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“ESTÉTICA DA ORDINARIEDADE”: OS

No documento Manoel de Barros e os Espaços da Infância (páginas 85-124)

3.1 – “ESTÉTICA DA ORDINARIEDADE”: POÉTICA DA INFÂNCIA?

Após o resgate simbólico feito pela voz do pai, a poesia de Manoel de Barros inicia a sua “Estética da Ordinariedade”, voltada para o Pantanal e não é a grandiosa beleza e exuberância do local que fascinam o poeta, mas sim o ínfimo, o traste, as pobres e pequenas coisas do chão. É interessante ver o que ele próprio fala sobre a sua poética da “ordinariedade”:

O que eu descubro ao fim da minha Estética da Ordinariedade é que eu gostaria de redimir as pobres coisas do chão. Me parece que olhando pelos cacos, pelos destroços, pela escória eu estaria tentando juntar fragmentos de mim mesmo espalhados por aí – Estaria me dando a unidade perdida. E que obtendo a redenção das pobres coisas eu estaria obtendo a minha redenção. (Só os fragmentos me unem?) Mas o que eu gostaria de dizer é que o chão do Pantanal, o meu chão, fui encontrar também em Nova York, em Paris, na Itália, etc. (BARROS, 1991, p. 324).

A “Estética da Ordinariedade” realmente junta vários fragmentos do mundo pantaneiro do poeta. Ao voltar-se para o Pantanal definitivamente, a poesia de Manoel de Barros não vai apenas resgatar bichinhos que rastejam no chão, ela vai muito além disso. Agora, o foco desloca-se para tudo o que, provavelmente, não teria valor, para o que, geralmente, é desprezado, marginalizado. Sendo assim, não só os bichinhos pantaneiros, mas o entulho, o andarilho, o louco, a linguagem do “erro” são a matéria poética que dá corpo aos textos do autor.

A sexta obra, Matéria de poesia, é aberta por um poema de título homônimo, texto que traz, talvez, uma explicação do que a poética da “ordinariedade” procura e exalta:

Todas as coisas cujos valores podem ser disputados no cuspe à distância

servem para poesia.

... As coisas que não levam a nada têm grande importância

Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma e que você não pode vender no mercado como, por exemplo, o coração verde dos pássaros,

serve para poesia.

... Tudo aquilo que a nossa

civilização rejeita, pisa e mija em cima, serve para a poesia.

Os loucos de água e estandarte servem demais.

O traste é ótimo.

O pobre-diabo é colosso.(BARROS, 2010, p. 145)

O projeto modernista brasileiro tinha, como um de seus sustentáculos, a dessacralização da poesia, ou seja, trazer para o poema a linguagem coloquial, o cotidiano e a cultura popular brasileira. Mário de Andrade e Oswald de Andrade foram os baluartes dessa proposta. Manuel Bandeira e Carlos Drummond também deram voz a esses elementos. Barros, igualmente, dessacralizou a poesia e sua maneira particular de fazê-lo foi voltá-la para o ínfimo e torná-la redentora do inútil, dos objetos que não servem para nada.

Mário de Andrade desligou-se um pouco da sua amada paulicéia e rumou para os confins do país em busca das lendas e do folclore. Macunaíma é um exemplo de sua procura. Oswald resgatou coloquialismos do Brasil colonial no

Primeiro Caderno de poesia – pau-brasil. Bandeira evocou o Recife do tempo das

cantigas de roda, ecoando por ruas, pontes e becos. Drummond conseguiu, muitas vezes, tornar sublime o mais simples cotidiano, dando-lhe grandeza por meio de sutis recortes da vida comum, banal, corriqueira: uma pequena “pedra no meio do caminho” trouxe reflexões existenciais das mais profundas.

O brado de inovação dado na Semana de Arte Moderna de 1922 trouxe consigo uma fase repleta de vários grupos que defendiam princípios e manifestos diferentes (Poesia Pau-brasil, Antropofagia, Escola da Anta), os quais se movimentavam ao redor do primitivismo, da xenofobia, da deglutição cultural, entre outros princípios programáticos. No entanto, não podemos duvidar de que todos tinham algo em comum: a negação dos valores literários do passado, principalmente os parnasianos. A procura por uma identidade estética nova fez com que os grandes nomes do passado fossem mostrados como anacrônicos e impotentes na época da velocidade futurista.

