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Dentre os muitos autores que pesquisaram o livro didático e suas atividades de leitura e compreensão, Marcuschi (2001; 2008) tem sido um dos mais lembrados. Embora sua pesquisa tenha sido realizada há pouco mais de dez anos, Marcuschi (2008) afirma que, de uma forma geral, os resultados encontrados não diferem muito da realidade atual do livro didático de Língua Portuguesa.

Na época em que a pesquisa foi realizada, o autor percebeu que os LDP tinham, em geral, seções destinadas à leitura, à compreensão e à interpretação de textos, o que não significava que existisse por parte dos autores e da equipe editorial um conhecimento acertado sobre o significado desses termos. Era comum que a compreensão fosse vista como sinônimo de decodificação, de atividades mecânicas. Além dessa conclusão, Marcuschi (Idem) constatou também que algumas questões típicas de compreensão vinham inseparavelmente ligadas a muitas outras que não tinham relação direta com o texto, especialmente questões formais. E mesmo essas poucas atividades de compreensão ainda estavam suscetíveis a, ou serem formuladas de forma genérica (às quais caberiam apenas respostas subjetivas independentes de qualquer dado do texto, as reconhecidas perguntas “vale-tudo”), ou então serem elaboradas sem que houvesse quase nenhum compromisso com a leitura crítica, não permitindo a construção ou a expansão de sentidos.

O autor também elaborou um quadro em que classifica as questões analisadas na década de 80 em uma tipologia de perguntas de compreensão nos livros didáticos de Língua Portuguesa, como vemos abaixo (MARCUSCHI, 2008, p. 271-272):

TIPOS DE

PERGUNTAS EXPLICITAÇÃO DOS TIPOS EXEMPLOS

Cor do cavalo branco de Napoleão

São P muito freqüentes e de perspicácia mínima, sendo já auto-respondidas pela própria formulação. Assemelham-se às indagações do tipo: “Qual a cor do cavalo branco de Napoleão?”

 Ligue:

Lilian – Não preciso falar sobre o que aconteceu.

Mamãe – Mamãe, desculpe, eu menti pra você.

Cópias

São as P que sugerem atividades mecânicas de transição de frases ou palavras. Verbos freqüentes aqui são:

copie, retire, aponte, indique, transcreva, complete, assinale, identifique etc.

 Copie a fala do trabalhador  Retire do texto a frase que...  Copie a frase corrigindo-a de acordo com o texto.

 Transcreva o trecho que fala sobre...  Complete de acordo com o texto.

Objetivas

São as P que indagam sobre conteúdos objetivamente inscritos no texto (O que, quem, quando, como, onde...) numa atividade de pura decodificação. A resposta acha-se centrada só no texto.

 Quem comprou a meia azul?  O que ela faz todos os dias?  De que tipo de música Bruno mais gosta?

 Assinale com um x a resposta certa.

Inferenciais

Estas P são as mais complexas, pois exigem conhecimentos textuais e outros, sejam eles pessoais, contextuais, enciclopédicos, bem como regras inferenciais e análise crítica para busca de respostas.

 A donzela do conto de Veríssimo costumava ir à praia ou não?

Globais

São as P que levam em conta o texto como um todo e aspectos extratextuais, envolvendo processos inferenciais complexos.

 Qual a moral dessa história?  Que outro título você daria?

 Levando-se em conta o sentido global do texto, pode concluir que...

Subjetivas

Estas P em geral têm a ver com o texto de maneira apenas superficial, sendo que R fica por conta do aluno e não há como testá-la em sua validade. A justificativa tem um caráter apenas externo.

 Qual a sua opinião sobre? Justifique.  O que você acha do? Justifique.  Diante do seu ponto de vista a atitude do menino diante da velha senhora foi correta?

Vale-tudo

São as P que indagam sobre questões que admitem qualquer resposta, não havendo a possibilidade de se equivocar. A ligação com o texto é apenas um pretexto sem base alguma para a resposta. Distinguem-se das subjetivas por não exigirem nenhum tipo de justificativa ou relação textual.

