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1. Teoria Paradigmática de Amado Cervo

1.3. Estado neoliberal

No final da década de 1980, com o triunfo do capitalismo sobre o socialismo e a emergência da globalização, a economia clássica foi reformulada pelo pensamento neoliberal, optando pela sua vertente monetarista. Esta previa medidas de choque de mercado para debelar a crescente taxa de inflação e reanimar o ineficiente capitalismo da Guerra Fria. Este pensamento elevou-se, na década de 1990, à nova doutrina e estratégia político-econômica, tendo nos governos de Margaret Thatcher e de Ronald Reagan seus maiores promotores. Estas

107 CERVO, 2003, p. 14. 108 PATRÍCIO, 2012, p. 196.

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estratégias de caráter monetarista e conservador espalharam-se globalmente e os governos latino-americanos aderiram e as aplicaram com entusiasmo, vendo estas como a única alternativa para resolverem o problema do endividamento. Espalha-se, assim, na região aquilo que o autor Cervo define como o paradigma do Estado neoliberal109.

O Estado neoliberal foi uma invenção da inteligência política latino-americana e foi comum a todos estes países. As origens deste paradigma se situam já nas décadas anteriores e advêm de fatores tanto externos como internos aplicados para debelar a crise que afetava a região. Externamente, a queda do muro de Berlim e consequentemente do socialismo conduziram ao triunfo da economia de mercado e a miragem de uma globalização “benigna” por parte dos países latino-americanos. Internamente, os fatores principais foram a crise de endividamento externo dos anos 1980 e a recessão econômica, advinda esta da forte instabilidade econômica causada pelo desequilíbrio fiscal, da balança de pagamento e pela inflação galopante dos últimos anos. Todos estes efeitos negativos foram atribuídos ao modelo desenvolvimentista e levaram os governos latino-americanos a desejar encerrar o paradigma anterior. Estes novos governos neoliberais passaram a considerar a supremacia do mercado e a retirada do papel do Estado como derivações lógicas da democracia110.

Diante dos problemas trazidos desde o modelo anterior, os chamados estruturalistas cepalinos defendiam a busca da estabilidade com medidas de longo prazo – como o equilíbrio entre gastos públicos e receita pública – enquanto os monetaristas, de formação norte-americana, agora hegemônicos, optavam para tratamentos de choques, seguindo a onda das políticas de Reagan e de Thatcher111.

Frente à nova conjuntura internacional e à globalização, desde 1990 o pensamento político brasileiro aplicado às relações internacionais não foi homogêneo e caraterizou-se por orientações indefinidas e confusas. A instabilidade que caracterizava o governo brasileiro, e especialmente o Itamaraty, na primeira metade da década, vê-se na dificuldade em reagir aos novos desafios e no subseguir-se de cinco ministros das Relações Exteriores em somente cinco anos (1990-95). Somente a partir de 1995 – com os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso e a continuidade de seu chanceler ao poder – tentou-se dar coerência à atuação externa. Portanto, desde 1990 verificou-se a coexistência de três paradigmas: daquele que tinha orientado e condicionado a política externa nos sessenta anos anteriores, o

109 CERVO, 2008; CERVO, 2011; CERVO, 2013. 110 CERVO, 2008, p. 51.

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desenvolvimentista112, do Estado neoliberal, que será aqui brevemente analisar, e do Estado logístico. Este último reforçou o núcleo nacional, transferindo as responsabilidades empreendedoras à sociedade, especialmente com ajudas à esta para operar no exterior, visando equilibrar os benefícios da interdependência através um tipo de inserção madura no mundo globalizado113. Ressalta Cervo como estes últimos três paradigmas “coabitam, embora com prevalências diferenciadas e descompassadas, e integram o modelo brasileiro de inserção internacional de 1990 aos nossos dias”114.

