• Nenhum resultado encontrado

Está legal No bolo, no convite Você me deixe viu redarguiu ele.

-

Vai olhar ali no bolo, vai olhar, o símbolo está bem grande no bolo e depois você me pergunta quanto foi que você me deu por ele - disparou Manuela, saindo de cena e deixando seus interlocutores resmungando sozinhos.

Francisca e Edson não eram os únicos insatisfeitos. Também se sentindo negligenciado, Romano, um dos responsáveis pela Biblioteca Comunitária do bairro, resolveu ir embora antes mesmo do término do evento. Eles não apenas estavam irritados com o esquecimento de suas figuras, mas também com a oportunidade dada apenas a Jaciara, a única dentre eles a ter tido o direito à palavra. Visivelmente enciumado, Edson disparou: “por que nós somos parceiros e nenhum nome foi citado? Deixar Jaciara falar, pelo amor de Deus! O espaço é nosso, quem comanda somos nós. Eu não quero saber de bolo não; eu queria era o reconhecimento para o público ver o nosso nome ser citado”. “Tudo é questão de conversa, homem” - tentou contemporizar Francisca. “A gente se desdobrou tanto… Presidente e vice- presidente correndo atrás de curso, cedemos o espaço [ele se refere à sede da BCS que foi construída no local onde abrigava a antiga sede da associação] (…) Os estranhos são eles; estão aqui para se promover; tinha que chamar a gente para mesa; mas não, nos isolaram. Eu estou muito magoado” - finalizou ele.

Vale recapitular alguns detalhes desta trama. Durante a festa, todos os discursos das autoridades presentes giraram em torno das boas relações entre os policias e os moradores, da confiança que homeopaticamente os primeiros estavam lapidando no coração dos últimos e a diminuição dos índices de crime contra a vida. Para celebrar os laços de cordialidade com a comunidade, a PM organizou um baile de debutantes intitulado “Dia de Princesa”, onde meninas do bairro, às vésperas de completar seus 15 anos, foram escolhidas para um dia de

tratamento em um salão de beleza [a experiência nos foi mostrada em vídeo] e para dançar uma valsa com os príncipes, a saber, os policiais. De acordo com a capitã Manuela, a iniciativa já havia sido realizada nas UPPs cariocas com bastante êxito.

Durante o baile, todos os soldados foram bastante assediados, não apenas pelas debutantes, mas também por seus familiares e demais moradores do Calabar. As pessoas solicitavam fotografias e faziam questão de demonstrar intimidade com os guardiões da ordem. Em especial, soldado Tagner, um dos praças homenageados pela comunidade na festividade (numa indicação do grupo gay e da associação de mulheres do bairro), foi um dos mais cortejados. Dançou com quase todas as meninas; foi fotografado dezenas e dezenas de vezes. Talvez o porte imponente do policial, que é um rapaz boa pinta e bastante musculoso, fossem a justificação para tamanho alvoroço. Também era curioso observar a tamanha empatia que as crianças tinham para com a sua figura. Tal cena me fez pensar que a principal arma que os policiais poderiam utilizar para “dominar” este território seria o carisma.

Contudo, em que pese todo o esforço da PM em cativar a comunidade, algumas lideranças comunitárias, em conversas privadas, ponderaram que muitos moradores têm a mente fechada e, por vezes, são de difícil entrosamento. Em verdade, segundo eles, muitos possuem envolvimento com o tráfico de entorpecentes e por este motivo preferem não aparecer ao lado de policiais, temendo possíveis represálias. Na avaliação deles, policiais como Tagner e Renato (que também havia sido homenageado, em virtude de suas aulas de informática na sede da BCS) fazem um bom trabalho e possuem o tato para a lida comunitária. Entretanto, esporadicamente, durante o patrulhamento, eles terminam fazendo pequenas ou grandes apreensões de pacotes de drogas, o que de certa forma gera o descontentamento daqueles diretamente relacionados aos sujeitos presos em flagrante. Sobre este último aspecto, Jaciara, certa vez, foi bastante didática: “é que o pessoal tem de entender que é uma polícia comunitária, mas também ela tem de reprimir porque, afinal de contas, ela é uma polícia. É igual a um leão domesticado. O leão domesticado não deixa de ser leão; se você fizer algo que o atinja, ele vai lhe morder”.

