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CAPÍTULO II A EVOLUÇÃO DO MOVIMENTO NACIONALISTA NA CATALUNHA

3.1. Estado Espanhol e o Estatuto das Autonomias

Como já foi mencionado, depois da morte de Franco em 1975, estabeleceu-se o processo de transição para a democracia. Este processo, que foi aberto por Juan Carlos de Borbón y Borbón, o sucessor designado por Franco através de nomeação em 1976, e por Adolfo Suárez, enquanto presidente do governo espanhol, foi um grande desafio. Como afirma Paul Heywood (1995:32) “The greatest challenge faced by the post-Franco architects of democracy was to construct a polity which reconciled the central state with regional demands”.

Com a crise da acomodação nacionalista catalã em Espanha, parece claro que a atual organização do estado espanhol não foi capaz de dar uma resposta cabal perante o pedido de maior autonomia às regiões. Sendo que nesta dissertação o objetivo é definir um modelo que vise atribuir mais autonomia política às regiões e não responder às reivindicações identitárias é, por essa razão, necessário perceber a estrutura do estado espanhol, caminhando para compreender como, em termos gerais, funciona o Estatuto das Autonomias, como está definido, quais as suas limitações e a razão pela qual este sistema não consegue garantir mais autonomia às regiões espanholas, para depois se tentar apresentar um modelo que vise a resolução dos potenciais problemas encontrados.

Como já foi apontado, após várias discussões, a constituição foi aprovada, esta que, segundo Paul Heywood (1985) e Luis Moreno (2001), é bastante ambígua, principalmente na questão da estrutura do estado. Saídos da ditadura de Franco, a constituição teve, notoriamente, um ponto positivo, pois representa o esforço de compromisso entre as várias partes (Heywood, 1995; Moreno, 2001; Romão, 2017). Como constata Paul Heywood (1995:37) “The Spanish Constitution of 1978 represents a triumph of political compromise”.

Posto que a época era conturbada, onde os nacionalismos regionais eram reprimidos pelo regime de Franco, quando esta terminou, estes nacionalismos tinham a expectativa de ver reconhecidas as respetivas identidades nacionais, o que aconteceu após alguma negociação (Romão, 2017) e a unidade de Espanha como país foi declarada inviolável como consta no artigo 2.º.

Ainda assim, a definição do tipo de organização política do Estado espanhol não é uniformemente aceite. Como refere Paul Heywood (1995:52) “(…) part of the problem resides in the fact that the

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definition of the state in the Spanish Constitution is unclear” e completa ainda dizendo que "(…) the imprecision over the use of the term 'state' extends to the issue of the form of state, and raises further confusion as to the precise position and role of the monarchy and where sovereignty lies” (Ibidem, p.52).

Neste cenário, considerando não ser um modelo federal (Heywood, 1995; Vieytez, 2019), parece claro que Espanha pode ser denominada de Estado unitário descentralizado (Fernandes, 2010; Ruano, 2017; Vieytez, 2019) pela sua constituição de poderes, pela influência forte do estado central e considerando a história que levou à elaboração da Constituição de 1978, a qual parte do compromisso entre as elites franquistas que queriam um estado unitário e a oposição, maioritariamente socialistas e comunistas, quais planeavam a restauração de governos autónomos (Magone, 2004), que resultou no modelo descentralizado através do Estatuto das Autonomias.

Sendo o modelo espanhol um modelo descentralizado, parte crucial do mesmo é a organização das Comunidades Autónomas. O arquétipo, nascido em consequência da organização constitucional e que visa organizar territorialmente as regiões, estabelece, desde logo, o chamado principio dispositivo.

Este princípio, em suma, estabelece que a reconstrução do estado espanhol tem que derivar do centro mas tendo em conta a vontade das regiões, definindo três caminhos para a autonomia funcional (Guibernau, 2004). A criação deste modelo veio como meio de resposta às reivindicações nacionalistas de regiões como o País Basco e a Catalunha.

