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No seu texto “In Defense of the Poor Image” (2009), a realizadora, artista e teórica alemã Hito Steyerl analisa o regime de circulação das imagens nas redes globais de informação e do capitalismo considerando que a estética da “imagem pobre” resulta da tecnologia digital. Citando a autora:

“A imagem pobre é uma cópia em movimento. A sua qualidade é má, a sua resolução desclassificada. À medida que acelera, deteriora-se. É um fantasma de uma imagem, uma pré-visualização, uma miniatura, uma ideia errática, uma imagem itinerante distribuída de graça, espremida através de conexões digitais lentas, comprimida, reproduzida, ripada, remisturada, assim como copiada e divulgada em outros canais de distribuição.” (Steyerl, 2009: texto em formato eletrónico, não paginado.)

104 A entrevista, realizada em 2012, está disponível online:

http://www.dailymotion.com/video/xshfl0_thomas-hirschhorn-insoutenables-destructions-du- corps_creation (acedido a 3 de abril de 2014).

Identificando a imagem pobre como não tendo nenhum valor dentro da “sociedade de classes das imagens”, Steyerl classifica-a como uma imagem ilegítima e proletária que destabiliza o regime de alta definição das imagens e abre linhas de fuga nos ciclos comerciais do capitalismo audiovisual. Tal como é descrita pela autora, a imagem pobre é essencialmente definida pelo seu ímpeto, impulso ou quantidade e não pelos seus conteúdos, escassez ou singularidade, transformando qualidade em acessibilidade e contemplação em distração, ganhando valor acima de tudo pela partilha e pela participação que gera. É uma imagem eminentemente háptica, perde substância visual em favor da sua abertura à manipulação, apropriação, comentário e partilha nas redes. “Os utilizadores tornam-se editores, críticos, tradutores e coautores das imagens pobres. As imagens pobres são assim imagens populares – imagens que podem ser feitas e vistas por muitos” (Steyerl, 2009: texto em formato eletrónico, não paginado).

Segundo Steyerl, o regime das imagens pobres assenta na complementaridade atual entre privatização e pirataria. Assim, a autora assinala como a reestruturação neoliberal da produção dos media nas últimas décadas bem como a crescente identificação do conceito de cultura com a mercadoria levaram à obscuridade crescente das imagens não-comerciais (nomeadamente do cinema experimental e ensaístico) que foram desaparecendo não só dos cinemas mas também da esfera pública. Deste modo, estes materiais raros e não-comerciais foram saindo de circulação mantendo-se apenas num circuito alternativo de arquivos e coleções alimentado por uma rede de organizações e indivíduos empenhados na sua preservação. Estes filmes eram partilhados por grupos muito restritos, através de cópias piratas VHS, gerando efeitos de culto em nichos de fãs.

Paralelamente, com a queda do muro de Berlim e a subsequente reestruturação pós-socialista e pós-colonialista dos Estados-nações intensificou-se a privatização dos arquivos nacionais de imagens e da produção dos media, tendo entrado em declínio o financiamento da cultura, da arte e das infraestruturas de distribuição por parte do Estado. Simultaneamente, com a expansão generalizada da Internet e o aumento da largura de banda, que se intensificam a partir do início do século XXI, a possibilidade de fazer stream de vídeo online permitiu o ressurgimento de um número crescente de materiais visuais em plataformas publicamente acessíveis, algumas cuidadosamente selecionadas como a Ubuweb, outras totalmente abertas e inclusivas, como a YouTube. É assim que a privatização dos conteúdos intelectuais e da produção dos media, aliada

ao desenvolvimento da WWW e à sua mercantilização, acabam por acarretar igualmente uma expansão da cultura da partilha e a eclosão das imagens pobres definidas pela velocidade, intensidade e propagação nas redes digitais.

Deste modo, para Steyerl, as imagens pobres encarnam plenamente os paradoxos das redes: elas são, por um lado, uma plataforma para um bem comum emergente assim como, por outro lado, um campo de batalha de ferozes interesses nacionais e comerciais; elas vêm envoltas de novos afetos e saberes, traduzidos por apropriações, manipulações, traduções, comentários e partilhas, mas são também um chamariz de discursos de ódio e exploração. A sua baixa definição, a cintilação dos seus pixéis, confere-lhes uma condição de desmaterialização, partilhada com o legado da arte conceptual105 mas também com a produção sígnica do capitalismo contemporâneo exemplarmente descrita por Jean Baudrillard no seu livro Para uma Crítica da Economia Política do Signo (1995), originalmente publicado em 1972. Nas palavras de Steyerl:

“Por um lado, [a imagem pobre] opera contra o valor fetichista da alta resolução. Por outro lado, é precisamente por isto que acaba por ser perfeitamente integrada num capitalismo de informação que prospera a partir de períodos de atenção comprimidos, da impressão ao invés da imersão, da intensidade ao invés da contemplação, de pré-visualizações em vez de visionamentos.” (Steyerl, 2009: texto em formato eletrónico, não paginado.)