Cervo, nesta sentido, explica que o desenvolvimento não desaparece da política externa com o esgotamento do Estado desenvolvimentista mas, após ser posto em dúvida pelos efeitos surtidos, deixou de ser o elemento de sua racionalidade. A manutenção do objetivo síntese do desenvolvimento notou-se por exemplo nos esforços da diplomacia brasileira durante as negociações da Rodada Uruguai do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), na criação do MERCOSUL, no relance do tema do desenvolvimento nos fóruns multilaterais quando este era ofuscado pelo radicalismo neoliberal global115.

O paradigma neoliberal defendia uma diminuição do papel do Estado em favor de uma nova abertura sob três dimensões, “dos mercados de consumo, dos mercados de valores e do sistema produtivo e de serviços”. Além disso e tentando atirar a benevolência do centro capitalista, foram aplicados antes na Argentina e depois no Brasil – primeiro pelo governo Fernando Collor e depois pelo governo FHC –, tratamentos de choque que previam a mudança da moeda, confisco da poupança, congelamento de contas bancárias e de preços, paridade monetária com o dólar, diminuição de tarifas alfandegárias, privatização dos empreendimentos estatais, proteção do capital e do empreendimento estrangeiro e a realização superávit primário. Ser “normal”, segundo o Ministro de Relações Exteriores da Argentina, Domingo Cavalo, significava dar cumprimento a estas instruções, no sentido de estar de acordo com os preceitos norte-americanos116. Por isso a Academia Argentina denomina este o paradigma do Estado “normal”.

Nesse sentido, os países latino-americanos ao invés de reivindicar seus direitos de países do Terceiro Mundo em face da alteração da ordem internacional, decidiram passar a aceitar as

112 CERVO, 2011, p. 489. 113 CERVO, 2011, p. 489. 114 CERVO, 2008, p. 67. 115 CERVO, 2011, p. 490. 116 CERVO, 2008, p. 78.

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estruturas e regimes internacionais, assumindo uma posição passiva, de aceitação acrítica dos regimes internacionais tal e qual vigoravam.

No pensamento e na práxis latino-americana, portanto, o monetarismo acabaria por prevalecer sobre o estruturalismo, conduzindo a uma redução da funcionalidade do Estado, que, de indutor do desenvolvimento, passa a ser espectador do mercado. O mercado por sua vez tinha a função de prover o resto, sobretudo o próprio desenvolvimento117.

O paradigma do Estado neoliberal, segundo Cervo, caracteriza-se por três parâmetros de conduta do Estado. Sob o aspecto político, ser “subserviente”, submetendo-se ao denominado “Consenso de Washington”, ou seja, às pressões e reformas da boa governabilidade118 exigidas pelo centro hegemônico capitalista e pelo FMI e BM. Sob o aspecto econômico, ser “destrutivo”, diminuindo o poder sobre a arena internacional, dissolvendo o núcleo central robusto da economia nacional e transferindo em volume crescente a renda para o exterior. Enfim, sob o aspecto histórico e estrutural, ser “regressivo”, reservando ao Estado o papel de espectador e ao mesmo tempo empurrando o empreendimento nacional para o setor primário, imprimindo ao processo histórico um salto para trás119.

O único país que aplicou estes parâmetros em profundidade foi a Argentina, levando o país a falência em 2001. No Brasil o processo foi bastante diferente seja pela força da indústria brasileira, que soube contrastar o processo de total liquidação do parque produtivo nacional, seja pelo contraste de algumas partes sociais que se refletiram em algumas incoerências na atuação do governo FHC. Cardoso, nesse sentido, manteve em certa medida a influência de alguns princípios e propósitos do período anterior e lançou as sementes do paradigma que iria seguir, aquele logístico120.

É interessante ressaltar que a “era Cardoso” se desenrola de 1992, quando foi Ministro das Relações Exteriores e posteriormente da Economia do governo de Itamar Franco (1992-95), e tem o auge nos oito anos de Presidência da República, entre 1995 e 2002. Esta administração aplicou políticas que inserem-se no paradigma do Estado neoliberal: introdução da nova

117 CERVO, 2008, p. 77.

118 Estas reformas previam a implementação de políticas de rigidez fiscal, retração do Estado nos investimentos

produtivos, contração dos salários e benefícios do welfare estatal, privatização das empresas públicas, venda destas às companhias estrangeiras para arrecadar dólares e pagar assim a dívida. O resultado esperado por esta reforma eram regras e instituições favoráveis à expansão das empresas privadas transnacionais na região (CERVO, 2008, 2011).