Estas comunidades começaram por se enquadrar em três níveis: o privilegiado, dois e um. O privilegiado ficou para as regiões históricas como a Catalunha, País Basco e Galiza que tinham já tido grande autonomia durante a segunda república e que se traduziu na ideia que essas regiões passariam automaticamente ao estatuto de autonomia sem prévia necessidade de fazer qualquer pedido formal ao estado (Heywood, 1995). Estas regiões gozavam de poderes autónomos com inúmeras responsabilidades. O grau dois, por outro lado, eram regiões que tinham que seguir um processo de consulta antes de poderem propor o Estatuto de Autonomia mas, mesmo que esta fosse aceite, a autonomia da região seria baixa e sujeita a um período de cinco anos antes de poder avançar para o nível privilegiado. O grau um, em complemento, é chamada de rota “excecional” onde a região se poderia candidatar a receber os mesmos privilégios das regiões privilegiadas desde que determinadas condições fossem completadas e mediante aprovação através de um referendo (Heywood, 1995).

Este processo acabou por ser, em termos gerais, bastante controverso. A título de exemplo fica a chamada “febre autonómica” quando todas as regiões, para além do País Basco e Catalunha, tentaram estabelecer os chamados “governos regionais” (Heywood, 1995). Juntando este caso ao medo de um

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golpe militar, o governo da UCD, em parceria com o PSOE, decidiu acalmar este processo de autonomia regional. Em 1981 começou o debate a favor da LOAPA (do espanhol “Ley Orgánica de Armonización del Proceso Autonómico” - Lei Orgânica de Harmonização do Processo Autónomo). Este processo foi uma tentativa de responder à ausência de um modelo claro que estabelecesse as competências entre as regiões autónomas e o governo central (Romão, 2017).

Este processo, envolto em conflito, falhou. Como refere Paul Haywood (1995:145):

“For the first time since the restoration of democracy, political compromise on a major issue was abandoned. Nationalists in both the Basque Country and Catalonia argued that the LOAPA's measures would be tantamount to reducing their status to that of grade two regions, and appealed against the law to the Constitutional Tribunal”.

Em resposta, em 1983, o Tribunal Constitucional, já depois do PSOE estar no governo (eleições de 1982), declarou mais de um terço das normas inconstitucionais, o que levou à ideia de que o processo teria que ser repensado.

A nível Constitucional, verifica-se que a distribuição de poderes não é clara (Heywood, 1995; Martínez, 2013). Embora os artigos 149.º e 150.º da Constituição estejam reservados para os diversos poderes do estado central como, por exemplo, a lei criminal, defesa, imigração e política macroeconómica, e para as regiões estejam destinadas a agricultura, a indústria, a cultura, os serviços sociais entre outros, existem áreas onde a concorrência ou os poderes são partilhados entre as duas esferas do poder, como é o exemplo da educação, proteção ambiental ou saúde, fazendo com que exista a possibilidade de o governo central impor legislação nestes temas (Colino, 2008), como é reconhecido no artigo 150.º.

O papel do Estatuto das Autonomias não pode, de todo, ser tirado da discussão quando se trata da territorialidade de Espanha, pois cada Estatuto de Autonomia de cada região define as instituições dessa região em questão (Heywood, 1995). Este modelo de organização político-administrativa tem certas caraterísticas que é importante registar. Entre elas está o facto de ser uma estrutura assimétrica, o que significa, genericamente, que existem graus diferentes de autonomia, o que pode ser notado desde logo com a existência de três níveis, como já foi mencionado. Existem, assim, 17 regiões autónomas, cada uma com um parlamento unicameral com representação proporcional (Colino, 2008), com um presidente, um executivo, um Supremo Tribunal de Justiça e administração local (Heywood, 1995). Em

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Espanha, existem outras competências que, para além de nem sempre serem iguais de região para região, podem até variar com o passar do tempo. Como já foi referido, ao existirem três níveis possíveis de autonomia, as áreas específicas em que cada região pode ter alguma autonomia são escrutinadas através de um processo complexo, que depende não só de a qual dos três níveis a região pretende pertencer mas também através de uma negociação entre o estado central e a região, estando depois sujeita à aprovação do Tribunal Constitucional (Heywood, 1995).