As imagens pobres que circulam na Internet na era da partilha de ficheiros e das redes peer-to-peer ligam audiências globais dispersas e criam novos públicos e debates. A sua estética, sendo mais rarefeita visualmente e apelando à partilha e à participação, exige novas capacidades do público. Assim, estas imagens recuperam algum ímpeto político e inscrevem-se num regime paradoxal de liberdade e controlo, de nomadismo e captura, de disrupção e integração que, como temos vindo a defender, é próprio da experiência nas redes digitais.

Para concluir este capítulo dedicado à caraterização de uma estética da participação nas artes digitais consideramos pertinente invocar a obra do artista

105Tal como Hito Steyerl faz notar: “A história da arte conceptual descreve esta desmaterialização do

objeto artístico primeiro como um movimento de resistência contra o valor fetichista da visualidade. Seguidamente, no entanto, o objeto artístico desmaterializado revela ser perfeitamente adaptado ao [caráter] semiótico do capital, e portanto, à viragem conceptual do capitalismo.” (Steyerl, 2009: 7)

austríaco Oliver Laric que tem vindo a dirigir-se de forma consistente aos novos regimes de produção e distribuição de imagens bem como à sua extraordinária plasticidade na era digital da remistura. Laric trabalha, na sua obra, os media digitais em diálogo profundo com a história da arte e a economia da imagem contemporânea, operando uma radical instabilização entre as categorias do original e da cópia, do autêntico e da réplica.

Neste contexto, é importante relembrar as noções platónicas de original, cópia e simulacro. Com efeito, em Fedro (1994), Platão, filósofo e matemático do período clássico da Grécia Antiga, propõe-se distinguir o verdadeiro pretendente dos falsos (os simuladores, os aparentes). Esta seleção apoia-se no mito, como narrativa de fundação, que proporciona o critério seletivo, o qual está na base de uma participação eletiva. Desta forma, em Fedro, o mito da circulação permite distinguir o delírio bem fundado ou o amor verdadeiro das almas que têm muitas lembranças adormecidas, mas ressuscitáveis, dos falsos pretendentes, as almas sensuais, com pouca memória e fraca visão. Recorde-se a célebre tríade: o fundamento, o objeto da pretensão, o pretendente. O primeiro define-se como o que possui em primeiro lugar (o modelo, o Mesmo); o pretendente corresponde ao que recebe em segundo lugar − a cópia, o Semelhante; finalmente, o objeto da pretensão é aquilo que o fundamento possui em primeiro lugar. Desta forma, o platonismo funda o domínio da representação na filosofia, preenchido pelas cópias-ícones e definido por uma relação intrínseca ao modelo (fundamento).

Ora, a autenticação da Ideia e a seleção da linhagem através da divisão circunscrevem a má potência do falso pretendente, o insinuante ser do simulacro. Em Lógica do Sentido (2003a), Deleuze afirma que, na obra O Sofista, Platão apercebe-se de que o simulacro não é simplesmente uma cópia falsa, mas que torna problemáticas as próprias noções de cópia e de modelo. Com efeito, se considerarmos que o simulacro é uma cópia de cópia não estamos a relevar o essencial − a diferença de natureza entre simulacro e cópia, a razão pela qual formam as duas metades de uma divisão. Assim, a identidade superior da Ideia funda a boa pretensão das cópias sobre uma semelhança interna ou derivada; os simulacros, por seu lado, correspondem a imagens dissemelhantes, implicando uma perversão e um desvio essenciais. Desta forma, às cópias-ícones opõem-se os simulacros-fantasmas, e o conjunto da motivação platónica resplandece: “Trata-se de assegurar o triunfo das cópias sobre os simulacros, de recalcar os simulacros, de mantê-los encadeados no fundo, de impedi-los de subir à superfície

(…) ” (Deleuze, 2003a: 262). Porém, segundo Deleuze, é o próprio Platão que indica uma direção de inversão do platonismo, no final de O Sofista, quando já não é possível distinguir Sócrates do imitador: a da libertação dos simulacros, que afluem à superfície.

