciona uma dimensão de anseio pela cena. Na expectação, o espectador se tornaria expectador, desejante do acontecimento e sedento pela relação convivial da cena. Mas seria “expectação” o termo mais adequado para pensarmos as dimensões da experiência espectatorial no contexto de obras transgressivas? A escolha por esse termo, para além de interessante, também parece insuficiente, pois determina, dentro das articulações linguísticas da língua portuguesa, um aspecto do ato espectatorial que o demarca de forma limitada: “expectação” é demasiadamente contaminada por sua expectativa implícita, que embora compreenda o ato

espectatorial não o define inteiramente. Opto por subverter a grafia da palavra em questão

para espectação, a fim de aproximá-la de espectador. Embora o termo espectação já seja relativamente utilizado, especialmente nos estudos do cinema no Brasil – como pude constatar na produção de trabalhos acadêmicos, teses e dissertações, recentes –, carecemos ainda de uma melhor conceituação e reflexão sobre a validade e, talvez, necessidade desse termo no nosso vocabulário técnico. Por fim, a prática da espectação parece a melhor escolha de tradução para a expressão the practice of spectating, que empresto de P. A. Skantze, para abordar as dimensões das práticas espectatoriais fomentadas pelas relações com a cena da contemporaneidade.

Uma digressão necessária. Nota-se que na questão terminológica aqui debatida não é apena o substantivo do ato do espectador que é questionado, pois cabe também indagar

sobre o adjetivo que caracteriza tal ato no deslocamento ontológico sugerido. Tradicionalmente, no que concerne o ato do espectador tratado como “recepção” a sua adjetivação seria efetuada pelo termo “receptivo”; por exemplo, experiência receptiva. Contudo, se o conceito de “recepção” não é suficiente nesse contexto, seria sua derivação no adjetivo “receptivo” aceitável? A ausência de adjetivo – assim como de verbo e de substantivo, como evidenciado acima – que se afilie etimologicamente à palavra “espectador” na língua portuguesa complica as possibilidades de lidar com esse impasse. Logo, o termo

espectatorial, (já) implementado inúmeras vezes nesta tese, parece estar sendo

crescentemente utilizado em trabalhos recentes – como, novamente, comprovam estudos contemporâneos realizados na área do cinema. A palavra espectatorial constitui-se em um neologismo e não é encontrada nos dicionários de português. Espectatorial parece derivar diretamente de spectatorial, adjetivo utilizado na língua inglesa para referir-se ao espectador. Foi dessa forma, através dessa tradução direta feita necessária pela limitação terminológica encontrada no português, que também passei a empregar espectatorial como adjetivo para o que concerne o espectador. Assim, o adjetivo “espectatorial” é também aqui proposto enquanto uma derivação necessária para o espectador, complementando e acompanhando a

espectação.

Retornando à questão da prática no ato do espectador, cabe perguntar: o que constituiria uma prática da espectação? A prática traz consigo a ideia de uma “ação ou resultado de praticar”; refere-se à “execução de algo que foi idealizado, planejado”; denota “algo que é real, que se opõe ao que é abstrato”, pois implica o saber oriundo da experiência (Dicionário Aulete Digital)12. Praticar também abrange a “aplicação de uma teoria” ou o

“colocar em prática”. No contexto da espectação da cena, as práticas que compõem o ato do espectador são de naturezas variáveis: concernem à logística do seu comparecimento e à presença no evento, bem como aos processos éticos, estéticos e políticos no seu encontro com a cena e o exercício de ser/existir com o outro pelo espaço-tempo da obra. Dessa forma, seria mais viável falarmos de práticas da espectação em vez de presumir que um processo único ocorra na interação espectatorial com a cena, pois não existe um espectador que possa exemplificar todos os restantes, dado o fato de experiências – como a espectação – serem de natureza pessoal. De qualquer modo, os diferentes tipos de teatralidade e de performatividade produzidos por cenas diversas orientam os espectadores por estratégias que, por vezes, podem desestabilizar práticas previamente construídas e validadas. Isso pode se dar pela complicação da posição do espectador diante da cena testemunhada: seria ele observador, testemunha, participante ou praticante?

A espectação que aqui abordo e sugiro, assim como a percepção, instaura-se pelos sentidos: pelos olhos que veem, pelos ouvidos que ouvem, pelas peles envoltas ou repelidas pela atmosfera do evento, por gostos imaginados ou legítimos, e, ainda, por cheiros sugestivos de memórias e de imagens ou por fortes odores instaurados. Como coloca Maurice Merleau- Ponty (1945/2011) no seu Fenomenologia da percepção: “[...] na percepção os sentidos se comunicam assim como na visão os dois olhos colaboram” na formação de uma imagem (MERLEAU-PONTY, 1945/2011, p. 314). Tanto na apreensão da imagem como na relação com a cena, os processos perceptivos não são binários; pelo contrário, salientam o entrelaçamento entre as diferentes camadas do ser. Na circunstância espectatorial, esse ser refere-se a um ser com e pela obra, que se afeta no contexto do acontecimento com aquilo que a cena propõe e com o que pode ser percebido, ou, mesmo, com a inabilidade de apreendê-lo. No contexto da cena contemporânea, híbrida e mestiçada de estratégias oriundas das diferentes poéticas da cena, o percebido pode ser também insuportável, insustentável na relação espectatorial com a cena e com o ser. Nesse caso, a vivência proporcionada e proposta por uma obra pode instaurar um conflito de caráter ontológico no espectador que se defronta com a obra, problematizando posturas e formas de relação estabelecidas e instigando novas formas do ser-espectador. Nessa circunstância, existe a possibilidade de instauração de uma prática de confrontação com o ser diante do outro, ou como se colocar diante do outro e da cena. A prática fomentada por tal confronto pode promover uma abertura na direção do outro, em que o acontecimento enquadra a espectação enquanto ato intersubjetivo, potencialmente fomentando um alargamento perceptivo não apenas das questões exploradas por uma obra específica, mas também equipando o espectador para uma espectação de si. Logo, a coexistência com e através do outro, em um exercício simbólico, pode possibilitar que o espectador torne-se praticante de uma consciência de si, torne-se espectador das suas respostas e posições perante a cena, que podem vir a afetar o seu “existir diante” do outro na vida; pois “há dois sentidos e apenas dois sentidos da palavra “existir”: existe-se como coisa ou existe-se como consciência. A experiência do corpo próprio, ao contrário, revela-nos um modo de existência ambíguo” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 268). E, nessa ambiguidade, a

