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Os “espelhos-janelas” do Além-mundo

No documento HELCICLEVER BARROS DA SILVA VITORIANO (páginas 131-135)

5. CAPÍTULO V: Espelhamentos fílmicos infernais

5.1. Huis Clos em espelhamento fílmico

5.1.2. Os “espelhos-janelas” do Além-mundo

A opção da diretora do filme, no que respeita à visão dos personagens post- mortem do mundo dos vivos, foi bastante criativa: os espelhos foram convertidos em câmeras ou numa espécie de “televisão” entre mundos que captavam imagens de pessoas ligadas aos condenados ao hotel infernal. Apesar de criativa, a construção de Audry, no que se refere à visão dos mortos sobre a realidade dos vivos, não é nova, pois esta recuperação da historicidade dos personagens em danação já fora concebida por Dante em sua Comédia, conforme apregoa Auerbach (1994):

Dante transferiu, portanto, a historicidade terrena par o seu além; os seus mortos estão privados do presente terreno e das suas mudanças, mas a lembrança e a intensa participação no mesmo os arrebatam de tal forma que paisagem do além se torna carregada. Isto não é tão forte no Purgatório e no Paraíso, pois ali as almas não olham, como no Inferno, exclusivamente para trás, para a vida terrena, mas para a frente e para o alto, de tal forma que, à medida que nos elevamos, tanto mais claramente a existência terrena aparece com a sua meta divina. (AUERBACH, 1994, p. 168).

Na mesma direção, o mesmo Auerbach (1994), insere o realismo do “além” dantesco que diferentemente do realismo de natureza “terrena” não está preso as ações do passado terreno, mas sim a uma situação eterna que é o somatório e resultado de todas as ações pretéritas no plano dos vivos. (AUERBACH, 1994, p. 171).

Com isso, a película dá nova expressão aos momentos da peça que tratam da relação entre os mundos dos vivos e dos mortos, resignificando o “além” dantesco, dando certa “interatividade” entre estes mundos e servindo também como recurso de flashback para melhor compreensão da trama, aproveitando a metáfora do cinema como “janela do mundo”177 que em termos bazinianos é a expressão da realidade filmada

parcialmente que deixa, poderíamos dizer, metonímias do mundo.

Já em Audry, percebemos que a dinâmica muda, pois a janela aberta para o passado se funde com o presente dos personagens condenados, dando, além disso, maior interação entre os mundos e diminuindo o encarceramento dos “hóspedes”, porém a força da imagem em substituição à própria consciência impõe uma nova ordem de pesadelos aos presentes, de modo que enxergar seus crimes sob nova ótica pressupõe maior sofrimento e aumento do sentimento de culpa.

Os quadros abaixo dão uma ideia desta relação com o velho mundo dos vivos. O interessante é que cria a percepção de que o conhecido universo dos viventes é doravante menos conhecido do que se imaginava e o lado do “além” se torna mais claro e contundente, expressando os fins da humanidade que é conviver eternamente consigo mesma.

177“O quadro define, portanto, o que é imagem e o que está fora da imagem. Por isso, ele foi visto muitas vezes como abrindo para um mundo imaginário (a diegese da imagem). É a famosa metáfora da “janela aberta”, atribuída a Leon Batista Alberti, pintor e teórico italiano do século XV, e retomada notadamente por Bazin”. (AUMONT & MARIE, 2009b, p. 249-250). Há que se pontuar ainda que tanto o pintor renascentista quanto o teórico do cinema realista francês fundam suas estéticas sob a égide a-religiosa, ou seja, pondo o homem em primeiro plano, o humanismo. o primeiro é da renascença e o segundo, adepto do existencialismo sartriano, ateu.