Do meu ponto de vista, o mais interessante neste processo é a forma com qual a polícia imergiu na dinâmica da luta por reconhecimento social (Honneth, 2003) dentro do bairro. Neste sentido, estou a falar, vale ressaltar, mais de permanências do que de mudanças.

Antes da ocupação policial, o Calabar era territorialmente, e continua sendo, dividido em duas localidades: a “Bomba” e o “Camarão”. A primeira compreende a área contígua à Avenida Centenário e é fronteiriça à favela vizinha, o Alto das Pombas; a segunda corresponde à fratria mais próxima aos bairros de Ondina e do Jardim Apipema. Na

experiência vivida dos moradores, a subdivisão era, por assim dizer, um sistema classificatório produzido pelas disputas em torno da liderança do comércio de entorpecentes no bairro. Havia (e ainda há) duas facções vinculadas ao tráfico de drogas e cada uma delas dominava um determinado território. A animosidade entre eles ultrapassava as fronteiras da atividade ilegal em si mesma, chegando a interferir no direito de ir e vir do morador comum. Assim, era uma lei mais ou menos tácita na localidade: quem reside na “Bomba” não frequenta o “Camarão”, e vice-versa. Com o passar do tempo, a rivalidade foi sendo assumida mesmo por aqueles que não possuíam nenhum envolvimento com o mercado ilegal de substâncias psicoativas. De certa forma, a localidade do “Camarão” era a parcela mais fragilizada de toda a contenda, porquanto os poucos serviços públicos presentes no bairro estavam (e ainda estão) situados na parte “contrária”, quais sejam, a biblioteca comunitária, a creche e o posto de saúde. Como entre os moradores havia o receio de transitar livremente pelas ruas do Calabar, paulatinamente foi se sedimentando na mente da população do “Camarão” a ideia de que os seus co-irmãos tinham mais assistência do Estado. É o que pude depreender da leitura do referido relatório produzido pela ONG Avante (2014). Nem mesmo as crianças saiam incólumes destes conflitos. Não raro, no espaço da creche comunitária (um local que tentava respirar ares de neutralidade), meninos e meninas das distintas subdivisões brigavam e trocavam insultos, atualizando, na seara da infância, o conflito entre as duas porções do bairro. A solução, para muitos, seria a criação de uma outra creche na área vizinha. Uma vez que a BCS foi instalada exatamente no centro da “Bomba”, a PM contribuiu, uma vez mais, para reforçar a imagem de haver uma população privilegiada em detrimento da outra. Ciente deste fato, ela passou a adotar o seguinte estratagema: quando da ocasião de datas comemorativas, o revezamento entre as duas territorialidades. Um exemplo bastante claro: a festa do dia das crianças é realizada no “Camarão”, enquanto que o Natal é comemorado na “Bomba”.

De outra ponta, no que se refere às relações ora de amizade, ora de inimizade entre as lideranças comunitárias locais, a instalação da BCS dinamizou ainda mais o domínio do último em detrimento do primeiro. Anteriormente, o “faccionalismo político” entre os líderes do bairro tinha um momento certo para se tornar mais evidente, a saber, o período eleitoral. Durante estas épocas, quando a comunidade era (e continua sendo) invadida por políticos profissionais, fazendo com que a população experimentasse a sensação de estar diante de autarquias estatais (e de suas possíveis benesses), cada representante comunitário optava por apoiar um determinado candidato ao pleito eleitoral, desta forma deflagrando a guerra em busca de votos. Uma vez o Estado estando diuturnamente presente na vida dos cidadãos, tal

fato alterou a forma com a qual este aglomerado urbano vivencia a “temporalidade da política” (Teixeira e Alencar, 2004). Assim sendo, do ponto de vista dos líderes comunitários, tudo se passa como se o trabalho deles tivesse aumentado em extensão e intensidade: de um tempo já pré-determinado para uma indefinição temporal. Neste aspecto, Jaciara teria duas vantagens em relação aos demais concorrentes: residir próximo à sede da BCS; e trabalhar no turno noturno, período correspondente ao término das atividades da parte administrativa da instituição policial. Desta forma, na luta por reconhecimento perante aos demais moradores, ela é considerada pelos seus colegas como aquela que agora apresenta mais condições de ter o seu trabalho reconhecido.

