• Nenhum resultado encontrado

1 Olhares da pesquisadora em narrativas

No fraldário:

Depois de tocar o corpo e aferir a temperatura de Pedro, disse:

“Vou dar um banho em você. É bom para baixar a febre”.

(Comenta a professora indo em direção ao fraldário). Em seguida, entra, deita o bebê em frente ao espelho. Retira a fralda usada.

Joga-a no lixo.

Segura o bebê pela mão para levantá-lo. Ele chora. Ela o pega no colo.

Acalenta-o.

Ele se acalma e ela dá o banho. Enxuga-o delicadamente.

Observa seu corpo.

Veste nele uma fralda limpa. Tenta iniciar a massagem...

(Afinal, no planejamento, era dia de Shantala). Ele chora novamente. Vira o rosto.

Parece não querer ser tocado.

Na sala de referência:

Fonte: acervo da pesquisa. Registro em campo, 02/10/2018. Figura 14 - Episódio 2: “Está dodói, neném?”

Hieny senta-se perto da porta de entrada. Abraça o corpo do bebê (está quente). Novamente, afere a temperatura.

“Baixou um pouco, mas continua com febre”.

(Comenta com a colega de trabalho que está na sala). “Você está dodói, neném?”

(Diz ela olhando a face de Pedro).

Levanta. Procura o antitérmico na bolsa do menino. Ela o encontra.

Pega, também, uma colher e caminha para sentar-se novamente (ao chão e sem apoiar as costas).

(Parece que sente um incômodo: franze o rosto e trava o corpo). Nesse momento, uma menina observa Pedro chorando.

Aproxima-se.

Fica em pé ao lado.

Com as mãos, parece perguntar à professora: “O que está acontecendo?”

Hieny escuta seu gesto de corpo curioso. Responde: “Pedro está passando mal”.

Laura encurva-se e pega o medicamento que foi colocado ao chão. (Quer saber para que serve).

“Para febre, para dor”, explica o adulto.

(Quer ajudar a professora a colocar o produto na colher). Hieny leva o líquido à boca de Pedro.

Ele sinaliza com a cabeça que não quer. Em silêncio, ela tenta de novo.

Ele fecha a boca, arqueia a sobrancelha. Vira o rosto.

A bebê abaixa-se, olha nos olhos dele, mostra o vidro e incentiva: “Médio. Toma.”

Concomitantemente, põe a mão na perninha dele. Faz carinho.

A professora tenta novamente levar a colher à boca dele. E ele não aceita. Chora.

Então, a professora incentiva Laura:

“Você não vai dizer para ele que o remédio melhora a dor?” A bebê dá a volta. Fica próxima à cabecinha dele.

Chega perto do rosto de Pedro. Faz carinho no braço e diz: “Médio. Melhora. Dodói”.

Ele não olha para ela. Mas, aos poucos, vai parando de chorar. A professora lhe dá água. Ele toma.

Tenta, novamente, lhe dar o remédio. Ele olha para a bebê. Aceita a colherada. Engole. Faz careta.

A professora o elogia por ter tomado o antitérmico. Laura sorri, bate palma.

(Como que concordando com a professora). Ele aponta para o copo com água.

A professora o serve.

2 No depois: narrativas da professora mediadas pelas fotografias

Nesse dia, eu estava aferindo a temperatura do

Pedro, que é o dia que ele estava mais tristinho. O

que eu me lembro desse dia é que ele chegou bem

para baixo na creche. A gente percebeu que ele não

estava normal, porque ele é uma criança bem

esperta. Ele é ativo. Aí, identifiquei a necessidade

de estar olhando a temperatura dele. E a Laura, né?

[risos]. Ela é uma das crianças, assim, mais ativas

ali no berçário, e ela foi, chegou perto, queria ver,

queria saber o que estava acontecendo [risos]. E eu

ali, segurando o Pedro, e a Laura do lado [risos].

[...]

Ela ficava, tipo assim, apontando, querendo saber:

o que que está acontecendo? O que é que foi? [risos].

(Narrativas da professora Hieny sobre o Episódio 2. Encontro em 04/12/2018).

3 Narrativas e olhares em diálogo: algumas interpretações

O rosto é um terreno de metamorfoses espetaculares que, no entanto, implicam apenas uma mudança ínfima de sua disposição; de um instante para outro, ele é capaz de exibir diferentes expressões. Os afetos vêm modelar-se nele de acordo com o prisma da simbólica que o encarna. Pela amplitude de sua expressividade e de sua posição eminente no conjunto do corpo, por sua conformação – nomeadamente, a presença dos olhos –, o rosto é o núcleo por excelência dos sentidos: por seu intermédio, o autor integra-se a determinada situação, cria as condições para ser compreendido no face a face das comunicações que tecem a vida cotidiana (LE BRETON, 2019b, p. 119).

A face é uma pequena parte da dimensão corporal que compõe o humano. Por meio dela, o sujeito demonstra alegria, tristeza, raiva, medo, dor, tranquilidade, confiança e surpresa. Como dissera Le Breton (2019b), apesar de ser uma superfície reduzida se comparada ao restante do corpo, o rosto pode expressar diversas feições que possibilitam leituras e interpretações, como, por exemplo, as realizadas no campo do afeto. O afeto diz respeito à afetividade, ou seja, “à disposição do ser humano de ser afetado pelo mundo externo e interno por meio de sensações ligadas a tonalidades agradáveis ou desagradáveis” (MAHONEY; ALMEIDA, 2007, p. 17).

