• Nenhum resultado encontrado

3 A PARRESÍA EM SUA DIMENSÃO POLÍTICA E A ONTOLOGIA DE NOSSO PRESENTE

4. A PARRESÍA CÍNICA COMO MODO DE VIDA: UMA VIRTUDE ÉTICO-POLÍTICA:

4.1 ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA: VERDADE COMO ESCÂNDALO E MODO DE VIDA CÍNICA.

Pelo exposto em tópicos anteriores, ficou estabelecido que a parresía é um tipo de enunciação da verdade que se caracteriza por uma potente imbricação entre sujeito e verdade. Não é uma noção que se refere à técnica de oratória, não se restringe a um direito estabelecido em uma lei escrita ou em um conjunto de normas, não se trata pura e simplesmente uma técnica útil para a conduzir a formação de discípulos. Por isso mesmo o parresiasta é um sujeito que se responsabiliza pelo que diz e se vincula ao enunciado e à enunciação da verdade. Para além das reflexões anteriores, é possível defender que na atitude parresiasta não há a separação clássica entre valor e verdade. Para tanto não há como deixar de lado a noção do cultivo de virtudes, da aquisição de qualidades epistêmicos-morais e da noção de uma

responsabilidade política da filosofia. Todas estas qualidades precisam ser encontradas no sujeito desta parresía.

Pela arque-genealogia é possível construir uma abordagem histórica, com suas descontinuidades, da noção de parresía. Por exemplo, a responsabilidade do parresiasta pode ser analisada como um cultivo de uma alma boa e com todas estas qualidades. A argumentação em torno da ética do cuidado de si e a parresía no curso

L'Herméneutique du sujet (1981-1982) se constrói a partir de Sócrates e seu discípulo

Alcebíades e a necessidade da formação de uma alma boa que seja capaz de atuar na política. A ideia de uma natureza como princípio fundador do direito à parresía na política é um tema fundamental ao curso Le Gouvernement de soi et des autres (1982- 1983). Íon conquista o direito a parresía na política somente quando arranca uma confissão de sua mãe Creusa, mulher nascida em solo ateniense, de quem ele é filho. E ainda mais, supera-se, nesta cena trágica, a dependência da humanidade em relação aos deuses na condução do próprio destino no âmbito das instituições políticas. Péricles é outro exemplo de cidadão que exerce o direito natural à parresía com o acréscimo da noção de uma diferenciação ética que para além de uma legalidade conferida pela constituição lhe confere uma legitimidade para praticar a

parresía no campo das instituições democráticas do seu tempo.

Contudo, para analisar a vinculação entre a parresía e estética da existência não é possível fazê-lo por meio de princípios ontológicos que considerem a alma, os deuses e a natureza como fundamentos das virtudes políticas e das qualidades epistêmicos-morais necessárias ao sujeito parresiasta180. Trata-se de eleger um modo de viver e uma maneira de cultivar a si mesmo de modo que diz Foucault: “Ela, nos conduz ao bíos, à existência e à maneira como se leva essa existência” (CV, 2011a, p. 139)181. É neste ponto que está posta a singularidade do curso Le Courage de la

Vérité (1983-1984) que coloca a parresía como uma “arte de viver” cuja verdade se

180 Comte-Sponville, no seu livro Valor e Verdade: estudos cínicos (2008) no qual procura trazer para

o debate a clássica discussão das relações entre valor e verdade defende que o cinismo antigo foi um tipo de filosofia prática na qual é impossível distinguir entre valor (o que se pratica em moral e política) e verdade (o que se conhece e deve ser conhecido). Por não haver essa distinção clássica, afirma o autor: “Deste dois pontos de vista o cinismo antigo é um antiplatonismo radical – e talvez seja isso que melhor o caracteriza” (COMTE-SPONVILLE, 2008, p. 48). Esta proposição, reafirma o que vamos defender daqui em diante – a vida e o modo de vida como expressão dos verdadeiros valores que o indivíduo cultiva como a forma de existir mais bela possível.