A partir disso, houve uma busca desenfreada por uma liberdade poética e, consequentemente, o artista não precisou mais se preocupar com o que merecia ou não ser eleito como matéria de poesia. Aliás, o Sincretismo (Pré-Modernismo14) havia mostrado essa faceta através de Augusto dos Anjos que inovou quando conseguiu tornar termos científicos (considerados até então antipoéticos) expressões de sua explosão sentimental e pessimista, aliando Simbolismo e Naturalismo. A ideia era mudar e experimentar, como atesta Afrânio Coutinho (2005):

A poesia moderna, a princípio, confundiu e desprezou os gêneros; valorizou a livre associação de ideias, os temas do cotidiano, do terra-a-terra, as expressões coloquiais e familiares, a vulgaridade, a desordem lógica. Era o pleno império da aventura e do intuitivismo, da poesia-experiência. (COUTINHO, 2005, p. 293).

E Manoel de Barros? Sua poesia exalta o cotidiano, o regionalismo, a cultura popular do Pantanal? Sim, porém, é o inútil, o nada, o que a sociedade “rejeita, pisa e mija em cima” que faz de Barros o poeta original e que sustenta sua “Estética da Ordinariedade”. Dessa forma, neste capítulo, iremos nos ater aos chamados “fragmentos de mim mesmo”, em que o poeta se reconhece. Fragmentos que constroem a “unidade perdida”: a infância. Fragmentos que são ligados à/pela infância, cabendo então uma pergunta: a “estética da ordinariedade” pode significar a poética da infância?

Contudo, para discutirmos melhor a questão, precisamos de algumas justificativas. Primeiramente, acreditamos que a obra de Manoel de Barros é toda ela um só bloco e que a “Estética da Ordinariedade” sempre esteve presente, porém – como já demasiadamente discutido – nos três primeiros livros – há uma mudança de foco que é causada pela temática urbana e seus desdobramentos. Isso nos levou a

14“Sincretismo”, segundo Afrânio Coutinho (2005), foi um termo cunhado por Tasso da Silveira e “encerra todos os germes que irão desenvolver-se no Modernismo” (p. 252). Para ele, esse período (1902 – 1922) que antecede a Semana de Arte Moderna é uma fase de transição e amadurecimento das ideias que irromperam e escandalizaram o público no Teatro Municipal de São Paulo em 1922: “A Semana de 1922 é, pois, mais do que um ponto de partida, um coroamento, um resultado (Wilson Martins), um ponto de convergência e aglutinação de forças que se vinham constituindo e forcejavam por manifestar-se.” (p. 260). Afrânio Coutinho ainda destaca que outros críticos evidenciam esse caráter do Pré-Modernismo, como Wilson Martins e Tristão de Ataíde.

afirmar que o texto passou por uma tensão, a qual gerou o que seria uma espécie de primeira fase da obra do autor.

Desvencilhando-se das ruínas urbanas, restaram apenas o Pantanal e a infância que se ligam à “Estética da ordinariedade”. Finalizado o choque entre os espaços, temos uma vasta produção que soma aproximadamente vinte obras que se voltam para o ínfimo. Sendo assim, neste capítulo, iremos nos debruçar sobre o restante da produção do poeta, o que pode parecer discrepante, uma vez que dedicamos dois capítulos para analisar apenas três obras e agora iremos dedicar apenas um para analisar todas as outras. O que, então, justificaria nossa atitude? A repetição!

Acreditamos que as obras subsequentes têm sempre como respaldo ou o pantanal, ou a infância. Elementos que são construtores da “Estética da Ordinariedade”. Dessa forma, cremos que o poeta se vale da repetição como um processo estilístico, aliás, processo anunciado em sua primeira produção, que abre o livro de estreia: poesia nascida “Sob o canto do bate-num-quara” (BARROS, 2010, p. 11). A repetição não traz à tona o mesmo e, como mostramos no primeiro capítulo, o próprio poeta nos confirmou isso: “Repetir, repetir – até ficar diferente./ Repetir é um dom do estilo.” (BARROS, 2010, p. 300). Com base nisso, vamos passear pelas obras15 e tentar perceber a repetição e os fragmentos que revelam a “Ordinariedade”.

Lúcia Castello Branco, em ensaio para a revista Aletria, defende que o projeto poético de Manoel de Barros é voltado para a repetição, a qual pode levar o eu-lírico à comunhão com as coisas, com os bichinhos, com o ordinário:

Sabemos que este trajeto, esta descida vegetal ou coisal, consiste, na verdade, num projeto que se coloca desde o primeiro livro, Poemas concebidos sem pecado, de 1937: “em seus joelhos pousavam mansos