Durante o convívio na creche, foram identificadas várias manifestações emotivas nos rostos dos bebês, dentre elas o choro, “[...] uma expressão emocional com características fisiológicas e de caráter social nem sempre compreendido pelo adulto” (SANTOS, 2012, p. 101). Nem sempre é compreendido, em primeiro lugar, porque é necessária uma outra dinâmica temporal, que favoreça uma observação atenta e contextualizada das ações e reações das crianças. E, como na turma de bebês as demandas pelo corpo do adulto são, cotidianamente, num ritmo acelerado, quase sempre não se

consegue ater aos detalhes. Em segundo lugar, porque são vários os motivos que levam os bebês às lágrimas, dentre eles: a fome, a indisposição, o desejo não atendido, a saudade de um ente querido, a disputa por um brinquedo, a solidariedade com um colega que já estava chorando, o sono, o desejo pelo colo do adulto e a dor.

No caso do Episódio 2 apresentado neste eixo de análise, alguns indícios, especialmente a indisposição corporal de Pedro, levaram a professora a se colocar em uma escuta atenta: desde o momento em que Pedro chegou à sala, a docente notou uma postura atípica por parte da criança. Ele buscava se esquivar dos colegas e não demonstrava interesse pelos brinquedos preferidos como era de costume. Além do mais, ele, também, chorava. Um choro baixinho e contido, que só foi percebido, porque Hieny já estava a observá-lo.

Essa postura de prostração da criança e o choro fizeram com que a docente assumisse uma relação corporal mais aproximada com Pedro. Assim, foi se tecendo a interação: pega no colo, afere a temperatura, leva para dar banho, enxuga delicadamente observando o corpo, tenta massagear, busca dar o medicamento, dialoga, aconchega-o nos braços.

Nesta relação de cuidado do adulto para com a criança, entra em cena uma bebê que parecia se preocupar com o coleguinha. Mobilizada pelo choro de Pedro, ela segue os passos da professora e a acompanha em seus próximos movimentos corporais até que a situação se amenize.

Mas não era um acompanhar só por curiosidade, como narrou Hieny. Com gestos sensíveis, a menina tocava o corpo do bebê, incentivava-o a tomar o antitérmico, preocupava-se com o seu desconforto. “Como será que havia

aprendido a olhar para o outro dessa forma? A cuidar de maneira tão especial de um corpo? A ser tão prestativa?”, perguntava-se a pesquisadora.

Essa postura de respeito e cuidado com o outro, de amorosidade por parte de Laura, faz compreender a importância, como destaca Coutinho (2017), de reconhecer a criança como ator social, e o corpo dela como uma dimensão que vai se constituindo por meio das (inter)ações estabelecidas. Isso significa que seu corpo é diferente do adulto, mas não imperfeito, incompleto e nem passivo.

Nas ações e interações, Laura mostra à professora um outro jeito de fazer e de cuidar: abaixa-se à altura dos olhos de Pedro para conversar, acaricia-o enquanto dialoga, dá a volta para se aproximar ainda mais.

Já a professora valoriza a atitude da menina de cuidar do outro, acolhe e incentiva os movimentos da criança e a linguagem oral quando pede para que ela converse com o menino: “Você não vai dizer para ele que o remédio

melhora a dor?” A atitude e as palavras da professora reforçam a importância

de seu papel como alguém que assegura um contexto de interações aproximadas, coloca-se receptiva às manifestações da menina e, com isso, reconhece sua competência social. Afinal,

[...] para as crianças, o cotidiano é uma arena de encontros e, nas mais diversas situações, elas se lançam na interação; mas a qualidade das relações sociais por elas estabelecidas dependerá, em larga medida, das condições asseguradas pelo contexto, tendo em vista que a competência social das crianças depende do modo como os adultos organizam o cotidiano delas e concebem suas relações, para que desenvolvam sua identidade social e a autoidentidade (COUTINHO, 2017, p. 111).

Outro ponto que ganha destaque é a questão do corpo de Hieny. Como mencionado no Capítulo 3, a sala de referência é o espaço onde ficam a maior parte do tempo as professoras, sobretudo as duas regentes. Por não possuir mobiliário adequado (nem uma cadeira sequer), o adulto tem duas opções: ou permanece de pé, ou se acomoda ao chão. Sobre esta questão, da inadequação e/ou da falta de mobiliário no berçário que contemple também o corpo do adulto, resultados semelhantes são encontrados em outras pesquisas (SABBAG, 2017; SILVA, 2018; BUSS-SIMÃO, 2019), evidenciando que é imprescindível pensar e providenciar mobiliários que permitam o bem-estar de docentes e apoiem sua disponibilidade corporal para estar no chão, uma posição demandada na relação com os bebês. Como alerta uma das pesquisas referidas, é preciso pensar em

[...] readequações de materialidades que atendam e potencializem essa disponibilidade corporal na docência com bebês que exige estar na posição terrena, na horizontalidade, junto ao chão para atender às demandas dos bebês. Sendo a disponibilidade corporal uma marca da/na docência com bebês, é preciso que existam materialidades adequadas para uma relação educativa que privilegie tanto os bebês como também os adultos nas instituições de Educação Infantil (BUSS-SIMÃO, 2019, p. 7, grifos da autora).

Pensar e adequar os mobiliários na Educação Infantil como um todo e nas salas de berçário em especial é criar oportunidades para que as ações e interações corporais na creche se deem de forma mais acolhedora e aproximada, com pessoas mais sadias e felizes! O necessário diálogo com o campo da arquitetura já vem há tempos sendo indicado como essencial para a Pedagogia e as práticas educativas na Educação Infantil. Entretanto, essas produções focam-se mais nos corpos da criança e menos nos corpos dos adultos em relação (CARVALHO, 1990; CARVALHO; RUBIANO, 1994; VECCHI, 2013).