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Esquivança, amigo, é o que se faz em ti: Modernos cantos líricos

HOMEM/DEUS

2.1. Esquivança, amigo, é o que se faz em ti: Modernos cantos líricos

Uma das obras que ressaltam o trabalho literário de Hilda Hilst com maior vigor estético, sem dúvida é o livro de poemas Júbilo Memória Noviciado da paixão, publicado em 1974 e dedicado a Julio de Mesquita Neto, por quem a autora se declarava platonicamente apaixonada. Ao tentarmos nos despojar da ideia de amor tal qual se evoca na atualidade, ou seja, como compreendemos o amor entre dois seres humanos considerando as suas vivências e trocas de experiências, talvez compreendamos melhor como a autora recria o fluxo intenso de paixão, ligados por um fio invisível que a recorta e a faz projetar no outro, especificamente no ser amado, ressaltando não um sentimento recíproco, porém uma ideia, uma ambivalência, que ora se revela à medida que o sujeito lírico deseja, ama, quer o outro, ora se percebe inevitavelmente distante desse outro que se faz progressivamente mais arredio.

Hilda Hilst ao se retirar da vida de agitações em que vivia, o faz em busca de uma total devoção ao fazer poético. Acreditando ser o isolamento uma maneira mais eficaz de entrega ao fazer literário, a autora se retira em sua chácara e é nesse período de dedicação extremada que consegue compor a parte mais significativa de sua obra. Júbilo, Memória Noviciado da Paixão se destaca dos livros anteriores da autora, por apresentar mais do que seu típico jorro poético e arrebatador. Não que essas características, que marcam o todo literário da Hilda, não apareçam na mencionada obra, mas percebe-se aqui um apuro formal, uma preocupação com o dizer, como se houvesse um debruçar- se mais amadurecido diante do poema.

Semelhantes à lírica trovadoresca, entretanto difíceis de serem rotulados como tal, os poemas que dão forma a Júbilo, Memória Noviciado da Paixão possuem a singular característica de serem antigos e modernos ao mesmo tempo. A leitura dos poemas conduz a um universo paralelo no qual não se vislumbra senão a força sedutora da palavra embriagada de tensão, desejo, medo e devoção pelo outro, que às vezes se entrega, junto com o eu lírico, aos poderosos apelos do amor, outras se distancia, revelando um determinado refluxo de medo; medo da intensidade que lhe é devotada; medo – tão comum nas sociedades contemporâneas - de se expor em demasia ao arrebatamento da paixão.

Neste capítulo, privilegiaremos os dez poemas que compõem “Ode descontinua e remota para flauta e oboé: de Ariana para Dionísio”8, parte do livro Júbilo, Memória... por entendermos que esses poemas traduzem de maneira mais clara e significativa o propósito de nosso estudo, que é perceber na estrutura textual, nas composições das metáforas, como a autora elabora, em sua poética, a feição de um homem deificado, pelo qual ela nutre um desmedido amor e, no entanto, parece-nos intocável, sobre-humano, projetado para além da realidade.

De início, ao fazermos uma leitura atenta do subtítulo “Ode descontínua e remota para flauta e oboé: de Ariana para Dionísio” percebemos que, segundo o dicionário Houaiss de Língua portuguesa, Ode se caracteriza por ser um poema lírico, normalmente destinado ao canto, além de possuir estrofação regular, apresenta temas de caráter alegre e entusiástico. Os vocábulos “descontínua” e “remota”, empregados por Hilst, imprimem uma ruptura com o significado do dicionário: Aqui se processa uma desconstrução da forma tradicional da ode que teve como cultores Catulo, Horácio, Vitor Hugo entre outros. Hilda compõe suas odes de forma inversa: não se presentifica nelas aquilo que mais as caracterizam, o tom festivo; ao contrário, há um lamento profundo, uma exaltação à dor advinda do mais interior da poeta: do seu próprio ar. O fato das odes hilstianas serem acompanhadas por flauta e oboé também descaracterizam as odes tradicionais: as primeiras eram acompanhadas por lira, instrumento de corda, as de Hilda são por instrumentos de sopro, consolidando assim a nítida associação entre o ar e a vida.

