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Após a recepção controversa de seu Poema, e dos ataques impiedosos por parte de Boileau, Perrault considerou que era necessário desenvolver com mais vagar as ideias enunciadas no Século de Luís. As palavras ferinas de Boileau pareceram apenas obstinar ainda mais Perrault em sua empresa. De modo que um ano após a leitura do Poema, Perrault publicava o primeiro tomo de seus Paralelos. Nos próximos dez anos publicaria mais três, cada um tratando de uma temática específica. Esses paralelos foram compostos na forma do diálogo. Um partidário dos antigos (o Presidente) debate com dois partidários dos modernos (o cavaleiro e o Abade). As três personagens disputam em argumento acerca de todas as grandes realizações humanas nas artes e nas ciências. O que o Poema apenas sugeriu, aqui é tratado com a franqueza da prosa. Mas o estilo dialógico serve apenas aos propósitos de Perrault em rebater uma a uma as eventuais vantagens dos antigos. Não há um debate exaustivo entre as personagens, no qual as contraposições sejam robustas de lado a lado. A personagem partidária dos modernos sempre é a que tem a última palavra.

No início do primeiro Paralelo, Perrault traça as características principais da formação intelectual de suas personagens. O primeiro é o Presidente, o amante dos antigos.

O presidente é um desses homens eruditos que parecem ter vivido em todos os séculos, tão bem instruído está de tudo o que neles se fez, e de tudo o que neles se disse. O extremo amor que ele cultivou desde sua juventude por todos os belos conhecimentos fê-lo conservar tal estima pelas obras dos antigos das quais consultou os originais, de modo que crê que os modernos jamais tenham feito algo, nem jamais poderão fazer alguma coisa que se aproxime dos antigos27 (1688, p.

50).

27 “Le présidente est un de ces sçavans hommes qui semblent avoir vescu dans tous les siècles, tant il est

bien instruit de tout ce qui s’y est fait, et de tout ce qui s’y est dit. L’amour extrème qu’il a eu dés sa jeunesse pour toutes les belles connoissances, luy a fait concevoir une telle estime pour les Ouvrages des Anciens où il les a puisées, qu’il ne croit pas que les Modernes ayent jamais rien fait, ny puissent jamais rien faire qu’en approche”.

Este é o retrato do antiquário que Perrault tece. É um homem que se volta intransigentemente ao passado, e tem sua atenção fixada nas raízes de todas as coisas. Um homem que vive para os começos e não para o presente, que se dedica ao passado não porque é meramente antigo, mas porque supõe ser lá a fonte originária de todas as belezas. Ele sempre consulta os originais. É um homem cuidadoso, nunca se apressando a defender qualquer coisa antes de verificar todas as fontes. É nesse sentido que Perrault diz que o Presidente ‘é um desses homens que parecem ter vivido em todos os séculos’. Eles remetem cada pensamento a sua fonte de direito. Ninguém disse algo verdadeiramente inédito. Sempre houve algum antigo que já havia proposto algo semelhante. Viver em todos os séculos implica em verdade não viver em nenhum, mas fora de todos. Implica uma espécie de onisciência. Eis a imagem sarcástica de Perrault. O antiquário não reflete, ele busca a fonte. Como julga conhecer todas as coisas não considera necessário pensar por si sobre cada uma. Basta traçar para elas os nexos que a voragem dos tempos obliterou.

Nota-se ao longo dos paralelos pouca engenhosidade nos argumentos do Presidente. Ele defende os antigos sempre se reportando a autores renomados, mas invariavelmente seus argumentos são rebatidos absolutamente. O antiquário de Perrault é um homem fraco, incapaz de ousar em suas asserções.

Já o Abade, o defensor dos modernos, é pintado muito diversamente. É figura ousada e criativa.

O abade pode também ser considerado como um homem erudito, porém mais rico de seus próprios pensamentos do que os dos outros. Sua ciência é uma ciência refletida e digerida pela meditação, as coisas que diz provêm algumas vezes de suas leituras; mas ele as apropriou de tal modo que elas parecem originais, e carregam toda a graça da novidade. Ele cuidou em cultivar seu próprio cabedal, e como esse cabedal é fértil, retira dele por frequentes reflexões mil pensamentos novos, que, à primeira vista, parecem às vezes um pouco paradoxais, mas que, sendo bem examinados, acham-se repletos de sentido e de verdade. Ele julga o mérito de cada coisa por ela mesma sem ter consideração nem aos tempos, nem aos lugares, nem as pessoas, e se ele muito estima as excelentes obras que nos restaram da antiguidade, promove a mesma justiça com aquelas de nosso século28

(IBID., p. 50-51)