Também a PM estaria pautando as suas ações por esta “gramática do reconhecimento”. Toda a sua atuação é feita e estipulada para superar aqueles que anteriormente controlavam o bairro, quais sejam, os narcotraficantes. Neste quesito, os policiais estariam sofrendo uma espécie de “angústia da influência”, para me utilizar de uma categoria cara ao crítico literário Harold Bloom (2002). De acordo com o autor, levando-se em consideração a obra shakespeariana, podemos entender a “influência” em dois sentidos distintos e complementares: como fluxo do devir sobre os nossos destinos e personalidades; e como “inspiração”, um modelo para uma determinada conduta (Bloom, 2002). A forma com a qual a empreitada policial tem sido efetuada no Calabar e no Alto das Pombas contempla as duas acepções do termo. É, pois, tentando substituir o narcotráfico, enquanto fonte de orientação para o futuro, que os policiais interpretam a sua atividade no bairro; é, também, se esmerando no trato com os moradores que eles pretendem ser um protótipo a ser seguido por aqueles a quem estão protegendo. Neste sentido, eles almejam se tornar um “cânone” para aquela comunidade; quem ambiciona ser canônico, deposita as suas esperanças na conquista de um público, na aquisição de seguidores. E quem seriam estes a serem cooptados? Ora, as crianças e os adolescentes do bairro! É através desta chave-explicativa que até mesmo um baile de debutantes deve ser entendido. Isto tornar-se-á mais compreensível nas linhas que se seguem, onde descreverei o cotidiano das relações entre policiais e moradores, a partir da perspectiva de quatro policiais que tive a oportunidade de entrevistar.

A anatomia da influência

Bloom (2002), na obra citada acima, originalmente publicada em 1973, descreveu o empreendimento literário nos termos de uma contenda entre obras e autores - um já canônico

e de inspiração perene; outro que busca suplantar o seu concorrente, encontrando para si um espaço próprio de criação - no campo da literatura. Se utilizarmos o raciocínio analógico, se substituirmos o palco da invenção literária pelo teatro da vida comunitária, veremos em seus mais diversos tons os dilemas vivenciados pelos policiais nas favelas do Calabar e do Alto das Pombas, na medida em que eles concebem as suas ações como sendo uma luta contra um cânone, a saber, o tráfico de drogas. Daí as angústias, os anseios e os temores…

À primeira vista, pode mesmo parecer estranho este vocabulário psicanalítico para compreender a dinâmica de um dado corpo burocrático, ainda mais quando a burocracia em questão é a corporação policial, cuja natureza institucional é facilmente enquadrada no recipiente comum da ideia de “monopólio legítimo da violência”. Entretanto, se escolho este léxico é porque tenho em mente uma outra forma de entender o alcance das ações das instituições estatais. Apoio-me, pois, nos estudos coloniais, para fazer esta discussão. Desta feita, Stoler (2007), em um artigo intitulado Affective States, ao vasculhar os arquivos do século XIX pertinentes a Indonésia, uma das antigas colônias holandesas, questionou a confiança no modelo weberiano de racionalidade e burocracia quando da análise do poder colonial. Em seu relato, em vez de se deparar com normas da razão, a autora encontrou a si mesma diante de toda sorte de discursos a respeito dos sentimentos e suas possíveis tendências subversivas. Em suas palavras: “my argument is rather that the Dutch colonial state’s concern over sentiments, the state’s assessment of the intensity of ‘feelings’, ‘attachments’, and senses of belonging (…) were not metaphors for something else but instrumental as ‘dense transfer points of power’” (Stoler, 2007: 07). A etnóloga, ao analisar a produção de normas e regras em relação às emoções e sentimentos, privilegiou o ponto de vista do colonizador. Mais uma vez, pensando em termos de analogia, reafirmo que tomo neste meu relato a perspectiva do policial como o norte de minha análise; não contente, ainda trato as relações entre moradores e policiais a partir da noção de “situação colonial”41 (Balandier, 1993 [1963]).