181 « Elle nous conduit au bios, à la vie, à l’existence et à la manière dont on mène cette existence » (

manifesta na materialidade da vida182. Não mais o problema metafísico do epimeleia

heautou direcionado à pyskhé que exige do sujeito a capacidade de cuidar e dizer a

verdade de si como discurso metafísico do seu ser, mas como vida e modo de vida: “um modo de dizer-a-verdade que tem como papel e fim dar a esse bíos (essa vida, essa existência) uma forma” (CV, 2011a, p. 140)183.

A noção de bíos, do si mesmo (Selbst) como vida, como corporeidade pode e deve ser remetida à Nietzsche como uma proposta ético-política voltada à fisiologia e à corporeidade, como um modo de filosofia prática voltada à arte de cuidar de si presente nos Cínicos e recuperada por Foucault, como uma autêntica herança nietzschiana184. Na aula de 23 de fevereiro de 1983 do curso Le Gouvernement de soi

et des autres :

A parresía filosófica de Diógenes consiste essencialmente em se mostrar em sua nudez natural, fora de todas as convenções e fora de todas as leis artificialmente impostas pela cidade. A parresía de Diógenes está, portanto, em seu próprio modo de vida, ela se manifesta também nesse discurso de insulto, de denúncia em relação ao poder (GSO, 2010c, p. 261)185.

O Zaratustra de Nietzsche fornece pistas sobre o estatuto do “si mesmo” ao qual se deve dar uma forma e um sentido estético-político. Trata-se do aforismo que está em Zaratustra, livro I cujo título é Dos Desprezadores do Corpo. A primeira proposição do personagem Zaratustra é de que o “si mesmo” assume um caráter fisiológico compreendido como corpo, inclusive afirmando que a “alma” é apenas uma

182 Vanessa Lemm no artigo A encarnação da Verdade e a política da comunidade: Foucault e os

Cínicos em que se propõe a analisar a apropriação feita por Foucault da vida filosófica dos cínicos em A Coragem da Verdade a partir de uma questão nietzschiana: ‘como pode a verdade ser incorporada

ou encarnada?’, dirá o seguinte: “Se enquanto a vida filosófica socrático-platônica exemplifica um ideal ascético que em si mesmo reflete uma noção imunitária de política, a vida filosófica dos cínicos se utiliza dos recursos comunitários da encarnação da verdade para unir filosofia e vida (zoé) numa única forma cosmopolita de vida (bíos)” (LEMM, 2016, p. 42). Estes apontamentos de Lemm são importantes porque trazem elementos de uma política da comunidade universal que pode oferecer um conteúdo de referência para a ação política que procura resistir às formas de governamentalidade neoliberal.

183 « À un mode de dire-vrai qui a pour rôle et fin de donner à ce bios (cette vie, cette existence) une

certaine forme » (CV, 2009c, p. 148).

184 Ernani Chaves registra: “Mesmo que as referências a Nietzsche em A coragem da verdade sejam,

em geral, críticas, gostaria de assinalar que há também uma presença inspiradora de Nietzsche na releitura que Foucault faz da História da Filosofia e que a ele certamente não escaparam nem referências de Nietzsche aos cínicos, como também os elementos advindos do cinismo no interior do projeto de transvaloração” (CHAVES, 2013, p. 44). O projeto de transvaloração de todos os valores de Nietzsche seria a continuação da tarefa de Diógenes de Sinope? Responder a essa pergunta dá uma boa perspectiva de pesquisa.

185 « La parrêsia philosophique de Diogène consiste essentiellement à se montrer dans sa nitré

naturelle, hors de toutes les conventions et hors de toutes les lois artificiellement imposées par la cité. La parrêsia de Diogène est donc dans son mode même de vie, elle se manifeste aussi dans ce discours d’insulte, de dénonciation à l’égard du pouvoir » (GSO, 2008b, p. 265).

palavra para um algo no corpo e então afirma: “O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor” (NIETZSCHE, 2011, p. 35). Em seguida Zaratustra se dirige mais uma vez aos desprezadores do corpo e faz o mesmo com a palavra “eu”: “Eu”, dizes tu, e tens orgulho dessa palavra. A coisa maior, porém, em que não queres crer – é o teu corpo e sua grande razão: essa não diz Eu, mas faz Eu” (Iden, p. 35). Zaratustra ainda traça observações semelhantes às que estabeleceu acima sobre um brinquedo desta grande razão que é o “espírito” [Geist] – uma espécie de aparelho cognitivo – e o sentido [Sinn], uma pequena capacidade de sentir. Em seguida o profeta do Além-do- homem, proclama aos desprezadores do corpo que por traz do “eu”, da “alma”, do “espírito” e do “sentido” está o [Selbst] “si mesmo” e que este é o corpo:

Por trás dos teus pensamentos e sentimentos, irmão, há um poderoso soberano, um sábio desconhecido – ele se chama Si-mesmo. Em teu corpo habita ele, teu corpo é ele. Há mais razão em teu corpo do que em tua melhor sabedoria. E quem sabe por que teu corpo necessita justamente de tua melhor sabedoria? (NIETZSCHE, 2011, p. 35)

Tanto no caso de Nietzsche, quanto no caso da leitura de Foucault acerca do cinismo se trata de um si mesmo como bíos, cuja tarefa existencial é dar uma forma que precisa ser posta à prova ao longo da vida186. A tarefa de dar um estilo à vida precisa rever todos os valores e transfigurá-los ao modo de Diógenes, que desfigurou o valor da moeda187. A proposição de uma estética da existência que emana de um estilo de vida é parresiasta por excelência por necessitar de coragem para mudar o próprio modo de viver: “Coragem do dizer-a-verdade também quando se trata de dar à vida forma e estilo”. (CV, 2011a, p. 140). Nietzscheanamente, somente quando a verdade puder ser vivenciada e exteriorizada como bíos da zoé e não separa dentro

186 Roberto Esposito sustenta que Nietzsche é um pensador Biopolítico exatamente por atribuir ao bíos

uma dimensão política, como está escrito: “Hacer de la voluntad de poder el impulso vital fundamental implica afirmar, a un tiempo, que la vida tiene una dimensión constitutivamente política y que la política tiene como único fin conservar y expandir la vida” (ESPOSITO, 2006, p. 18).

187 “Segundo Foucault, a tarefa do filósofo de reverter todos os valores é uma tarefa política. Foucault

ressalta que é preciso entender os cínicos a partir de um contexto mais geral de uma crítica da parrhesía política que se encontra não apenas nos cínicos, mas também em Platão” (LEMM, 2016, p. 44).

e através de um corpo haverá verdadeira sabedoria e vez de ilusão 188.

A descrição do que era virtude (areté) para o cínico Antistenes em a Vidas e

Doutrinas dos Filósofos Ilustres indica que ela pode ser ensinada, mas não através do

discurso, mas com atos da vida: “A excelência está nas ações, e não necessita de muitas palavras e nem de muitos conhecimentos” (DIOGENES LAÊRTIOS, 2008, p. 155). Michel Foucault entende que o estilo de vida cínico é uma forma de ação política que não separa vida pública e privada, pois vai à frente da humanidade admoestando a partir do que afirma com a própria existência corpórea189 em atos que são verdadeiramente excelentes:

Testemunho que é dado, manifestado, autenticado, por uma existência, uma forma de vida no sentido mais concreto e mais material do termo; testemunho da verdade dado por e no corpo, na roupa, no modo de comportamento, na maneira de agir, de reagir, de se portar. O próprio corpo da verdade é tornado visível e risível em certo estilo de vida. A vida como presença imediata, brilhante e selvagem da verdade é isso que é manifestado no cinismo (CV, 2011a, p. 152)190

Ora, se o cínico tem a árdua tarefa de prestar testemunho da verdade com o corpo e a vida é porque a vida, lembra Nietzsche, também se acostuma com o erro e a ilusão e os quer como um ato de vontade. Por isso a presença de uma noção