15 Obras que formam o segundo momento: Compêndio para uso dos pássaros (1960), Gramática expositiva do chão (1966), Matéria de poesia (1970), Arranjos para assobio (1980), Livro de pré-coisas (1985), O guardador de águas (1989), Concerto a céu aberto para solos de ave (1991), O livro das ignorânças (1993), Livro sobre nada (1996), Retrato do artista quando coisa (1998), Ensaios fotográficos (2000), Tratado geral das grandezas do ínfimo (2001), Poemas rupestres (2004), Menino do mato (2010). Livros que são considerados infantis na antologia organizada pela Editora Leya (BARROS, 2010): Exercício de ser criança (1999), O fazedor de amanhecer (2001), Cantiga por um passarinho à toa (2003), Poeminha em Língua de brincar (2007). Ainda há a trilogia das Memórias Inventadas que foram também publicadas num só volume pela Planeta de São Paulo em 2010.

cardeais...” Trata-se, na verdade, não exatamente de um já, mas de um ainda. Ainda a coisa ou já a coisa? “Repetir, repetir – até ficar diferente”, ele também já nos disse. Manoel ficou diferente, virou outra coisa ou a coisa mesma, aquela a que ele sempre quis chegar? (...) E, em direção inversa à descida coisal que o poeta já vem promovendo ao longo de sua escritura, algo da ordem do sublime ali se descortina: “Quero cristianizar as águas./Já enxergo o cheiro do sol.” (CASTELLO BRANCO,1999, p. 64)

A ensaísta crê que a primeira obra já fornece ao leitor o olhar de Barros voltado para baixo. É interessante perceber que ela questiona se Manoel tornou-se outra coisa ou a própria coisa, mostrando que, após tanta repetição, ele ficara diferente. Será mesmo que sua palavra, seu verbo, seu experimentalismo conseguiu “coisificar-se”? A vontade de sua palavra é a de se tornar árvore, bicho, chão; é a de almejar ver tudo por debaixo. A propósito disso, para Lúcia Castello Branco, só “Há algumas maneiras de se ver por debaixo as coisas. Uma é ser uma delas: a coisa ínfima propriamente dita. Outra é ser menino. De novo. Manoel sabe das duas.” (CASTELLO BRANCO, p. 65).

Com base nessas palavras, podemos dizer que a infância é sim um elemento primordial no processo de construção da “Estética da Ordinariedade”, pois ela é quem sabe brincar com as coisas, ser as coisas. Além disso, a própria repetição é algo inato às crianças. A aquisição da linguagem, por exemplo, é um exercício incansável de repetição.

Jean Piaget (1999) estuda o pensamento e a linguagem infantil e destaca que há varias categorias da linguagem durante o alvorecer da vida. Ele penetra na estrutura de sua linguagem e a divide em duas segmentações: a egocêntrica e a

socializada. Aquela é obra da própria criança, que atrai para si e cristaliza ao redor

das suas necessidades o que é capaz de satisfazê-la. É o plano das brincadeiras, dos brinquedos e da subjetividade. A outra segmentação é a que é edificada pelo meio social, pelos conceitos lógicos, pela pressão que o adulto impõe à criança. Sendo assim, a egocêntrica é mais natural, faz parte do mundo fantasioso e ainda não foi corrompida pelo código adulto. Subdividindo essas duas partes estão as categorias do pensamento e da linguagem infantil e a repetição é um componente dafase egocêntrica. Sobre ela, ressalta Piaget (1999):

Do ponto de vista do comportamento, a imitação é, segundo Claparède, uma adaptação ideomotriz em benefício da qual a criança reproduz e depois simula os gestos e as ideias das pessoas que a cercam. Mas do ponto de vista da personalidade e do ponto de vista social, a imitação parece bem ser, como sustentam Baldwin e Janet, uma confusão entre o eu e o não-eu e entre a atividade do próprio corpo e a do corpo do outro, na fase em que a criança mais imita, ela imita com todo o ser, identificando-se com o objeto imitado. (...) Deste modo, entre os 6 e os 7 anos, quando se dá uma explicação a uma criança e se pede que a repita, ela imagina imediatamente que descobriu sozinha o que, na realidade, apenas repete. (PIAGET, p. 11)

Sabemos que imitar é repetir. Observando a citação acima, vemos que a repetição não é ligada somente à aquisição da linguagem, mas também a outros fatores comportamentais. A imitação na infância assume um caráter tão forte que Piaget chega a afirmar que a criança imita com “todo o ser”, ou seja, como se fosse a própria coisa imitada. Isso nos faz dizer que as palavras de Piaget casam-se perfeitamente com as de Lúcia Castello Branco, quando ela afirma que, para vermos as coisas por baixo, ou nos transformamos nelas, ou nos tornamos meninos.

