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Estabelecimentos clandestinos de venda de bebidas alcoólicas durante a vigência, nos Estados Unidos, do Ato de Proibição Nacional, a chamada Lei Seca, entre 1920 e 1933.

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35 Estabelecimentos clandestinos de venda de bebidas alcoólicas durante a vigência, nos Estados Unidos, do Ato de Proibição Nacional, a chamada Lei Seca, entre 1920 e 1933.

36 Árvores do Sul dão uma fruta estranha;

Folha ou raiz em sangue se banha; Corpo negro balançando, lento; Fruta pendendo de um galho ao vento. Cena pastoril do Sul celebrado; A boca torta e o olho inchado Cheiro de magnólia chega e passa De repente o odor de carne em brasa Eis uma fruta para que o vento sugue,

Pra que um corvo puxe, pra que a chuva enrugue, Pra que o sol resseque, pra que o chão degluta, Eis uma estranha e amarga fruta.

(Versão de Carlos Rennó publicada no livro Strange Fruit: Billie Holliday e a biografia de uma

em qualquer lugar, em quaisquer circunstâncias. Mas, segundo o jornalista e pesquisador David Margolick, autor do livro Strange Fruit: Billie Holiday e a biografia

de uma canção (2013), o Café Society não era um lugar qualquer. Única boate de

Nova York realmente integrada, nela amantes do jazz, negros e brancos, famosos ou não, conviviam com líderes trabalhistas, intelectuais, artistas e estudantes alinhados politicamente à esquerda. Esses foram os primeiros ouvintes da canção na voz de Billie Holiday, e a atmosfera da escuta é relatada em várias biografias da artista.

“Assistir à apresentação de ‘Strange fruit’ no Café Society era uma experiência visual tanto quanto auditiva”, diz Margolick (Ibid., p. 51), pois o proprietário, Barney Josephson, havia concebido um conjunto de “efeitos cênicos” para a performance:

“Holiday devia encerrar cada set com ela. Antes de começar, todo o atendimento às mesas parava. Garçons, caixas, ajudantes se imobilizavam. A sala ficava completamente escura, a não ser por um minúsculo foco de luz no rosto de Holiday. Quando ela terminava e a luz se apagava, Holiday devia deixar o palco e, por mais trovejante que fosse a ovação, não devia voltar para agradecer.” (MARGOLICK, 2013, p. 52).

No entanto, para além dos recursos idealizados por Josephson, é preciso considerar ainda as decisões da própria intérprete, decisões essas reconhecidas por muitos de seus companheiros de profissão – como o cantor de jazz norte-americano Joe Williams, testemunha próxima do trabalho de construção de cada canção:

Ela obviamente escolhia seu material de forma meticulosa. Ela escolhia o tipo de coisa que poderia interpretar, que sentia que tinha a ver com a ela – como uma atriz que, ao ler roteiros, seleciona os papéis que pode fazer melhor do que qualquer outra pessoa. (LIBRETO VERVE, 1992, p. 179).37

A sobriedade da atitude, a recusa de qualquer efeito supérfluo, a sustentação de uma cadência lenta e marcada, a ênfase precisa em uma ou outra palavra tornaram-se marcas estilísticas da cantora, como bem lembra o músico e parceiro de cena Artie Shaw (MARGOLICK, 2013, p. 64): “não creio que ela jamais tenha feito

37 No original: “She obviously chose her material meticulously. She chose the kind of thing that she

could interpret, that she felt suited her, like an actress reading scripts and getting the parts that she can do better than anybody else”. (Tradução minha).

aulas de elocução, mas quando dizia ‘bitter’, era de um jeito digno de qualquer grande dama do palco britânico”.

E é por tudo isso – canção, circunstância e intérprete singularmente amalgamados – que

a experiência de ouvir e ver Billie Holiday cantando “Strange fruit” – os olhos fechados, a gardênia de sempre atrás da orelha, batom rubi realçando a pele escura, os dedos estalando de leve, as mãos segurando o microfone como se fosse uma xícara de chá [figura 7] – permanece em muitas memórias décadas depois. (Ibid., p. 101).