188 A distinção e as relações entre bíos e zoé não são explicitadas didaticamente por Michel Foucault

como faz, por exemplo, Hannah Harendt. Mas mesmo assim há uma importante distinção na aula de 14 de janeiro de 1881 do curso Subjetividade e Verdade (Cf. FOUCAULT, 2016, pp.33-34) a partir da qual a vida como si mesmo é uma das singularidades que cínicas por excelência. Para a compreensão do que está em debate, quando está em questão bíos e zoé, trazemos a contribuição de Castor Ruiz, que comenta as relações e distinções dos dois conceitos: “Bios é a vida humana que se constrói além da mera zoe. A bios é uma vida que não se encontra de forma natural, senão que deve ser construída. A bios, para os clássicos, era a verdadeira vida humana. Era a vida que se constituía pelos valores e as práticas da ética e da política. A bios era o desafio que todo ser humano livre tinha que desenvolver em si mesmo. É uma criação, e não se herda ao nascer. Ela é a característica essencial das pessoas livres. A zoe era o espaço da determinação em que vida está obrigada a seguir as leis da sua natureza. Na zoe todos somos meros animais, não há liberdade. A bios é a vida que os seres humanos podem construir para além da mera zoe e para conseguir ser livres. A bios é a vida verdadeiramente humana” (RUIZ, 2012, p. 36).

189 Navia, na sua abordagem da retórica cínica defende que a sustentação dos argumentos aconteceria

por meio do estilo de vida. A referência é o si mesmo e sua fisiologia com gestos e ações públicas se tornam, a partir da leitura desse comentador, uma autêntica parresía física, cuja corporeidade é seu maior signo numa junção entre signo, significa e significante, como depreende-se do texto: “Por isso Diógenes escolheu dirigir-se-lhes em sua própria linguagem, a do corpo, com toda a sua rusticidade e vulgaridade que lhe assegurassem que as pessoas lhe prestariam atenção. Eis aí, então, a raiz das manifestações exteriores do cinismo de Diógenes e a fonte do que pode ser apropriadamente chamado de retórica cínica” (NAVIA, 2009, p. 96).

190 « Témoignage qui est donné, manifeste, authentifié par une existence, une forme de vie au sens le

plus concret er le plus matériel du turme, témoignage de vérité donné par et dans le corps, l’habillement, le mode de comportement, la manière d’agir, de réagir, de se conduire. Le corps même de la vérité est rendu visible, et risible, dans un certain style de vie. La vie come présence immédiate, éclatante et sauvage de la vérité, c’est cela qui est manifesté dans le cynisme » (CV, 2009c, p. 160)

fundamental e indispensável às atitudes ascéticas dos exercícios espirituais: a askésis e que se refere, como descrito no primeiro capítulo, à uma estética da existência (forma mais bela de um modo de viver possível), que é atitude ética, mas também ação política, entendendo que a prática da parresía neste âmbito é expressão maior de um éthos. Daí a constituição de uma virtude ético-política que não é mero objeto de conhecimento a ser transmitido pelo discurso pedagógico, mas como valor encarnado no modo de viver191. O cínico assume como um labor ético-político a constante provocação para que a humanidade altere seus valores, vive uma vida radicalmente outra para além do espaço restrito e eletivo da pólis com sua política eivada de erros e ilusões. Depreende-se a necessidade constante de avaliar e transvalorar o valor dos valores com coragem, desapego e destemor cínico192, pois afirma Foucault: “O cinismo me parece portanto uma forma de filosofia na qual modo de vida e dizer-a-verdade estão direta, imediatamente ligados um ao outro” (CV, 2011a, p. 144)193.

Acrescente-se que as fontes mais próximas do cinismo também relacionavam o tema da existência mais bela com a parresía, como é o caso de Diógenes Laércio, quando faz memória de uma passagem da vida de Diógenes, o cínico: “A alguém que lhe perguntou qual era a coisa mais bela entres os homens esse filósofo respondeu: ‘A liberdade de palavra’” (DIOGENES LAÊRTIOS, 2008, p. 169). A noção de belo, para o cínico, não é um artefato da natureza que contém a beleza em si e nem uma ideia pura a ser contemplada. Trata-se de uma tarefa criadora, um torna-se o que se

é, um ato de criação despido de seu significado mítico-teológico que pertence à

atividade humana. Decorre daí uma observação sobre a importância dos exercícios físicos e espirituais para Diógenes, o cínico como condição pela qual se produz

191 “Daí o conhecido voluntarismo do cinismo antigo: a virtude não é ciência, mas ato, e se ela pode ser

ensinada não é como saber mas como vontade, não pelo estudo, mas pelo exercício (áskesis), não pelo discurso, mas pelo exemplo” (COMTE-SPONVILLE, 2008, p. 49). A passagem traz um elemento importante para a condução desta tese: a noção de virtude como exercício espiritual experimentado no corpo como um potente valor da ação e que precisa ser afirmado como um dispositivo político. Por isso a impostura cínica escandalizava e impressionava os cidadãos comuns.

