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O estágio do concernimento

No documento O LUGAR DO CORPO NA PSICANÁLISE DE WINNICOTT (páginas 107-112)

O estágio do concernimento16 é uma conquista da época do desmame, tem início por

volta dos seis meses de vida, e leva algum tempo para ser totalmente alcançado. Utilizando como base a teoria da ‘posição depressiva’ de Melanie Klein para redescrever o estágio do concernimento, Winnicott não estabelece um momento exato para a sua conquista, que pode ter início antes dos seis meses de idade ou até um pouco mais tarde, mesmo no desenvolvimento mais ou menos normal, embora nunca atinja graus de completude e estabelecimento totais.

15 No capítulo seguinte será feita uma exposição mais detalhada a respeito das dissociações, e de um caso clínico

específico de elementos dissociados colocados em compartimento no interior do mundo interno pessoal.

16 Nesta seção, segue-se a mesma abordagem das linhas de pesquisas anteriormente realizadas em Dias (1998 e

A conquista do estágio de concernimento é sinal de saúde, e evidencia o fortalecimento gradual do crescimento pessoal, ainda que na dependência de um meio contínuo e sensível. Existe, porém, uma pré-condição para que a criança alcance o estágio do concernimento, no qual, em algum grau, se estabelecerá como pessoa total e se relacionará com outras pessoas nas mesmas condições. Essa pré-condição é a ultrapassagem adequada dos estágios anteriores. Ou seja, quando o desenvolvimento do ego foi fortalecido pelo ego da mãe, e o bebê alcançou o estatuto de um eu unitário, ele está em condições de realizar a tarefa de integração da vida instintual e se estabelecer como uma pessoa total.

Os bebês que não realizarem suficientemente bem as três tarefas da primeira mamada teórica podem não alcançar o concernimento de forma significativa. Estágio que é dependente dos cuidados maternos, assim como os anteriores, porque o bebê ainda tem uma importante tarefa a cumprir, a qual exige tanto “tempo quanto um ambiente pessoal contínuo” (idem, 1988, p.89).

Winnicott ressalta que o estágio do concernimento, como elaboração advinda da experiência instintual, é comparável ao processo digestivo. Nesse estágio, o modelo somático não é caracterizado pela oralidade ou pela genitalidade, mas constitui um processo de digestão. O modelo digestivo traz à luz a elaboração dos resultados da experiência instintual, que é a realização do estágio do concernimento como relação psicossomática. O processo digestivo, como modelo para o concernimento, será melhor estudado adiante, quando nos detivermos sobre o círculo benigno de digestão.

No início deste estágio, quando os elementos do bebê estão se integrando gradualmente para formar uma unidade, os impulsos até então não reconhecidos passam a ter sentido, e são integrados paralelamente à aquisição do si-mesmo.

O bebê excitado, que mal sabe o que está acontecendo, deixa-se levar pelo instinto na sua forma mais crua, com as idéias do tipo poderoso que fazem parte do instinto (deve-se assumir uma alimentação, ou outra experiência instintual, relativamente satisfatória) (idem, 1955c, p.443).

Os ataques ao seio devem ser experimentados inúmeras vezes, até que o bebê, depois de variados ataques canibalísticos, perceba que a mãe atacada é também “o objeto de amor instintual” (ibidem, p.444).

O bebê reconhece que sua mãe é atacada cruelmente pelos seus impulsos instintuais e, de incompadecido17 (ruthless), ele passa a sentir-se preocupado, concernido de que sua impulsividade pode dominá-lo nos momentos de excitação e que pode ferir o outro, que no caso é sua mãe. “Dá-se conta, portanto, que é ele mesmo que, de próprio punho, faz buracos no corpo cheio de riquezas da mãe” (Dias 2003, p.259).

Posterior a um ataque, “que transparece parcialmente no comportamento físico do bebê e que em parte se deve à elaboração imaginativa da função física feita pelo bebê” (Winnicott 1955c, p.444), ele pode sentir uma sensação de fiasco, pois existe a possibilidade de a mãe não mais retornar, e a fruição subitamente desaparecer. A dificuldade resulta na aceitação de que as idéias agressivas contidas no amor instintual são de autoria do próprio bebê, e dirigidas à mesma pessoa que o acolhe nos momentos tranqüilos. O bebê só vai superar esta dificuldade se a mãe sustentar a situação mesmo após vários ataques instintivos.

