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3.3 A passagem do espaço projetivo ao espaço euclidiano

3.3.15 O Estádio III: A descoberta da horizontal e da vertical

Se o estádio I é caracterizado pela ausência de abstração das retas e dos planos, se o estádio II o é pela ausência de sistemas de referências exteriores à configuração considerada, o estádio III marca a conquista progressiva de tais sistemas de referência exteriores, portanto da construção de eixos e coordenadas generalizadas ao conjunto do campo espacial, sendo que essas conquistas são graduais. Há presente, neste sentido, uma distinção de três conjuntos de reações: inicialmente comportamentos intermediários entre os níveis II B e III A com a descoberta da horizontal quando o vidro é deitado a 90º e com descoberta igualmente parcial da vertical, a seguir um nível III A com a construção progressiva das horizontais e das verticais em todas as posições e finalmente um nível III B com a generalização operatória imediata. Com efeito, a posição atribuída à água na situação deitada do vidro (90º) constitui a primeira forma autêntica da horizontalidade descoberta pela criança, em oposição à posição virada (180º), na qual a horizontal é devida ao paralelismo com a base do vidro. Como, portanto, os sujeitos desse nível, chegam à descoberta parcial da horizontalidade para a inclinação de 90º, e por que essa descoberta não é estendida a todos os outros casos?

Que a experiência desempenha um papel essencial na descoberta do fato físico que é a horizontalidade da superfície da água, é um fato que não pode ser contestado. Mas essa experiência realiza-se em duas etapas que implicam uma estruturação geométrica que ultrapassa o dado físico. Trata-se inicialmente de retirar a constância de uma certa forma: a superfície da água constitui um plano e é a experiência que revela essa forma; mas, por mais simples que seja, essa leitura da experiência supõe seguramente a possibilidade de conceber um plano. Em segundo lugar, a experiência física atesta a constância da orientação desse plano que é a superfície da água, isto é, que uma régua aplicada contra o vidro na altura do nível da água pode coincidir sem mudança com um novo nível se inclinarmos mais o vidro. Mas em que consiste esta experiência

do plano e da constância de orientação? Ela é devida primeiro a certas ações particulares ou especializadas, tal como controle exercido por meio do olhar e da régua etc., portanto em alguns aspectos delimitados dos objetos exteriores e chegando a uma certa abstração, que torna a extrair do objeto tais aspectos delimitados para registrá-los e assimilá-los à aquisição conceitual do sujeito. Ora, uma experiência só é possível se seu resultado pode, em primeiro lugar, ser constatado (leitura da experiência), além de, sobretudo, em segundo lugar, interpretado. Tanto essa leitura quanto essa interpretação supõem sempre um sistema dedutivo suscetível de assegurar a assimilação intelectual da experiência. Em outras palavras, não é suficiente exercer certas ações especiais sobre certos setores particulares do real para retirar um conhecimento preciso; mas, por outro lado, é preciso coordenar essas ações (simultâneas e sucessivas) entre si. Ora, essa coordenação das ações não é, precisamente, mais da alçada da experiência física, mas caracteriza, ao contrário, o mecanismo da inteligência como tal, e encontra-se em conseqüência no ponto de partida das operações lógicas e matemáticas, inclusive as operações geométricas. Toda coordenação das ações consiste, com efeito, ou em ordena-las umas em relação às outras seriando seus resultados ou em encaixar seus esquemas uns nos outros, caracterizando-se como a construção de um sistema de coordenadas. Ora, é precisamente o início desse relacionamento que permite aos sujeitos descobrir a horizontalidade em certas situações, e são as dificuldades desses relacionamentos que explicam porque a horizontalidade não é generalizada a todas as situações. Não se trata, portanto, apesar da experiência empírica dos resultados, de uma simples descoberta física, mas um início de construção das coordenadas, através da coordenação do objeto considerado com objetos exteriores a ele e distantes.

O estádio III inicia em média entre 7 e 8 anos, isto é, quando da aparição das operações concretas – ele é caracterizado, não mais pelo simples esboço da noção de horizontal em certas situações privilegiadas ou da noção de vertical em função do contexto perceptivo, mas

pela conquista efetiva e geral dessas noções em todas as situações. Em outras palavras, graças ao desenvolvimento das operações concretas, que prolongam e completam as intuições articuladas do estádio II, torna-se possível o relacionamento entre os elementos das configurações consideradas, os sistemas de referências móveis interiores a essa configuração e os sistemas de referência imóveis exteriores a esta. Mas essa conquista final não se realiza em um só tempo, como as das noções mais simples que acabam num sistema total ao redor de 7 ou 8 anos (as retas, as paralelas etc.) constituindo a horizontal e a vertical um sistema de coordenadas, e supondo este o relacionamento de conjunto dos objetos do campo de ação, essa coordenação final realiza-se em duas etapas. Durante um subestádio III A assistimos, por exemplo, a um interrogatório, a generalização progressiva das noções de horizontal e de vertical. É somente a partir de um subestádio III B (9 anos em média) que a horizontal e a vertical são aplicadas sistemática e logicamente a todas as situações. Ex. um sujeito com 10,3 anos de idade inicialmente desenha um nível oblíquo – “Eu não sei se a água vai no canto do vidro (ele inclina um canto ao lado oposto), mas o barco é reto (vertical). – E se eu inclinar o vidro?” (Ele desenha a água muito inclinada e o barco perpendicular à sua superfície). Após a experiência, procura primeiro conciliar tudo – “Assim mesmo ficará inclinada, a água ficará reta, mas no outro sentido ficará inclinada, mas mesmo assim ficará reta (desenha ligeiramente inclinada). Olhe com esta régua. – É reta – E no outro sentido? – Também será reta. – Como é que você sabe? – Eu tive a impressão”. Finalmente com os cartões móveis chega à horizontalidade geral “porque sem isso a água subiria aqui (de um lado) e desceria ali (do outro)”.

Isso posto, como se realiza a descoberta da horizontal e da vertical? Os sujeitos permitem responder do modo mais simples esta questão delicada – os fatos físicos da constância de orientação do nível da água ou da direção do fio de prumo estão bem, em um sentido, no ponto de partida da descoberta, mas esses fatos experimentais não são suscetíveis de constatação e de

indução generalizadora senão sob a condição de serem assimiladas a um conjunto de esquemas coordenadores, cuja sistematização acaba na construção de um sistema de coordenadas. Não é mais o problema físico que conta, mas o problema geométrico de relacionamento das diversas direções segundo os ângulos, o paralelismo, a ordem e as distâncias, isto é, segundo um sistema de conjunto que constitui precisamente o início de um sistema de eixos de coordenadas.