119 CERVO, 2008, p. 52; CERVO, 2011, p. 489. 120 CERVO, 2008, p. 53.

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moeda, o Real (inicialmente com paridade com o dólar), uma decisiva abertura do Brasil através de privatizações e o fim da proteção de produtos brasileiros. Isso conduz a um aumento substancial da dívida externa e a esboçadas mas tímidas políticas sociais para conter o descontentamento generalizado121.

Cervo, nos seus trabalhos, reconhece efeitos positivos e negativos do impacto do Estado neoliberal sobre a formação nacional. Do ponto de vista positivo, salienta-se que o choque de abertura aplicado obrigou os industriais brasileiros dos setores público e privado a enfrentarem a inundação dos produtos estrangeiros modernizando as suas estruturas e métodos de produção e comercialização. Como resultado houve um surpreendente aumento da produtividade sistêmica da economia brasileira. Porém, por outro lado, muitos maiores foram os efeitos negativos que levaram de volta o país a níveis críticos de vulnerabilidade externa. Exemplo disso foram o aprofundamento da dependência financeira, empresarial e tecnológica, com o fechamento de vários centros de pesquisa e inovação nacional. Além disso, as privatizações foram totalmente em benefício do capital estrangeiro, criando-se uma hemorragia de rendas rumo ao exterior que piorou o quadro da dívida externa. Baseado nas instruções dadas pelo centro capitalista, o Estado neoliberal encaminhava, assim, o país à destruição do patrimônio e do poder nacional. Conclui Cervo, “viviam da ilusão de divisas, ao mesmo tempo que dilapidavam o patrimônio nacional”122.

Segundo o mesmo autor, os governos de Itamar Franco e de FHC (1992-2002) não abandonaram a política desenvolvimentista principalmente por duas razões. A primeira é a resistência do mundo da diplomacia, que via como suicida a perda do capital e da credibilidade internacional do Brasil. A segunda, devido a uma certa divergência a respeito dos interesses dos EUA123.

É necessário lembrar que no entanto os EUA haviam abandonado como vetor principal da política externa o combate ao comunismo e haviam passado a impor aos seus aliados a luta ao terrorismo, sobretudo depois dos ataque de 11 de setembro de 2001. Os vizinhos norte- americanos pretendiam o multilateralismo e a liberalização do comércio, mas mantinham um rígido protecionismo que castigava as importações do Brasil. Diante deste quadro o Brasil não se conformou: obstruiu o projeto dos EUA de afirmar sua hegemonia continental por meio das regras da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), continuou a promover acordos

121 CERVO, 2011.

122 CERVO, 2008, pp. 81-2. 123 CERVO, 2011.

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bilaterais livres e tomou posições mais marcantes nos grandes encontros internacionais sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (Conferência de Rio de Janeiro, 1992) e sobre o Desenvolvimento Social (Cúpula de Copenhague, 1995)124.

Quanto às relações com a África, o paradigma do Estado neoliberal, diante de um análogo movimento de reformas neoliberais nos países daquele continente, levou poucas vantagens para as empresas brasileiras já instaladas na África subsaariana, como a Odebrecht e a Petrobras. Entravam, assim, em declínio as exportações brasileiras para o continente africano frustrando as expectativas quanto à cooperação para o desenvolvimento brasileiro em países como a África do Sul do pós-apartheid, Angola e Nigéria125.

Conclui Cervo que a administração Cardoso foi marcada por esta dança dos três paradigmas: “o desenvolvimentista que ele se compraz em ferir gravemente sem matar, o normal que emerge de forma prevalecente e o logístico que se ensaia como outra via”126.