A flauta, instrumento mais comum, é muito antigo e sua execução consiste no ato de soprar no interior do tubo, ao mesmo tempo em que se tapam/destapam os orifícios destes. Por sua vez, o oboé é considerado um dos instrumentos de sopro de técnica mais difícil, pois o oboísta (nome dado ao músico que o executa) precisa desenvolver a respiração diafragmática, o que requer um controle do ar para produzir a nota adequada. O instrumentista deve manter um sopro contínuo entre as palhetas do instrumento para que o som vibre.

8

Em 2000, o cantor e compositor maranhense Zeca Baleiro musicou os dez poemas que compõem Ode descontínua e remota para flauta e Oboé.

No instante em que lemos os dez poemas que fazem parte do livro, construímos um elo entre conceito tradicional de ode ao sentido pretendido pela autora: Nesses poemas, não há uma exaltação, um tom entusiástico, há uma quebra, um ruptura, uma descontinuidade promovida especificamente pelo outro, que na maioria das vezes, não corresponde aos apelos do eu lírico. Essa figura, repleta de uma alteridade significativa, desafia os limites de compreensão do eu lírico na medida em que se esquiva e seduz simultaneamente. Nesse aspecto, reportamos ao que Eliade denomina de “fenômeno do afastamento do Deus supremo”. Ao nivelar o homem desejado à condição divina, o eu lírico assim procede tendo em vista a necessidade premente de desvendar-Lhe o mistério. Ela quer diante de si, descortinado, vivo e atuante o homem/Deus. Entretanto, esse ser agora divinizado, parece negar-se a fazer parte da ligação proposta pelo eu lírico e simplesmente se afasta, desaparece da cena amorosa como que se fosse “grande demais para as coisas terrestres”. (Eliade, 2008, p. 105)

A clara menção à mitologia grega, em particular a paixão entre o deus Dionísio e a mortal Ariana, faz-se basilar para a compreensão mais clara dos poemas hilstianos. Considerado como sendo um deus de difícil definição, Dionísio simboliza a complexidade e a metamorfose: ao mesmo tempo fugidio e inatingível, torna-se praticamente impossível traçar um retrato tanto físico quanto psicológico dessa divindade. Normalmente, os escultores optam por retratá-lo como uma criança ou como um adolescente afeminado, e são conhecidas mais de cento e trinta denominações que a ele se referem.

De acordo com o dicionário de mitos literários de Pierre Brunel, Dioníso é o amante de Ariadne a quem, nas versões mais antigas, se une num hieros

gamos, um matrimônio sagrado; já nas versões mais recentes, o herói Teseu

intervém nos amores deles, seja como consolador de Ariadne abandonada em Naxos, seja como amante preterido e ciumento, que manda matar a amada infiel com as flechas de Ártemis (Brunel, p. 242).

A intertextualidade criada por Hilda Hilst se dá através da nomeação do eu lírico – Ariana – que interpela o amado, Dionísio. Tal referenciação alude aos amores tumultuados do deus e do eu lírico. Sendo fugidio, evanescente e impermeável, o Dionísio hilstiano nunca se corporifica perante Ariana. Ele nunca está, nem nunca permanece, porém sua presença é sentida, muitas

vezes palpável, para a amada que o aguarda em aguda ansiedade. Ao refazer, nos poemas que dão forma a Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão, a divindade dionisíaca, Hilda recupera os traços marcantes do deus mitológico mais misterioso: a sua fugacidade, a sua diversidade, a sua capacidade de não se deixar prender pelas interpretações do senso comum. Assim como o Dioniso mitológico, o Dionísio hilstiano, oscilando entre a aura sagrada e o aspecto humanizado, escapa das cadeias que Ariana gostaria de prendê-lo.

A seguir, procederemos à leitura dos dez poemas que compõem o subtítulo “Ode descontínua e remota para flauta e oboé: de Ariana para Dionísio”, tomando como ponto de partida uma tríplice divisão que consideramos pertinente para o estudo neste capítulo, a saber:

I. a não-permanência do ser amado e sua consequente deificação manisfestada pela reiterada ausência;

II. a simbologia da Casa, da moradia, como significado de santuário e, portanto, de permanência para o amado;

III. O erotismo como dupla face do sagrado e da poesia.