No que diz respeito às competências das regiões, estas não estão explanadas na Constituição, mas esta refere que existem competências exclusivas ou legislativas. Estas competências das regiões, principalmente as executivas, são exclusivas até ao momento em que não entram em conflito com as disposições que digam respeito aos poderes do Estado central. No entanto, esta falta de clarividência traz alguma ambiguidade na definição destas competências, o que pode fazer com que os poderes oscilem de região para região.

Quanto à estrutura burocrática, o sistema também é confuso. Como constata Heywood (1995:156):

“Since the return of democracy, many of the functions assigned to the administración periférica have been transferred to the Autonomous Communities' own bureaucracies. However, the overall pattern of administrative organization in Spain has become, if anything, even more confused”.

No que toca à estrutura fiscal das regiões pode afirmar-se que existem regiões, como o País Basco ou Navarra que, pelo reconhecimento do “foral”, têm um alto nível de responsabilidade fiscal enquanto outras têm pouco. Embora em termos teóricos a constituição apenas preveja que os únicos impostos que têm que ficar para o governo central são os impostos aduaneiros e que, ultimamente, os restantes podem ficar atribuídos a qualquer um dos níveis de governo, estes, na sua maioria, ficam retidos em Madrid e depois são transferidos para as regiões (Heywood, 1995). Por este mesmo fator, a principal fonte de financiamento das regiões, em geral, é através do estado central, sendo o valor variável dependendo de fatores como a população, a área, o saldo migratório entre outros (Heywood, 1995).

Tendo em conta que o objetivo de ter regiões autónomas era diminuir as disparidades regionais, foi inscrito na constituição o mecanismo de compensação para as regiões mais pobres. O Fundo de Compensação Interterritorial (em espanhol Fondo de Compensación Interterritorial), foi criado

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precisamente para combater essas disparidades, pois transfere fundos de regiões mais ricas para as mais pobres.

No caso específico do Estatuto de Autonomia da Catalunha, de 1979, a questão estava na importância da diferença identitária desta perante as outras regiões, mas também na necessidade de respeitar o passado que o regime franquista tentou apagar (Guibernau, 2004). Ainda assim, o objetivo deste estatuto passou, em grande parte, por um meio para desenvolver um projeto futuro para a Catalunha. Como refere Guibernau (2004:76) “one that would strengthen the Catalans’ sentiment of forming a particular community”. Tentando restituir a sua natureza histórica e identitária, os critérios que estes usaram para definir essas caraterísticas foram a continuidade ao longo do tempo e a diferenciação dos outros, o que, para estes, mostra que a Catalunha existe como uma nação historicamente enraizada, que tem um objetivo futuro, e tem, ao mesmo tempo, uma cultura partilhada, ligada a um território específico (Guibernau, 2004).

Mesmo com estas caraterísticas aprovadas, ficou esclarecido que os catalães podem ter a sua identidade reconhecida desde que respeitem a constituição, não pedindo a independência. Neste contexto, e aceitando estes pontos e o principio dispositivo, os poderes da Generalitat emanam da constituição, o que se traduz no facto de que a constituição dita os poderes da região. Em bom resumo, como refere Guibernau (2004:79):

“The 1979 Statute of Autonomy refers to Catalonia’s territory, history, culture, language, symbols and a shared future project. It also includes direct references to the Catalans’ consciousness of forming a differentiated community. This emphasizes the five dimensions – territorial, historical, cultural, psychological and political”.

Como já se verificou, em 2006 foi aprovado um novo Estatuto de Autonomia da Catalunha que continha algumas particularidades e que, em 2010, viu algumas delas serem declaradas inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional Espanhol. Esta emenda fez com que assuntos tão perenes como a aplicação da língua catalã em superioridade à língua espanhola na região e a interpretação da Catalunha enquanto nação que se mantivessem sem efeito legal (Claramur, 2017). Apesar de serem emendadas e retiradas algumas das alíneas, este estatuto é o que está atualmente em vigor e contempla, a titulo de exemplo, algumas alterações no modelo de financiamento (Colino, 2009).

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