espectação instaura-se e problematiza-se.

O contexto da cena que fomenta percepções de choque oferece um bom caso para pensar-se a espectação enquanto prática, pois fomenta experiências espectatoriais que incluem o espectador de forma um tanto complicada. Nessa inclusão, parece ocorrer a fundação do testemunho. Testemunhar é uma ação que traz consigo a participação em uma situação que ocorre, ao mesmo tempo, de forma distanciada e aproximada. Logo, testemunhar é também verbo viável para endereçar a dimensão do ato espectatorial. A testemunha

presencia algo no qual não necessariamente está diretamente implicada, mas pelo seu próprio ato de presenciar, estar presente com o ocorrido, percebe-se comprometida e relacionada com o que foi testemunhado. Em Towards a phenomenology of the witness to pain:

dis/Identification and the Orlanian other, Christine Stoddard (2009) sugere que o termo

“testemunha” engloba diferentes aspectos do ato de testemunhar. Entre eles, teríamos a perspectiva da testemunha ocular, que atesta judicialmente algo visto, bem como a situação daquela que vivencia um fenômeno na irrupção do seu acontecimento, que reside em um corpo que se configura enquanto prova de um vivido atestado através da sua própria presença (STODDARD, 2009). A autora prossegue sua análise pela dissecação do termo “to bear

witness”, que em português seria traduzido como “dar testemunho”; ou seja, atuar enquanto

prova através do testemunho de algo presenciado/vivido. No entanto, uma das traduções do verbo “to bear” é também “suportar”, o que parece um ponto interessante de ser considerado nesta tese, uma vez que suportar pode evocar tanto a conotação de dar suporte ou apoio quanto o ato de permanência diante de algo desconfortável.

Por essa perspectiva da espectação enquanto testemunho, não existe testemunho sem participação. A testemunha está envolvida na ação ou no evento testemunhado e atua sobre ele, seja pela sua intervenção direta, seja pela sua omissão. Portanto, a partir dessa lógica, o espectador feito testemunhador não se classifica como inatuante, ele atua independentemente da in/ação adotada. Com a emancipação e com a possibilidade de intervenção, ofertadas pela atividade participativa, vem também a responsabilidade pelas ações adotadas diante do convívio proposto pela cena.

O testemunho de transgressões na cena pode fomentar processos espectatoriais que facilitam desconforto, perturbação, desorientação; instaura conflitos que se evidenciam preciosamente no campo de afecção entre performer e espectador, objeto e sujeito; um encontro com o outro que se reverte em confronto consigo; ou, ainda, uma interpelação do espectador pela corporeidade performada que se impõe sobre ele. Percepções de choque também podem emergir da experiência de uma alteridade radical, que por vezes pode ser encontrada em si. Assim, a espectação de si, das reações, insurgências corporais e performances do corpo próprio instaura-se. Como coloca Merleau-Ponty:

[…] para que o objeto possa existir em relação ao sujeito, não basta que este “sujeito” o envolva com o olhar ou o apreenda assim como minha mão apreende este pedaço de madeira, é preciso ainda que ele saiba que o apreende ou o olha, que ele se conheça apreendendo ou olhando, que seu ato seja inteiramente dado a si mesmo e que, enfim, este sujeito seja somente aquilo que ele tem consciência de ser, sem o que nós teríamos uma apreensão do objeto ou um olhar o objeto para um terceiro testemunho, mas o pretenso sujeito, por não ter consciência de si, se dispersaria em seu ato e não teria consciência de nada. (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 318)

O encontro com o outro denuncia a nossa vulnerabilidade – minha e dele/a. O encontro com a vulnerabilidade do outro denuncia limitações e impasses pessoais diante de questões levantadas e fomentadas pela cena, e frente ao outro, que não se apreende em totalidade. E, por não o apreender, ele me interpela e eu me estranho. Nas experiências compartilhadas nesta tese, esse autoestranhamento instaurou-se enquanto resultado de processos de insurgência corporal, do corpo rebelando-se em si pelas afecções da cena, do outro que se estabelece como outro por violar modelos de normatividade com toda a força performativa operada pela transgressão, de mim percebida em combustão pelos desencontros promovidos pelo evento. O tipo de espectação que é gerado pelo testemunho de retratos transgressores do corpo em performance parece então poder ser percebido como uma intensidade vivida que inunda o corpo do espectador (o meu): uma intensidade causada por força desestabilizante que vem do mundo, originada na materialização e na performance do imprevisível e/ou do inconcebível e impensável. Essa intensificação opera na produção de uma presença intensificada que desloca o espectador perante a cena: de onde e de qual posição eu testemunho? Quais são as dinâmicas da intensificação da presença que me afeta?