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' esse, depois d e ter dado à sua obra

No documento Dez Anos - Gustavo Corção [docx] (páginas 184-191)

todo o fervor tôda a paixão; depois de ter transformado um pe-'

daço quente de vida em papel, em resma -

sim, um enorme pedaço de vida cheio de dias

festivos e de mansos dias comuns - êsse,

diante da lívida e chata substância em que

verteu seus dias, diante da palha sentirá um enorme

desamparo .

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paixão es co nd id a. Q ue m lh e se nti rá a pa lpi ta çã o? Um dia eu vi na rua um

desconhecido que passava sobraçando o meu livo . Passou . Foi-se embora, levando minha alma debaixo do braço.

Mas SP!'á que êle levava, ou melhor, teria

eu efeti vamente imantado de amor

aquêle tijc1o de papel? Como poderei

saber se não cmasigo separar o que f iz

do que sonhei? Ah!, quem me dirá, quem entre as hierarquias dos anjos me dirá, sim ou não, se eu consegui verter, extroverter, dar forma, realizar em

palavras, em frases, em páginas, em capítulos, tudo aquilo que me trouxe dias

e dias em exílio, longe, numa ilha perdida, na doce e melancólica presen ça

da defunta Annabel Lee - enquanto o tempo real passava ao largo de meus

amores de papel . . . Triste coisa, amigos, triste coisa. Ja pensa ram no que acontece em volta do escritor debru

çado? Já computaram o que êle perde? Triste

coisa . . .

No meu caso pesava-me mais uma preocupa ção : imaginara um romance interior, uma expe

riência viva, transposta para outra carne e outra inteligência; imaginara a história de uma alma qi..i

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procura a inteireza das coisas e só encontra na vida

.nos amores, nas rosas, e no sangue a

composição' de ser e não-ser, o conúbio de vida e

de morte _ e que então sente na pele o frio e a

aspereza das in suficiências e da porosidade do ser .

. Os místicos falam de um Dom de Ciência, dom mf uso, sobrenatural, diretamente ligado à pedago

gia do .Espírito Santo e pelo qual a alma aprende

a valorizar as promessas de Deus em contraste com as esponjas ou evanescentes promessas das criatu ras. E é nessa aridez, nessa desolacão do Eclesias

tes que muitas almas cantarinas, orno a de Ma

chado e a de Carlos Drummond, encontram o me lhor tom, o riso triste e encolhido, o timbre de exi

lado que pendurou a harpa no salgueiro com sau. dades de Sião.

Foi·êsse o meu sonho : uma alma, um persona

gem calcinado por avidez de autenticidade, um ho mem empurrado pelo Dom de Ciência, sacudido pelo vento do Eclesiastes. E foi ?ssim que o vi pas

sar ui:i dia, carregando amores falsos e sangue falso, a procura de rubis verdadeiros. Alto, magro, olhar perdido, com uma sombra de sorriso no rosto

triste, andar incerto, braços soltos e frouxos em

imensa disponibilidade -foi assim que o vi passar

no meu sonho, com os seus sonhos dentro do meu sonho.

Previu as objeções. A vida mais interior e mais :

metaf ísi.ca do que dramática não seria vida, e por

conseguinte, seus lances não bastariam para for

mar o romance .

* * ..

Foi pois com surprêsa, com g_rtíssima su·

prêsa, que recebi dos leitores, dos cnticos, :depois desta instituição, os sinais de compreensao e de

apoio . Fiquei espantado. Meu natural. pendor de

pessimista sofria 'um agradável desmentido . E

ago ra, esta sessão solene, em que defronto

personagens importantes, que sempre vira de

lone, .e que qase me pareciam entes de razão, esta J ubilosa e mes perada berlinda em que me

encontro, acrscentam à surprêsa uma pitada de

remorso. Permitam que

me explique melhor . Tenho impetos não só de agra ./

decer, mas de pedir desculpas a todo mundo .

Em bora talvez não pareça., sou por inclinação

natural muito agradecido, muito dependente, e

quase pod_e ria dizer como a grande 'reresa

d'Avila: "Sou tao agredecida que por uma

sardinha me c.ompra riam . . ." Ora, nesta sessão

solene, agrac1am-1e com um avultado número

de sardinhas; e, entao, a tal inclinação natural

que tenho nos nervos _me dá ímpetos de pedir

desculpas, de fazer retrataçoes, de desdizer o que disse e no que por desventura de sagradei desde que iniciei, em meio caminho da vida o novo ofício de escritor . . .