Ao assumir este arcabouço teórico, torna-se-á necessário responder as seguintes perguntas: o que representa, na ótica do policial, o policiamento comunitário? O que significa, para ele, estar 24 horas presente em um lugar concebido como um antro da perdição e da violência? Como ele deve se portar nesta situação? Quais são as categorias por ele utilizadas para classificar este admirável, mas não necessariamente novo mundo? E o que toda esta discussão tem a ver com a experiência da adolescência das classes trabalhadoras urbanas?

Para encontrar respostas a estas questões, preciso, contudo, apresentar os meus interlocutores, a saber: a capitã Manuela e o tenente Márcio, respectivamente a primeira e o segundo comandante da BCS; e os soldados Tagner e Renato.

De nome e genealogia, meus interlocutores têm pouco a oferecer: seus ancestrais não pertenceram às elites econômicas, tampouco ocuparam algum papel mandatário na cidade. Exceto pelo tenente Márcio, que é filho de pai engenheiro e mãe médica, os demais são oriundos de famílias pertencentes às classes populares. Tal como os jovens beneficiados pelo Higher Level, majoritariamente frutos da união de um homem profissional autônomo e uma mulher dona de casa, os três policiais ocupavam no passado posição semelhante dentro da estrutura social: não se enquadravam entre as frações mais deserdadas do subproletariado urbano; estavam, isto sim, nas bordas da integração socioeconômica estável.

Deste modo, meus outros três interlocutores farejaram na carreira estatal uma oportunidade de ascensão social. Mesmo o soldado Tagner, o único a mencionar o componente vocacional como a principal força motriz para a escolha da carreira militar, reconheceu a importância do fator econômico em sua decisão final. Conforme o seu relato, após concluir o curso técnico de engenharia de dados, ele conquistou um emprego compatível com a formação. Por quatro anos trabalhou em uma empresa multinacional, a IBM, quando sobreveio a crise financeira do biênio 2007-2008, obrigando a empresa a cortar gastos e enxugar a folha de pagamento. Tagner foi um dos nomes a entrar na lista de demissões. Uma vez desempregado, optou por se preparar para os “concursos” de ingresso no funcionalismo estatal, almejando a estabilidade do servidor público - isto é, a não possibilidade de perda do emprego por fatores conjunturais42.

Também eram estas as expectativas do soldado Renato quando decidiu se inscrever no concurso para a PM. Naquela época, ele estava cursando “Sistemas para a Internet”, pela Unifacs, uma universidade da rede privada de ensino na capital do estado. Os estágios de trabalho não estavam lhe garantindo uma boa remuneração. Desta feita, sua então namorada, cujo pai era funcionário da corporação, semeou-lhe a ideia: “por que não a polícia?”. E assim, despretensiosamente, ele se inscreveu no processo seletivo e obteve a aprovação.

Tagner e Renato ingressaram como soldados. A capitã Manuela e o tenente Márcio foram aprovados como oficiais. Após as provas objetivas e físicas, os primeiros frequentaram cursos de formação, por cerca de 9 meses, ministrados pela própria corporação policial; por

42 Num universo de 28 policiais ouvidos em sua dissertação sobre a tutela constitucional da segurança

pública, no contexto da implantação da BCS no Calabar, Joildo Souza dos Humildes (2013) afirma que todos eles mencionaram a estabilidade no emprego como o agente motivador do ingresso na corporação policial.

seu turno, os últimos estudaram por três anos em cursos oferecidos pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), em parceria com a PM, reconhecidos pelo MEC como grau superior.

Se a entrada na corporação policial não havia sido um sonho acalentado por nenhum dos meus interlocutores, o que teria representado para eles o advento do policiamento comunitário? Em primeiro lugar, é preciso dizer que eles nunca haviam cogitado trabalhar como policiais comunitários. Os soldados Tagner e Renato, assim como o tenente Márcio, foram seduzidos pela expectativa do acontecimento novo, isto é, foram tomados pela ideia de se tornarem precursores de alguma coisa. Por seu turno, a capitã Manuela encontrou na BCS uma oportunidade de coroar a sua trajetória pregressa em torno da questão social. Vejamos mais de perto o seu relato.