Assim, temos claramente uma estreita relação entre a infância e a “Ordinariedade”, uma vez que aquela se aproxima das coisas, irmana-se com elas. Não só isso, mas também ajuda a estabelecer o processo de construção dessa poética repetitiva.

Além disso, ainda podemos ressaltar o apego que as crianças possuem pelas coisas inúteis, jogadas fora. A construção de suas brincadeiras e brinquedos, muitas vezes, é feita através da recuperação do lixo, como nos mostra Walter Benjamin (2002):

nada é mais adequado à criança do que irmanar em suas construções os materiais mais heterogêneos – pedras, plastilina, madeira, papel. Por outro lado, ninguém é mais casto em relação aos materiais do que crianças: um simples pedacinho de madeira, uma pinha ou uma pedrinha reúnem na solidez, no monolitismo de sua matéria, uma exuberância das mais diferentes figuras.(BENJAMIN, 2002, p. 92)

O que o adulto provavelmente desprezaria é o que os meninos peraltas exaltam, tornam sublime e constroem um mundo onde qualquer objeto pode ser algo

valioso. Em Retrato do artista quando coisa, temos contato com esse universo fantástico:

Remexo com um pedacinho de arame nas minhas memórias fósseis.

Tem por lá um menino a brincar no terreiro: entre conchas, osso de arara, pedaços de pote, sabugos, asas de caçarolas etc.

E tem um carrinho de bruços no meio do terreiro. (...)

O menino também puxava, nos becos de sua aldeia, por um barbante sujo umas latas tristes. Era sempre um barbante sujo.

Eram sempre umas latas tristes.

O menino é hoje um homem douto que trata com física quântica.

Mas tem nostalgia das latas.

Tem saudades de puxar por um barbante sujo umas latas tristes.(BARROS, 2010, p. 367)

E é assim, juntando cacos, construindo relações entre coisinhas que os pequenos se igualam às pequenas coisas. O carrinho que foi, sem dúvida, fabricado pelo adulto, parece não oferecer fascínio ao menino das “latas tristes”. Observando com cuidado esse carrinho que ficou esquecido, “de bruços”, podemos anotar a visão de Walter Benjamin (2002) em relação ao brinquedo e o brincar. Nos escritos do filósofo alemão, vemos que isso é um par dialético.

O brinquedo, ao longo da história, representa a tentativa de sociabilizar a criança; ele é a proposta pedagógica. O carrinho é a miniatura do carro do adulto, o que nos remete à constatação de que a criança brinca de ser adulto. Em outra perspectiva, existe o brincar que é uma resposta da criança. O brincar conserva a autonomia das crianças que podem construir seus próprios brinquedos com objetos que os adultos jogam fora. Assim, elas se aproximam das coisas inúteis, fazendo lembrar tudo o que está à margem da sociedade.

Falar da criança sem tratar de seus jogos, brincadeiras e distrações é inconcebível. Sabendo disso, Ariès dedica um capítulo extenso de sua História

social da criança e da família a esse assunto. Em “Pequena contribuição à História dos jogos e das brincadeiras”, o autor revela como são as relações entre o brinquedo e o brincar, fazendo uma pequena viagem ao século XVIII. Mais

especificamente, ele se pauta nas anotações de Héroard, médico de Luis XIII, que nos deixou um diário com registros históricos importantes. É graças, principalmente aos seus escritos, que podemos imaginar como era a vida de uma criança do século XVIII.

Nos século XXI, não conseguimos conceber como era a educação do Delfim. Muito cedo ele tem contato com música e dança: “Com um ano e cinco meses (...) toca violino e canta ao mesmo tempo.” (ARIÈS, 1981, p. 42). Sinceramente, não dá para imaginar uma criança do século XXI fazendo isso, mesmo as crianças da realeza.

As diferenças entre a infância de há três séculos e as da contemporaneidade são gritantes. Os meninos e meninas de outrora usavam vestido e brincavam de bonecas. É como se não houvesse uma distinção entre os sexos. O mundo atual e capitalista faz, pois, questão de separá-los e de mostrá-los com suas especificidades; ao ponto de fazerem mercados exclusivos, tanto de vestuário, como de brinquedos.

Atualmente, além de haver a separação sexual, há também a distinção etária. Antes, porém, adultos e crianças misturavam-se em brincadeiras, em festas populares, em teatros, em apostas, entre outras coisas. Referente a isso, Ariès até levanta uma questão intrigante no que diz respeito a certos objetos – os quais para nossa compreensão atual, seriam ligados apenas à infância – terem uma origem ambígua. Ele se pergunta se fantoches, bibelôs e bonecas foram criados originalmente para os pequenos ou para os adultos. “Quanto aos divertimentos dos adultos, não se pode dizer realmente que fossem menos infantis do que as diversões das crianças” (ARIÈS, 1981, p. 50).

