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A pesquisa corporal empreendida neste processo e seu direcionamento no sentido da criação de uma “poesia corpórea” para cena estabeleceu uma radical mudança de perspectiva dentro do meu percurso, reencontrando o elo, e o local de efetivação das experiências entre os aspectos corporais e as artes cênicas. O processo de identificação das imagens-sensórias no texto, em seguida a mobilização de uma energia corpórea a partir dessas imagens, transformando-as em imagens corpóreas-vocais através das ações, gestos e sonoridades, deslocou o foco da criação para os aspectos corporais apontando um caminho que mais à frente se tornará o ponto central da discussão a partir de um corpo em estado de trânsito, fazendo entender a corporeidade como local de criação e de discussão dos aspectos concernentes a um fazer ético e artístico.

pública na urbanística grega, sendo o espaço público por excelência. http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%81gora.

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Essa primeira experiência de interligação entre as práticas culturais e as práticas cênicas, dada pela construção de uma cena, evidenciou para mim a possibilidade e a potencialidade do diálogo entre essas práticas. Estabelecer um cruzamento entre a mitologia grega através da história de Medéia com a luta-dança Maculelê incorporada e vivenciada pelas dimensões culturais pareceu ser um caminho sincero de construir um diálogo entre culturas na criação cênica. O entrelaçamento dessa prática cultural e das imagens como detonadoras de ações físicas-vocais estabeleceu uma complexidade para o processo apontando novos caminhos para a construção da cena.

1.3. Bakxai-sobre as Bacantes; corpo em processo: do treinamento à cena

A segunda experiência, o espetáculo Bakxai – sobre as Bacantes (2009) que se tornou significativa no que se refere ao processo de transformação corpórea e da criação a partir de seus pressupostos, que estabeleço como leitura para delinear os aspectos de ritualidade, corporeidade e a relação com os convidados estabelecida a partir da cena . A partir dos processos de rompimento dos automatismos operados por uma prática de treinamentos psicofísicos encontrei ressonância com o pensamento de Antonin Artaud (2011) sobre “o ato mítico de fazer um corpo” operando as modificações orgânicas para uma mudança de perspectiva e atuação cênica-social.

Este processo se insere num momento demarcador da modificação do meu percurso de atuação no que diz respeito à consideração do corpo e suas transformações, sugerindo uma possível aproximação com a proposta de “modificação orgânica” empreendida por Artaud. A formação de um grupo de pesquisa prático-teórico em artes cênicas, o Alvenaria de Teatro, efetivou o processo de investigação corporal por mim iniciado no processo de Medéia, também vinculado ao universo mítico.

A necessidade de reconstrução dos corpos para percorrer um caminho na criação cênica a partir de treinamentos psicofísicos iniciou o processo de redução dos instantes encarnados entre pensamento e ação, e em todas as demais instâncias em que a dicotomia corpo/mente se estabelecia como tônica. Para tais incursões estabelecemos uma rígida disciplina diária de treinamento e pesquisa pondo em evidência uma relação dilatada com o tempo de criação, onde a transformação corporal pôde ser vivenciada por cada um em suas buscas subjetivas, tal qual refleti sobre o processo:

49 Cada um com a liberdade de atirar sua única flecha, não para atingir um alvo, mas para imprimi-la no tempo e no espaço, onde o caminho promove as descobertas e a libertação do fim que se transforma numa reverberações de fins. A flecha-corpo que rasga as dimensões deixando rastros, definindo sua meta, imprimindo e [horizontalizando] espasmos imagéticos, construindo teias, vivenciando o seu fluxo vital a cada vez lançado à imensidão (MATOS, 2009, pág. 02).

A escolha por um caminho onde a investigação se estabeleceu como trampolim nos colocou diante de um tempo que priorizava o processo e a experiência, o que nos levou, inevitavelmente, por incursões em um tempo mítico. O espetáculo “Bakxai” falava sobre um Deus estrangeiro, errante, que ao aportar em uma cidade provoca intensas modificações nos comportamentos, sobretudo feminino, libertando-as dos afazeres cotidianos pela embriaguez. O mito de Dioniso foi o ritual de iniciação do grupo e o universo mítico permaneceu como tempo-espaço de diálogo até a criação de uma ritualidade que eclodiu e revelou-se na dilaceração dos diversos aspectos da cena no acontecimento chamado Fogueira que abordarei na última seção.

O processo de treinamento energético que segundo Ferracini (1998, pág.122) busca “quebrar” tudo o que é conhecido e viciado no ator, para que ele possa descobrir suas energias potenciais escondidas e guardadas, seguido por uma abordagem de construção da cena a partir do levantamento de imagens que posteriormente se tornaram o trampolim para as imagens corporais e vocais foram dois aspectos pontuais de ampliação dos procedimentos para a criação cênica neste processo. O pensamento de criação estava pautado numa abordagem multissensorial, onde não somente o texto, mas, sobretudo a dramaturgia corporal, dos gestos e das ações, a vocalidade emitida como imagem sonora, a inserção de trechos de poesia, construíam teias de significações para criação do ritual.

O treinamento se dava em duas dimensões as quais foram denominadas “Fase Apolínea” e “Fase Dionisíaca”. Na primeira fase o treinamento teve início a partir de técnicas corporais que ampliavam uma consciência corporal através dos exercícios de Yoga, Mímica Corporal Dramática, Acrobacias e Estudos Biomecânicos, orientados pelos membros do grupo de acordo com a aproximação pessoal com essas técnicas. Na segunda fase construíamos um fluxo constante de movimentações no espaço de forma contínua, estabelecendo pontos e exercícios pré-expressivos16 para direcionar a energia

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Postulado pela Antropologia Teatral, estudos sistematizados por Eugenio Barba e Nicola Savarese (1995), a pré-expressividade seria um nível básico de organização comum à todos os atores, em que seria

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mobilizada. Baseados na ideia de construção de uma organicidade (FERRACINI, 1998) buscávamos potencializar as possibilidades de gradações de expressividade do corpo, a partir desse fluxo que detonava desafios de equilíbrio, de convergência entre ação vocal e corporal, de conexão psicofísica e nos direcionava para uma construção de um estado de abertura criativa onde “cada corpo estabelecia sua trajetória a partir das conexões e associações pessoais” (MATOS, 2009).

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