Quadro 73

Quadro 135

São assim, espelhos-janelas do além-mundo. Garcin, Estelle e Inês experimentam a visão de relações afetivo-amorosas precedentes, agora vendo como os outros os viam, percebendo como os outros os traíam, os mal-diziam, de modo que não eram tão importantes assim para os demais como pensavam. A imagem acima ainda pode ligar Estelle ao personagem Máusolo (de onde deriva o moderno termo “mausoléu”), especialmente se lembrarmos de como Máusolo amava a beleza e a

ostentação, mesmo após a sua catabasis ao Hades. Diógenes se incumbe de relembrá-lo da nova realidade mortífera:

DIÓGENES – Ó Cário, com que fundamento tu estás cheio de

orgulho e julgas que deves ser honrado mais do que todos os outros?

MÁUSOLO – Mas é sobre meu reinado, ó Sinepeu. Na verdade eu

reinei sobre toda a Cária e também sobre alguns lídios. E mais, eu submeti algumas ilhas e cheguei até Mileto, enquanto subjugava grande parte da Jônia. Além disso eu era belo e grande; e valente na guerra. Mas, o mais importante é que eu tenho em Helicarnasso um monumento gigantesco erigido para mim. Igual a ele nenhum morto tem, nem mesmo arquitetado visando ao belo como ele. Cavalos e homens estão ali representados com a maior perfeição, da mais bela pedra, igual a ela não é fácil encontrar nem nos templos. Então, não te parece que, baseado nisso tudo, seja justo meu orgulho?

DIÓGENES – Tu te referes ao teu reinado, à tua beleza e ao peso do

teu túmulo?

MÁUSOLO – Por Zeus que sim! É isso mesmo.

DIÓGENES – Mas, meu belo Máusolo, nem aquela força, nem

aquele visual estão mais em ti. Se nós escolhêssemos alguém como árbitro de formosura, não tenho condições de dizer por causa do que seu crânio seria mais honrado do que o meu. Ambos estão calvos e lisos; e os dentes também, nós os mostramos na frente; os olhos, nós dois estamos privados deles; os narizes estão achatados. Quanto à sepultura e aquelas pedras caríssimas, talvez coubesse aos habitantes de Helicarnasso fazer exibição delas e se envaidecer diante de estrangeiros, por terem uma grande edificação. Mas tu, caríssimo, não vejo do que podes tirar proveito dele, a menos que digas que, mais do que nós, suportas penosamente um fardo, esmagado que estás sob pedras tão grandes. (LUCIANO, 1999, p. 209).

Máusolo foi um antigo rei vinculado ao antigo império persa que amava a beleza, assim como Estelle ainda se adora. A exaltação da beleza e do orgulho foram formas encontradas por ambos para se eternizarem, não deixando que o tempo os dissipe.

Por seu turno, a obra de Audry deixa patente que somente após a morte, poderemos ver melhor o mundo dos vivos e assim nos conhecermos mais detalhadamente por meio do olhar dos outros que nos “suportaram” ao longo da vida, e também do olhar dos outros mortos que nunca nos deixarão a sós. No quadro 135, por exemplo, Estelle assiste ao próprio enterro à la Braz Cubas.

Após todos os personagens verem-se traídos e avaliados pelos que ficaram no lado dos viventes: Garcin assiste ao seu fuzilamento (Quadro 401) e aos comentários

dos soldados que o taxam de covarde. Estelle é traída por sua melhor amiga Olga, pois esta desfaz sua imagem de santinha perante o marido daquela. Florence, amante de Inês a esquece nos braços de seu amante (diferentemente da peça de Sartre em que ambas, Florence e Inês, morrem juntas, aqui Inês é traída e sua foto é jogada embaixo da cama, sendo varrida da vida de sua amante “in-fiel”).

Ao fim do filme, a realizadora optou por colocar tijolos fechando a janela, encarcerando de vez os três condenados. É uma antecipação da expressão usual em peças teatrais: Rideau: “cai o pano”. Contudo, Garcin assevera: “Eh bien, Continuons178”. A tomada final da película é uma plongée (Cf. Quadro 497) que, segundo nossa leitura, reitera o caráter de submundo infernal daquele espaço, inclusive com o retorno da fumaça indicial.

No documento HELCICLEVER BARROS DA SILVA VITORIANO (páginas 131-135)

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