28“L’Abbé peut aussi estre regardé comme un homme sçavant, mais plus riche de ses propres pensées

que de celles des autres. Sa science est une science reflechie et digerée par la meditation, les choses qu’il dit viennent quelquefois de ses lectures ; mais il se les est tellement appropriées qu’elles semblent

O modernista se relaciona com o conhecimento de um modo vivaz, pensará Perrault. Ele fala por si. Sua erudição nasce da necessidade da afirmação do novo, nunca da afirmação do antigo. Para ele, o mérito de cada coisa deve ser julgado ‘por ela mesma sem ter consideração nem aos tempos, nem aos lugares, nem as pessoas’. O tempo do modernista será então o tempo da afirmação do conhecimento legítimo. Há, para Perrault, tal conhecimento. Aquilo que se inscreve numa zona temporal é coisa datada e sem potência. Por isso a figura do Presidente aparece tão fragilizada nos Paralelos. Ao contrário do Abade, ele está preocupado com a acurácia das fontes, em não se expressar mal e nunca parecer paradoxal. De fato, os pensamentos do abade ‘à primeira vista, parecem às vezes um pouco paradoxais, mas que, sendo bem examinados, acham-se repletos de sentido’. Por que parecem paradoxais? Ora, assim o parecem porque ‘carregam toda a graça da novidade’. Aquele que se dedica à novidade conviverá sempre com esse sutil movimento entre o rigor e a inconsistência. Como não se vale de fontes originais, dado que segundo sua percepção científica elas não existem, deve fundar suas ideias sempre por argumentos inusitados e sem a autoridade auxiliadora de algum nome insigne. Perrault poderia dizer que foi o que sucedeu com o Poema. Pareceu paradoxal aos olhos dos antiquários porque era novo no que afirmava.

Já no prefácio do primeiro Paralelo Perrault afirmará seu descompromisso com a boa reputação conferida aos homens que fundam suas ideias todas em autores antigos. Quer se libertar do conjunto de normas de conduta intelectual praticado pelos antiquários eruditos. “Aspiro ainda menos conseguir daí a reputação, posto que censuro os sentimentos de grande parte daqueles que a conferem”29 (1688, p. 25-26).

Ora, a boa reputação é signo de um reconhecimento público. Perrault não deseja o reconhecimento daqueles que outorgam tal reputação. Não o deseja, porque para ele

originales, et on toute la grâce de la nouveauté. Il a pris soin de cultiver son propre fonds, et comme ce fonds est fertile, il en tire par de frequentes reflexions mille penSées nouvelles, qui quelquefois semblent d’abord un peu paradoxes, mais qui estant examinées se trouvent pleines de sens et de verité. Il juge du merite de chaque chose en elle-même sans avoir égard ny aux temps, ny aux lieux, ny aux personnes, et s’il estime beaucoup les Ouvrages excellents qui nous restent de l’antiquité, il rend la mesme justice à ceux de nostre siècle”

29 “J’aspire encore moins à m’acquerir par là de la reputation, puisque je blesse les sentimens d’une

granDe partie de ceux qui la donnent. Je veux dire un certain peuple tumultueux de Sçavans, qui entestez de l’Antiquité, n’estiment que le talent d’entendre bien les vieux Auteurs, qui ne se recrient que sur l’explication vraysemblable d’un passage obscur, ou sur la restitution heureuse d’un endroit corrompu; et qui croyant ne devoir emplyer leurs lumières qu’à pénétrer dans les tenèbres des livres anciens, regardent comme frivole tout ce qui n’est pas érudition.”

os donos da boa reputação são caçadores de frases esquecidas, mais amantes das sombras do passado que da luz do presente. É uma certa “tumultuosaturba de eruditos, que, obstinados pela antiguidade, estimam somente o talento de entender bem os velhos autores, que se entusiasmam unicamente por uma explicação verossímil de uma passagem obscura, ou por uma restituição bem sucedida de um trecho corrompido” (IBID., p. 26).

Perrault Vê na pretensa acurácia do antiquário uma obstinação cega. Eles não digerem o conhecimento para daí conceberem seu próprio pensamento. Não são homens de reflexão, como o Abade, mas de reconstituição e conservação, como o Presidente. Reconstituem as letras corrompidas, dão raízes às palavras dos primeiros autores, vivificam neles o que a voragem dos tempos consumiu. Eis sua maior alegria. Fazer falar os pais primitivos. Embriagam-se com os fluidos emanados dos velhos tempos. A cada fragmento reconstruído, a cada vírgula reassentada, sentem participar da potência de algo já consolidado e glorificado. Por isso é que, “crendo não dever ampliar suas luzes senão a penetrar nas trevas dos livros antigos, veem como frívolo tudo o que não é erudição” (IBID., p. 26).