Apesar das dificuldades (ou mesmo interdições) que cercavam a performance da canção, Billie Holiday a incorporou ao seu repertório, reinterpretando-a reiteradamente nos anos seguintes em teatros e casas de shows frequentados por negros e boates progressistas. Mais do que incorporá-la ao seu repertório, Holiday

corporificou a canção, transformando-se e transformando a audiência a cada vez

que a cantava. Um desses momentos de transfiguração da artista e dos espectadores que a assistiam é narrado pelo jornalista Harry Levin: Billie Holliday havia acabado de interpretar “God bless the child” – uma de suas composições mais conhecidas, escrita em parceria com Arthur Herzog – e, ao começar “Strange fruit”, lembra Levin:

[...] o rosto dela mudou completamente. Seu corpo pareceu saltar para longe do piano. Os olhos estavam bem apertados. Ficamos praticamente paralisados; ela nos empurrava para o contato físico com cada palavra e gesto de “Strange fruit”. Ficamos atônitos, quietos, sem ousar olhar uns para os outros. (Ibid., p. 79).

Quase dez anos depois, em 17 de março de 1948, Lady Day apresentaria, em um concerto absolutamente lotado no Carnegie Hall de Nova York, cerca de trinta canções – entre elas, “Strange fruit”.

Através das breves narrativas sobre performances dessas quatro artistas – Araci Cortes e Carmen Miranda, precursoras da extensa linhagem de profissionais da voz na tradição cancional brasileira na qual se inscreve Mônica Salmaso, e Bessie Smith e Billie Holiday, intérpretes fundamentais na história do jazz, gênero musical de eleição de Maria João –, é possível identificar diferentes modos performativos da

canção em cena. Próximas ou distantes, elas compartilham um outro dado comum: todas estiveram em atuação durante um período decisivo para a constituição do formato de um concerto popular tal como o conhecemos hoje.

Pois, como aponta o pesquisador Christian Marcadet (2007), a partir dos anos 1930, as canções dispersas – “salpicadas”, diz ele – do café-concerto, dos espetáculos de vaudeville e revista, apresentadas como partes de um programa de diversões heterogêneas, começam a se impor como elemento central do espetáculo até atingirem o predomínio atual do recital de uma cantora, de um cantor. Mas essa pequena linha do tempo faz surgir, por fim, uma outra perspectiva: a de que a progressiva constituição da ideia e da prática do concerto popular se entrelaça à construção da noção da cantora de música popular como figura pública amplamente reconhecida e valorizada.

Hoje, cantoras e compositoras exercem seus ofícios praticamente sem restrições explícitas (embora essas últimas permaneçam na luta por legitimidade e visibilidade, e arranjadores, instrumentistas, técnicos e críticos homens sejam ainda maioria); hoje, liras e fratels deram lugar a novos instrumentos acústicos, elétricos e eletrônicos; hoje, a voz viva se amplia no espaço de prestigiosos teatros e salas alternativas através de microfones e equipamentos a cada dia mais sofisticados; hoje, entendemos que, para além da alegria e da tristeza, há toda uma infinidade de estados, em imperceptíveis nuances, produzidos, acontecidos na complexa inter- relação que se estabelece, a cada encontro, entre uma intérprete e sua audiência – a cada vez que se afirma a presença de um corpo em cena, a cada vez que uma voz encontra um gesto.

Figura 1 | Araci Cortes

Figura 2 | Bessie Smith

Figura 3 | Carmen Miranda em turnê pela Bahia Figura 5 | A baiana de Araci Cortes

Figura 4 | A baiana de Carmen Miranda Figura 6 | A baiana de Elsie Houston

Fonte: The Pinsta (2018) Fonte: Péret (2003)

Figura 7 | Billie Holiday