Dou-lhes um exemplo. Tempos atrás publi

quei um artigo amargo a propósito de uma entre

vista concedida pelo sr . Jorge Amado ao "Jornal de Letras". Naquela entrevista, depois de dividir o mundo entre o "lado de cá" e o feérico "lado de

lá", e querendo documentar a paradsíaca situaço

dos escritores "no lado de lá", o f este3ado romancis-

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ta pronunciou esta frase que me deixou roído de inveja: "Nunca vi, por .exemplo, um escritor chi nês sem automóvel". E então, com despeito por êste ingrato ocidente capitalista eu escrevi o artigo que terminava com estas amargas palavras:

f

"ó leitor inspirado, ó moços que por aí andais a rabiscar pensamentos febris, neste desvalorizado

itj.ioma, que mal nos paga os cigarros, eia!, busque . l

mos no arroz e no chá uma inspiração menos in grata. Vamos!,

soou

a hora de nossa emancipação.

Rumo ao Oriente . Vamos à China!"

"É verdade, - acrescentava eu - que ainda mantenho a custo um automóvel adquirido com outro ofício menos oriental, mas já se arma para

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no a lícença de pensar . Fico aqui m_esmo,. neste triste país, oprimido pelo capital co omzado1, ond um escritor não pode comprar ou nao pode manter um automóvel .

"Abro mão da miríf ica perspectiva , resino me à perambulação, renuncio ao júbilo de ver_ hvro meu escrito em alb'anês ou mongol, mas um ideal, ao menos, eu conservo, uma esperança, ao i:neno, eu mantenho: o ideal, a esperança, de nunca, J ma1_s em tempo algum de minha ocidental carrell' 11- terária, dar a um jornal qualquer uma entre1sta com aquêle sabor e aquêle relêvo ue o festeado e.::critor internaciona l soube imprimll". Antes _d

1.sso,

mim o insolúvel problema do consêrto do meu po p'r"'ef iro dar a volta do

mundo p.é · Não · .Dec,,1d1da-

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bre veículo em decomposição. E o problema tor nou- se dif ícil, justamente porque, em certo ponto da vida, mudei de ofício, trocando a técnica pela degradada literatura, neste lado de cá.

"E ia eu correr à procura de uma gramática chinesa, quando se me esfriou o entusiasmo na lei tura da continuação da entrevista. Fiquei sabendo, pelo entrevistado, que mesmo na Rússia e, por con seguinte, na China, não se lê Dostoievsky. Lá, no lado de lá, os escritores que tenham o peculiar re lêvo do sr. Jorge Amado, andam de automóvel, mas Dostoievsky andaria a pé. E olhe lá! . . .

"Não. Já não me seduz aquêle Eldorado das le tras. Embora não pretenda comparar-me ao autor de Irmãos Karamazov, ainda me apego a certos re quintes burueses, como o d!'l não pedir ao govêr-

mente não me seduz êsse negoc10 da Ch1a .·,

Ora como os senhores estão vendo, nos Jª po demos os orgulhar do hemisf ério ocidental e, do trópico do Capricórnio; porque o meu auton:-ovel pode ser consertado, esmerilhado, calçado e pmt do sem que ninguém me obrigue a uma _autocu tic'a sem que ninguém me exija retrataçoes, s_ei:i que 'nenhum poder me force a desviar de um dec1- mo de segundo a linha de meu pensamento. E bs ta essa pequena diferença, para que eu possa p1a clamar a minha infinita pref erência pelo "lado de cá", pelo lado da UNO, da UNESCO, do IBECC - pelo lado do Brasil.

E basta êsse detalhe, êsse quase nada, para que eu possa colocar meus agradecimentos nu.ma pauta mais pura do que aquela a que me levanm meus nervos desabituados àe homenagens. Serao menos

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··" ' f · - de ao de ·qu e que : aos Fundação Universida B IBL IO T E

o que garante umn l>OBlçAo singular ao llvro de Gustavo Corção como obra de arte corre em grande parte pelas excepclo· nals vil'tudes de estilo dêsse ea crltor. Que densa llnguagem a de suas pàglnas t1·epldantes de emoção, quase perdulárias de ri·

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meu renovado automóvel - ficando para mim só, evidentemente, a responsabilidade das derrapagens. E é na obediência daquele mesmo espírito que de fendia Teresa d'Avila da sedução das sardinhas, que aqui lhes torno a dizer muito obrigado, com veracidade, de todo o coração e

diante de Deus .

queza inte1·lor e ao mesmo tempo tão sóbrias, tão severas na sua dicção. Antes de usar o verbo, o 1·omant1sta parece que o desca1· na, sem dó nem piedade, de seus vnlores ornamentais: o que fica é a substância crua e palpitante que constitui o mP.terial de seu estilo, um estilo que parece ma\11

!eito de nervos que de carnes, l'ljo e imperioso, é de uma. vibra tilidade sempre em alto gl'8u de tensão.

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Compositora Grâtlca LUX Ltda. -Rua Frei Caneca, 224 -Fone 32-6345

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Corção, Gus

68-2813

Impressos para fiel

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Moysés Vellinho

Gustavo Corção é menos um criadr de

personagens do que um poeta e um fllósofo sem mé· todo e sem sistema, que apl·ovei ta o espetáculo da vida e o uti· llza como um caleidoscópio de lm{lgens inteligentes e sensíveis.

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