‘As trevas dos livros antigos’. Que expressão intrigante. Ela somente reforça o sentimento do modernista Perrault. A erudição antiquária nasce com o conhecimento minucioso do passado. A força de toda a sabedoria emana das fontes originais. Os antiquários, segundo a ciência modernista, vivem para iluminar as sombras antigas, os objetos obscurecidos pela vivacidade do presente. Esse presente, para tais antiquários, não tem dignidade. É frívolo. A luz do presente não faz mais do que ofuscar os olhos que tentam se dirigir para as raízes. Ela está desfocada. Deveria se voltar para o lugar acertado. Deveria se voltar para as sombras do passado e ali incidir seu facho de claridade para que enfim nenhuma réstia da glória dos pais primevos permanecesse oculta. Para que as ‘trevas dos livros antigos’ sejam iluminadas é preciso que o presente seja obscurecido. A clarificação dessas trevas apenas conduz ao amor desmesurado aos tempos e interditam o livre fluxo do pensamento criativo. Para o modernista, essa glória já teve o seu lugar. Agora é a vez dos homens que, como a personagem do Abade, pensam por si, que contra o primado da autoridade antiga afirmam o uso livre da razão.

Para o olhar voltado às fontes originais nenhuma contestação contemporânea incita a atenção. O tom que não estiver intimamente imbricado nas sutilezas do discurso do antiquárioé palavra sem ressonância. Nesta ciência, toda contestação ganha um valor

estético. Ela, assim como o elogio, é parte de uma grande cena de reconstrução. Não se contesta um antigo senão pelas palavras de outro antigo. Ele não é glorificado senão com a ode descoberta de um outro. Ao presente cabe a nobre função de preparação do espaço. Ajustar os tablados, distribuir as flores, incitar os ânimos. Cumprir tarefas secundárias, porém não menos ilustres. E depois, quando o cenário estiver pronto, deixar o palco furtivamente e se dirigir aos camarotes e se deleitar com o espetáculo. Diante desse extremo cuidado, dessa responsabilidade com um trabalho que julgam da mais alta nobreza, nenhuma tentativa de perguntar pelo sentido de tudo isso alcança a mínima ressonância. O sentido tem a maior das obviedades, e só pode ser um tolo quem não o nota.

É precisamente este distanciamento avaliativo que Perrault pretende afrontar com suas asserções incisivas. Segundo pensa, não há dúvida de que a modernidade é superior à antiguidade. Basta que alguém se disponha a apontar. E ele, Perrault, se dispôs, ainda que talvez a matéria seja muito extensa. No entanto, está seguro que aquilo que diz no texto será o bastante “para convencer todo aquele que ousar superar todo preconceito e se servir de suas próprias luzes”30 (IBID., p. 32). O modernista não

se contenta com o retorno às fontes originais, porque nelas não há um juízo de comparação suficiente. Somente um juízo racional pode julgar o mérito legítimo de antigos e modernos. E Perrault tem a esperança de que todos aqueles que nunca refletiram sobre esse assunto que, após a leitura de seus Paralelos, se interessem pela matéria e tomem seu partido na defesa dos modernos (IBID., p. 33). Muitos são os assuntos que Perrault não se considera muito fluente. Por exemplo, que proveitoso seria ver

Um excelente filósofo nos oferecer uma história exata do progresso que os homens fizeram no conhecimento das coisas naturais; relatar- nos todas as diferentes opiniões que defenderam no transcorrer dos tempos, e o quanto esse conhecimento aumentou desde o princípio do nosso século, e principalmente desde a fundação das academias da França e da Inglaterra, nas quais pela ajuda dos telescópios e microscópios descobriu-se uma espécie de imensidão nos grandes corpos e nos pequenos, que confere uma extensão quase infinita à ciência que os tem por objeto31 (IBID., p. 36).

30“pour convaincre quiconque osera se mettre au dessus de la Prevention, et se servir de ses propres

lumières”.

31 “un excellent Philosophe nous donner une Histoire exacte du progrès que les hommes ont fait dans la

connoissance des choses naturelles ; nous rapporter toutes les differentes opinions qu’ils en ont euës dans la suite des temps, et combien cette connoissance s’est augmentée depuis le commencement de nostre siecle, et principalement depuis l’établissement des Académies de France et d’Angleterre, où par le

Os modernistas devem apontar os fatos. Contra essas evidências nenhum autor antigo pode se opor, pelo simples argumento de que não vive agora. Portanto, se um antiquário condena um modernista por julgar um antigo de modo injusto, ele não terá, na perspectiva modernista, evocado a melhor censura. Não é uma questão de justiça ou fidelidade. A coisa agora se julga pelas luzes da razão, e todo amor que obscurece esse juízo é crença supersticiosa. As fontes originais não são tidas em grande conta porque mesmo ao estudá-las profundamente e apreender seus nexos e contributos, esse conhecimento nada contribuirá para o juízo de que os modernos devem ser considerados como capazes de um pensamento autônomo.

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