De acordo com ela, o seu primeiro posto de trabalho na PM havia sido o batalhão do centro da cidade de Camaçari, região metropolitana de Salvador, onde ela assumiu uma função administrativa, auxiliar do major comandante da unidade, e outra operacional, chefe da viatura local. Manuela ainda iria trabalhar em Arembepe, praia do litoral norte do estado; Eunapólis, cidade interiorana situada no sul da Bahia; em Praia do Forte, distrito do município de Mata de São João, até retornar à primeira casa. Em suas palavras, o retorno correspondeu ao início de sua “história comunitária”, embora ela soubesse que o “social” já estava lhe perseguindo há tempos. Mas o que seria o “social” em sua ótica?

Ao acompanhar a trajetória da capitã, temos que inicialmente nos livrar de um primeiro ardil: o de postular uma descontinuidade ontológica entre o signo e o referente, a linguagem e o mundo. Veremos que no relato de Manuela há mesmo um colapso da distinção entre epistemologia (linguagem) e ontologia (mundo). Há, isto sim, a progressiva emergência de uma “‘ontologia prática’, dentro da qual o conhecer não é mais um modo de representar o (des)conhecido mas de interagir com ele, isto é, um modo de criar antes que um modo de contemplar, de refletir ou de comunicar” (Viveiros de Castro, 2007: 96). Em outras palavras, na medida em que um ator descreve uma realidade, temos que nos indagar qual é o seu quinhão na construção desta realidade. Desta forma, assim como Collins (2014), eu gostaria de argumentar que as forças policiais desempenham um papel muito maior que à primeira vista poder-se-ia pensar, caso ficássemos presos à imagem da corporação enquanto meros sustentáculos do poder repressivo do Estado, enquanto meros reprodutores de assimetrias sociais. Para nós, é importante demonstrar a dimensão produtiva desta instituição, o seu papel na produção de cidadãos, valores e espaços morais na atual cidade da Baía. Neste quesito, as

perguntas passam a ser: “what does policing motivate? What does policing make possible, in a productive sense?” (Collins, 2014: 477). Voltemos, pois, às aventuras de Manuela.

Em conformidade com a sua narrativa, dificilmente ela era encaminhada para operações de combate e enfrentamento, de sorte que ela sempre se deparava com episódios de “cunho social”, nomeadamente: o pai que violentou a própria filha; o filho que entrou no mundo das drogas e roubou a própria mãe; brigas de marido e mulher; maus-tratos a idosos, dentre outros. Os casos de estupro dentro da esfera doméstica foram os que mais lhe chocaram e os que mais lhe despertaram inquietações epistemológicas. E essa menina que havia sido violentada pelo próprio pai? Depois do exame de corpo-delito e da apresentação do criminoso à delegacia mais próxima, o que acontecerá com a vítima? Encontrará ela o seu progenitor novamente? E nesta situação, como se dará a relação com o antigo agressor? Haverá algum amparo por parte do Estado a esta adolescente? Estas eram, pois, algumas perguntas que pairavam em sua mente.

Dentro da própria corporação policial, Manuela encontrou um oásis para saciar a sua “vontade de saber”. E aqui vale, uma vez mais, o reforço do argumento. Não se trata do encontro com o desconhecido, encontro este que poderia ser configurado a partir de uma escala evolutiva que começaria com o não saber e terminaria com o saber absoluto. Temos que nos libertar de uma concepção reducionista do conhecimento como falta - em termos psicanalíticos, do desejo de conhecer - substituindo-o por uma teoria das mentes desejantes enquanto “pura produtividade positiva que deve ser codificada pelo socius, a máquina de produção social” (Viveiros de Castro, 2007: 96, grifos do autor). E assim, primeiro a capitã se matriculou em uma atividade de prevenção ao uso de substâncias psicoativas, no âmbito de um programa institucional da PM, a saber, o PROERD - Programa Educacional de Resistência às Drogas. Em seguida, se inscreveu para o processo seletivo de uma pós- graduação em Direitos Humanos, direcionado à funcionários do Estado, tendo sido uma das selecionadas - em meio a promotores da justiça, delegados do primeiro escalão da polícia

Documentos relacionados