Consoante Ariès (1981), moralistas começaram a questionar se todos os divertimentos eram lícitos para o universo infantil. No decorrer dos séculos XVII e XVIII, essa preocupação faz emergir um novo “sentimento de infância”, que pregava que as crianças só participassem de jogos que lhes fossem adequados.

Reconhecer as particularidades e necessidades infantis, certamente, é um passo importante no que concerne ao tratamento próprio que devemos dar aos pequenos. Em contrapartida, essa gama de preocupações revela que tipo de adulto

queremos construir e, assim sendo, há uma visão, um devir: a criança em potencial e não a criança presente. Os brinquedos, muitas vezes, são elementos que ajudam a consolidar isso. Mas, como dissemos, a brincadeira pode conservar a autonomia, a fantasia da criança e seu universo mágico pode se fazer presente a partir de qualquer “lata triste”.

E se a criança procura as inutilidades, o que dizer de Manoel de Barros (2010, p. 174) que afirma no livro Arranjos para assobio que “O poema é antes de tudo um inutensílio.”? Ora, sua obra, então, é uma construção de inutilidades, ou melhor, uma grande brincadeira. Vejamos, então, agora, os pedaços, os fragmentos que constroem essa brincadeira, essa “Ordinariedade”, sabendo que a infância é um elemento que se liga tanto à repetição como às coisas inúteis.

3.2 – INCURSÕES NA LINGUAGEM INFANTIL

Nesta seção, com base no “fragmento de si mesmo” do poeta, vamos dialogar com falas de criança, recuperadas pelo poeta. A obra em que mais podemos perceber traços de linguagem infantil é Compêndio para uso dos pássaros. Sobre a obra e a incursão nessa linguagem, Berta Waldman (1991, p. 20) nos traz uma afirmação relevante: “Para melhor ‘errar’ a língua – da mesma forma que Miró para desautomatizar sua pintura aprendeu a desenhar com a mão esquerda – Manoel de Barros fará incursões na linguagem infantil”.

Não se trata, pois, apenas de ter a infância como temática, mas também a utilizar como processo de criação (aspecto assinalado ao tratarmos da repetição também como escolha estilística). Desautomatizar o conhecimento para entender, para ser as coisas é um propósito forte do poeta. Em muitos momentos, em diferentes livros, ele repete exaustivamente essa vontade. Então, podemos dizer que o interesse é o de esquecer o seu próprio conhecimento linguístico e, consequentemente, poder trazer a total liberdade à sua expressão, ou seja, proporcionar uma dicção nova, particular, tão buscada por Manoel. Dicção diferente que foi chamada de linguagem adâmica (BARBOSA, 2003). Dela, trataremos numa seção adiante.

“Miró”, constante dos Ensaios fotográficos, é sugestivo para flagrar essa vontade de desautomatização do saber:

Para atingir sua expressão fontana

Miró precisava de esquecer os traços e as doutrinas que aprendera nos livros.

Desejava atingir a pureza de não saber mais nada. Fazia um ritual para atingir essa pureza: ia ao fundo do quintal à busca de uma árvore.

E, ali, ao pé da árvore, enterrava de vez tudo aquilo que havia aprendido nos livros.

Sobre o enterro nasciam borboletas, restos de insetos, cascas de cigarras etc.

A partir dos restos Miró iniciava a sua engenharia de cores.

Muitas vezes chegava a iluminuras a partir de um dejeto de mosca deixado na tela.

Sua expressão fontana se iniciava naquela mancha escura. O escuro o iluminava. (BARROS, 2010, p. 385)

Como num passe de mágica, o escuro ilumina o artista, o qual esqueceu o que sabia. Uma nova arte nasce após o enterro dos livros. O interessante é perceber que essa arte, coincidentemente ou não, surge de restos, cacos, dejetos – tudo aquilo que a “Estética da Ordinariedade” precisa para se firmar.

A criança, enquanto sujeito em formação, ainda não automatizou por completo suas atividades. Além disso, como podemos ver no poema supracitado, ela prefere misturar cacos para construir seus brinquedos a ter que simplesmente aceitar o brinquedo pronto, fabricado pelo adulto.

Partindo do princípio de que a criança é desautomatizada, que não possui ainda o saber que impede que as coisas sejam sentidas como elas realmente são, Manoel de Barros recupera falas infantis que brincam com a gramática, desregulam o conhecimento. E essa linguagem faz parte da “Estética da Ordinariedade”? Ela

No documento Manoel de Barros e os Espaços da Infância (páginas 85-124)

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