Aos poucos, caso a mãe ainda forneça total provisão ambiental, o bebê ficará seguro de que, mesmo depois de um ataque, ela estará presente, sustentando as situações excitadas quantas vezes necessárias, juntamente com os estados tranqüilos. Assim, “finalmente estabelece-se o estágio que propicia a junção destas duas funções mentais na mente do bebê”

17 O incompadecimento refere-se às idéias destrutivas dirigidas ao seio na experiência excitada, como veremos

(ibidem, p.443). Caso a mãe sustente a situação, o bebê terá condições de aceitar a culpa, tornando-se livre para o amor instintivo; caso contrário, o bebê não terá condições de completar sua integração instintual.

Se a mãe sustenta a situação dia após dia, o bebê tem tempo para organizar as numerosas conseqüências imaginativas da experiência instintiva e resgatar algo que seja sentido como ‘bom’, que apóia, que é aceitável, que não machuca, e com isto reparar imaginativamente o dano causado à mãe (idem, 1988, p.90).

Quando a mãe é disponível, o bebê tem oportunidade de reparar o ‘dano’ causado pela sua agressividade. No caso, ele pode emitir um sorriso ou um gesto espontâneo de amor como forma de neutralizar suas preocupações e, assim, reparar o corpo da mãe. A presença da mãe é indispensável, porque apenas desta maneira o bebê terá tempo para elaborar a própria culpa e para recuperá-la, fazendo com que neste círculo diário os instintos não sejam mais tão temerosos quanto antes.

Como resultado do êxito das idéias e atos reparadores, o bebê torna-se mais audacioso ao permitir-se novas experiências instintivas: a inibição diminui e isto leva a conseqüências ainda mais ricas da experiência instintiva (...) quando o bebê conta, felizmente, com a existência de um cuidado materno contínuo e pessoal, ele cria uma capacidade de reparação também maior, e a isto se segue um novo patamar de liberdade na experiência instintiva (ibidem, p.92).

A capacidade para tolerar culpas e as oportunidades de reparação são significativamente ampliadas quando o bebê é cuidado satisfatoriamente pela mãe, e conta com a presença e a contínua confiança materna. Situação que permite a ele “um novo patamar de liberdade de experiência instintiva” (Winnicott, loc. cit.). Já em caso contrário, quando o cuidado materno é interrompido ou é impessoal, deficiente e mecânico, o bebê não terá oportunidade para reparar os “ataques”, cuja culpa não será capaz de aceitar, e poderá não integrar sua vida instintual.

Winnicott entende as experiências instintuais formando-se na relação com o ambiente, porque tem início a capacidade da criança sentir-se culpada por intermédio da junção de duas mães − e essa é uma das riquezas alcançadas na fase de concernimento. “A culpa tem início com a junção das duas mães, do amor tranqüilo e excitado, e do amor e do ódio, tornando-se gradualmente uma fonte saudável e normal de atividade nos relacionamentos” (idem, 1955c, p.448).

O sentimento de culpa permite novos horizontes para os relacionamentos interpessoais, bem como o fortalecimento do sentido de continuidade de ser na criança. Ela torna-se capaz de preocupação consigo mesma, projetando-se cada vez mais em direção ao estágio de independência relativa, porque se tornou capaz de encontrar novas experiências, e de assumir a função de pessoa que “sustenta a situação para alguém, sem ressentimentos” (ibidem, p.449). Os instintos e os cuidados maternos lançam o bebê para as primeiras experiências de cuidado com a vida e com o próprio ser.

Sobre o estágio de concernimento, Dias acrescenta que, enquanto a criança está aprendendo a lidar com a agressividade da vida instintiva, “a instintualidade está sendo integrada juntamente com um crescente sentido das partes do corpo, fortalecendo a espacialização e a personalização” (Dias 2003, p.269). Isto porque a integração dos instintos e

da agressividade torna a experiência corporal cada vez mais viva e contínua, fortificando o inter-relacionamento do psique-soma.

A integração dos instintos e a manutenção do estado de unidade trazem consigo outras conquistas de grande valor: “responsabilidade, ao mesmo tempo que consciência, um conjunto de memórias, e a junção de passado, presente e futuro dentro de um relacionamento. Assim, ela praticamente significa o começo de uma psicologia humana” (Winnicott 1988, p.140, itálicos da autora).

No documento O LUGAR DO CORPO NA PSICANÁLISE DE WINNICOTT (páginas 107-112)