192 “A coragem de expor a própria vida ao perigo da verdade, mesmo que isso signifique arriscar a

própria vida, arriscar a morte da vida. Este desafio, sem dúvidas nos lembra do heroísmo filosófico ressaltado por Foucault em sua caracterização geral dos cínicos” (LEMM, 2016, p. 46). Esta passagem nos lembra aquela indicação de Foucault que o filósofo é um antidéspota cuja função é a de por limites ao poder. Por isso seu heroísmo político só obterá sucesso se puder deixar demonstrado que a necessidade de erro e ilusão pode ser superada a partir de uma vida autêntica e corajosamente verdadeira.

193 « Le cynisme me paraît donc être une forme de philosophie dans laquelle mode de vie et dire-vrai

constantemente a vida que nunca se esgota em um único ato de vontade e nem em inúmeros atos: “Com efeito, nada na vida se pode obter sem exercício, e este é capaz de sobrepor-se a tudo. Eliminados então os esforços inúteis, o homem que escolhe os esforços requeridos pela natureza vive feliz” (DIOGENES LAÊRTIOS, 2008, p. 170). Foucault atento à esta preparação, ao exercício espiritual de si sobre si mesmo, ao treino que condiciona194 o corpo e a vontade para reduzir ao máximo as relações de dependência que um indivíduo cultiva ou é conduzido a cultivar descreve:

o cínico não poderá ter nem abrigo, nem lar, nem mesmo pátria. Ele é o homem da errância, é o galope à frente da humanidade. [...] depois dessa errância, depois desse galope à frente da humanidade, o cínico deve voltar. Ele anunciará as coisas verdadeiras sem se deixar paralisar pelo medo. Temos aqui a própria definição de parresía como exercício do dizer a verdade e que é anunciado aos homens sem nunca deixar impressionar pelo medo. (CV, 2011a, p. 146)195.

Sem se limitar aos costumes da vida doméstica (Oikos) com suas necessidades de convivência, de manutenção da propriedade privada e da própria divisão das responsabilidades familiares, o cínico ao estilo de Diógenes pratica uma parresía que consiste em mostrar no próprio corpo a nudez e a artificialidade de todas as leis (nomos) criadas e imposta pela cidade. Contra a retórica dos filósofos acadêmicos do seu tempo, o cinismo antigo descobre e apresenta o corpo como um argumento consistente. O anúncio cínico da verdade, é um imperativo ético-político experimentado na própria pele, pois sua tarefa é dizer o que ele vive. Sem medo, sem nada de próprio, sem a posse do poder, sem direitos civis a resistência parresiasta do cínico contesta e refuta os abusos do poder com o seu modo de viver e como tal,

O kynismos antigo inicia o processo dos “argumentos nus” a partir da oposição, sustentado pelo poder que vem de baixo. O kynismos peida, defeca, urina, se masturba em praça pública, diante do mercado ateniense; ele despreza a glória, menospreza a arquitetura, não respeita nada, parodia

194 O texto Da revolta filosófica: notas sobre o modo de vida cínica define o tipo de filosofia praticado

pelos cínicos nos mesmos termos: “A filosofia cínica é esse caminho que busca a constituição, a preparação, o treino de um indivíduo independente e soberano, capaz de suportar as mais duras provações para perseverar no caminho da vida verdadeira” (HARA, 2017, p. 193). O autor também sugere que seria profícuo fazer uma aproximação entre o modo de vida cínico e à crítica nietzschiana ao idealismo geral e platônico. De certa forma este tópico vem fazendo esta aproximação entre extemporânea entre os cínicos e a filosofia de Nietzsche por meio de Foucault, um usuário da genealogia de Nietzsche.

195 « C’est pour cela que le cynique, envoyé en éclaireur, ne pourra avoir ni abri ni foyer, ni même patrie.

Il est l’homme de l’errance, il est l’homme de la galope en avant de l’humanité, après avoir bien observé et accompli sa tâche de kataskopos, le cynique doit revenir. Il reviendra pour annoncer la vérité, annoncer les choses vraies sans ajoute Épictète, se laisser paralyser par la crainte » (CV, 2009c, p.