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Com que esperança a sorte nos acena?

3 A QUITAÇÃO DAS AÇÕES

3.1 ANTÍGONA, UM POSSÍVEL PRIMEIRO LEVANTE DO FEMININO

3.1.2 Com que esperança a sorte nos acena?

Altivo é o ser orgulhoso, digno e que tem amor próprio. Por outro lado, este mesmo conceito de altivez pode ser relacionado com quem é soberbo, arrogante e que age com presunção. Um conceito paradoxalmente antitético: como se constituir, ao mesmo tempo, um indivíduo honrado e insolente? Ainda mais: como ser um indivíduo quando o seu próprio ser, quem se é enquanto sujeito é, durante toda a vida, subtraído de si mesmo, sendo posto a todo o tempo em negação, em subordinação a outrem? Como ser quando o seu ser é negado? Levantar-se contra a ordem, então, é uma resposta às situações que chegaram ao limite e ressobraram. Sem a impertinência, o discurso das mulheres jamais seria ouvido, porque o que se espera é que elas nem o tenham, uma vez que deter o discurso pressupõe poder, negado às mulheres desde que se pôde documentar a realidade através da escrita, a menos que a negação seja impossível, como foi impossível não reconhecer o talento das irmãs Brontë quando elas revelaram-se as verdadeiras autoras dos romances escritos, com pseudônimos masculinos, e extraordinariamente elogiados na Inglaterra vitoriana.

Ser mulher é, a todo o momento, ser resistente nas sociedades que, independente do tempo, tentam abater sua natureza, seja trancafiada no gineceu, seja subtraindo-a na figura do marido após o casamento. E, se o simples fato de existir pode ser um incômodo, ousar falar e dominar o discurso é imperdoável: o discurso pressupõe uma fala pública, pois “o discurso é um modo de agir uma forma pela qual as pessoas agem em relação às outras pessoas” (FAIRCLOUGH, 2001, p.63), mas às mulheres, o espaço disponibilizado é o do interior, é o espaço do comedimento e da introversão. A diferença entre linguagem e discurso é extremamente tênue, porque os seus conceitos são interdependentes. As mulheres se comunicam com o mundo e entre si, mas com um tipo específico de linguagem, estereotipada através dos séculos e presente ainda hoje no nosso imaginário. Em As fenícias, tragédia escrita por Eurípedes, que propõe um enfoque feminino no

contar a narrativa dos labdácidas, o preceptor de Antígona, também presente nesta obra, revela claramente qual a linguagem das mulheres:

Entra, filha, recolhe-te a teus

aposentos de donzela, agora que satisfizeste a curiosidade, vendo o que desejavas ver. Uma multidão de mulheres, atraída pelo tumulto geral, aproxima-se do palácio real. Resmungar é coisa de mulher. Se uma

coisinha de nada cai na boca delas, acrescentam mais isso, mais aquilo... E como gostam de

falar besteira uma com a outra! (EURÍPEDES, 2008, p. 34)

Ou seja: é perceptível que às mulheres se ensina a fala, a linguagem corriqueira, suficiente para os resmungos e para as besteiras umas com as outras, mas podando as possibilidades de uma maior articulação e expressão do pensamento, limitando o vocabulário, inclusive. Besteiras, já que não eram educadas, logo, não dominariam os campos do conhecimento, como a filosofia, seara dos homens, porque anda ladeada pelo conhecimento e, relembremos do que supostamente foi dito por Francis Bacon: conhecimento é poder. “Existe uma relação dialética entre o discurso e a estrutura social, havendo portanto uma relação entre prática social e estrutura social, em que a segunda é tanto uma condição para a primeira quanto um efeito dela” (FAIRCLOUGH, 2001, p.64), ou seja, manter as mulheres sem o domínio do discurso, revelando-lhes somente a linguagem suficiente para os resmungos e as besteiras, é a garantia de manutenção da estrutura social de dominação dos homens sobre as mulheres. Retirar das mulheres o conhecimento sobre sua própria condição, retirando, também, as ferramentas que as façam questionar as estruturas, é uma arma quase indestrutível de manutenção do domínio através do gênero. Jamais se espera ouvir a voz das mulheres e, quando há o irrompimento, o grito, o levante, nas palavras próprias de Antígona, dirigindo-se a Creonte:

Então, por que demoras? Em tuas palavras Não há – e nunca haja! – nada de agradável.

Da mesma forma, as minhas devem ser-te odiosas. (SÓFOCLES, 2006a, p. 221)

São odiosas as palavras de Antígona para Creonte, como são odiosas as palavras e o discurso das mulheres aos ouvidos dos homens, porque a articulação e expressão do pensamento, que vá além do resmungar, pressupõe a ponta do

iceberg: perda do controle, do poder, da dominação. Através do silêncio, é clara a falta de autoridade sobre as próprias ações, sobre as próprias vontades. Quando o discurso se faz ouvir e vira grito existe possibilidade de retorno ao claustro? Antígona morre, mas não morre definhando, como desejou e ordenou o tio. Ela mantém-se no domínio de si mesma até o final. Morre, mas morre arrastando Creonte para a maldição.

O homem, a mais maravilhosa das maravilhas, aprende sozinho a usar a fala (verso 405 da Antígona): ele se ensina a falar. Diferente do fogo dos Deuses, roubado por Prometeu e entregue aos homens, a fala não é mediada por nenhum elemento metafísico, ela é puramente humana. E este ser-humano-homem, desta forma, domina o discurso, toma para si o poder de criar e decidir mediado pela linguagem. Assim sendo, o que resta às mulheres, deixadas à margem da fala e da articulação do pensamento desde os tempos imemoriais, quando a existência dos grandes deuses ainda domina o mundo sem outros rivais metafísicos? E Antígona nos mostra que, se não é permitida a manifestação através da alocução, que se a dominação pelo outro não consente que o eu se expresse, mas tão somente que o eu exista, – da mesma maneira ruminante como existem os animais dos rebanhos arcádicos –, resta tender à rebeldia para, assim, fazer enxergar-se e enxergar a si mesma como um sujeito. Da mesma maneira que o homem aprende a falar por si só, é inevitável que a mulher, do fundo do seu imposto e abissal silêncio, se erga, rompendo a harmonia da tensão superficial da água, e desponte do abismo da mudez. Esta tensão, uma camada fina e aparentemente imóvel, inerte, espelhada, imutável: até o momento furioso do correr das ondas ou do pulo dos peixes. Às mulheres, o levante é fundamental para a existência, ainda que este se pague com sua felicidade, sua sanidade ou sua vida.

3.2 AURÉLIA ENQUANTO TENTATIVA DE SUBVERSÃO DO MODELO