Ora, os temas do verdadeiro e do falso, do original e da réplica, da cópia e do simulacro, perpassam a obra de Oliver Laric, desconstruindo as ideias de autoria e de presença tão importantes para a arte ocidental. Assim, nomeadamente na peça Something Old, Something New (2013), vários objetos − uma escultura do general e filósofo Sun Tzu (um totem do Oriente antigo e do Ocidente moderno), latas de bebidas energéticas, um telemóvel falsificado e uma impressão ilícita de um livro disponível para print-on-demand – dispõem-se sobre uma mesa, cujo tampo é feito a partir de fragmentos de CD e DVD falsificados e confiscados pela polícia britânica, numa mordaz visão sobre as ideias de autenticidade e pirataria na sociedade contemporânea.

Figura 29 – Oliver Laric, Something Old, Something New, 2013.

Já no projeto Lincoln 3D Scans (2013) − que ganhou o prestigiado prémio anual da Sociedade de Arte Contemporânea em 2012 −, Laric colaborou com o museu The Collection e a galeria Usher em Lincoln, Inglaterra, a fim de disponibilizar uma parte das peças das suas coleções, fazendo scans e modelos 3D das mesmas e colocando-as online106. Cada uma das peças é apresentada como um GIF (Graphics Interchange Format), passível de ser visualizado a 360ᵒ, em tonalidade cinza, acompanhada de

alguma informação de identificação e junto de um botão que permite realizar o download do modelo. Usando esse ficheiro em formato STL (StereoLithography) pode- -se fazer uma impressão 3D do objeto.

Figura 30 – Oliver Laric, Lincoln 3D Scans, 2013.

Os primeiros scans, que incluem pedras tumulares romanas, o busto da figura mitológica grega Ariane, mosaicos antigos e fontes de batismo romanas, permitiram revelar marcas na pedra e decoração original que normalmente permaneceriam invisíveis. Todos os modelos, que ficam disponíveis online em open source, podem servir como ponto de partida para remisturas e o website apresenta uma galeria virtual na qual podem ser vistos os trabalhos de outros artistas, designers e amadores a partir dessas obras.

Assim, esta obra de Laric abre os limites da coleção não só de um ponto de vista geográfico mas também criativamente, permitindo ao público participar na recriação da coleção e literalmente dar corpo às suas obras e tocá-las através das impressões 3D. Os originais desdobram-se em cópias e simulacros numa proliferação guiada pelo talento, curiosidade e afeto do público que literalmente vai ao encontro das obras, alterando-as, reinventando-as a muitas mãos, através de uma relação participativa e criativa com a arte e as redes digitais. Em Lincoln 3D Scan de Oliver Laric encontramos os traços que ilustram exemplarmente o caráter distribuído, multissensorial, relacional e performativo que carateriza, como temos vindo a defender, a estética da participação nas artes digitais.

5.º Capítulo

Temas emergentes nas artes digitais participativas107

No quinto e último capítulo da presente dissertação iremos proceder a uma proposta crítica de três campos temáticos emergentes no âmbito das artes digitais participativas, a saber: a área da performance e dos jogos de identidade em rede, a das narrativas em ambientes transmediais e, finalmente, a do ativismo e da crítica da vigilância na era digital. Mantendo-nos fiéis à nossa abordagem metodológica de uma articulação sólida entre teoria crítica e exemplos de práticas artísticas concretas, este capítulo irá apresentar analiticamente um leque bastante detalhado de obras das artes digitais participativas procurando pensá-las em relação aos contextos sociais, culturais e políticos que lhes são subjacentes.

Os temas propostos e as obras analisadas mantêm relações de diálogo entre si e o conceito de estrutura inerente a este capítulo é o de criar uma rede conceptual em fluxo na qual, ao invés de procurarmos deter os objetos de estudo em áreas estanques, pretendemos, pelo contrário, mapeá-los criticamente de forma aberta e flexível. Este capítulo é norteado igualmente pelo objetivo de desafiar a clivagem habitual entre artes digitais e arte contemporânea sendo que iremos enfatizar a análise de obras das artes digitais e da arte socialmente comprometida.

Os traços distintivos da estética da participação nas artes digitais, que foram analisados no capítulo anterior, irão ressurgir no presente capítulo nomeadamente no que concerne à reflexão sobre o modo como as obras participativas constroem uma linguagem aberta aos gestos criativos do público.

107 A redação do presente capítulo baseou-se, em parte, na comunicação “Networked Proximities”

(Carvalho, 2011) apresentada em setembro de 2011, no 17th International Symposium on Electronic Art (ISEA), que decorreu em Istambul, na Turquia, e nos artigos “Mapas Imaginários (Carvalho, 2008) e “Affective Territories” (Carvalho, 2009a) escritos igualmente no âmbito da nossa investigação doutoral.

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