 De que passagem do texto você mais gostou?

 Se você pudesse fazer uma cirurgia para modificar o funcionamento do seu corpo, que órgão você operaria? Justifique sua resposta.

 Você concorda com o autor?

Impossíveis

Estas P exigem conhecimentos externos ao texto e só podem ser respondidas com base em conhecimentos enciclopédicos. São questões antípodas às de cópias e às objetivas.

 Dê um exemplo de pleonasmo vicioso (Não havia pleonasmo vicioso no texto e isso não fora explicado na lição)

 Caxambu fica onde? (O texto não falava de Caxambu)

Metalingüís- Ticas

São as P que indagam sobre questões formais, geralmente da estrutura do texto ou de léxico, bem como de partes textuais. Aqui se situam as P que levam o aluno a copiar vocábulos e depois identificar qual o significado que mais se adapta ao texto

 Quantos parágrafos tem o texto?  Qual o título do texto?

 Quantos versos tem o poema?  Numere os parágrafos do texto  Vá ao dicionário e copie os significados da palavra...

A partir dessa tipologia e da quantificação dos dados, o autor percebeu que nos livros didáticos predominavam em quase 70% perguntas dos tipos “cópias” e “objetivas”, responsáveis pela proposição de atividades de transcrição e de decodificação, respectivamente. Como os tipos de questão do quadro elaborado por Marcuschi estão bem delimitadas, em alguns momentos da análise recorreremos a essa classificação, por isso transcrevemos o quadro na íntegra.

Belmiro (2003, 2004a, 2004b), já citada no capítulo anterior, também se interessa pela discussão de atividades de leitura, enfocando, principalmente, a leitura de textos literários e de textos visuais. A autora (2004b) percebeu que as propostas de leitura no livro didático de Língua Portuguesa eram muitas vezes inábeis quanto à formação de um leitor competente, capaz de reconstruir os diversos sentidos do texto. Em sua análise, Belmiro percebeu ainda que imagens provenientes de fontes criativas distintas (estilos diferentes, artes distintas) eram associadas umas às outras em atividades de leitura somente em função do seu conteúdo temático. O leitor não era informado sobre as especificidades de cada imagem e sobre seus contextos históricos e culturais. Ao contrário, o leitor deveria ativar estratégias de leitura centradas na decodificação e em procedimentos primários de compreensão, o que leva a autora a questionar: “por que a interpretação de textos visuais é trabalhada tal qual a interpretação de textos verbais? (2004b, p. 59).

Como exemplo de outras pesquisas, temos o trabalho de Conceição (2005), que concentra sua análise em um mesmo LDP em dois momentos distintos: antes e após ser revisado por suas autoras e aprovado nas avaliações do PNLD. A autora partiu da seção “Apresentação da coleção” (uma espécie ou subdivisão do Guia do Professor) para contrapor a concepção de leitura defendida pelas autoras do livro didático às atividades propostas pelo livro para a sala de aula. Além de verificar que muitas das alterações feitas na nova edição do livro didático foram superficiais e que em suma não modificaram o fazer pedagógico do trabalho com a leitura, a autora percebeu que havia dicotomias visíveis entre as concepções abraçadas pelo livro e as reais atividades e propostas de leituras. Por exemplo, enquanto na seção referida era defendido que o docente jamais deveria interpretar de pronto o texto para seus alunos, sob o risco de impedi-los de se apropriarem do texto e ressignificá-lo, em algumas atividades ocorriam exatamente o inverso: o próprio livro do aluno trazia “dicas” próximas aos questionamentos sobre o texto, oferecendo uma interpretação e, por conseguinte, fechando a possibilidade de novos sentidos.

Souza1 (2002), por sua vez, também partiu da análise das seções do livro didático onde são apresentadas as concepções e as orientações principais ao professor. A autora analisou dois LDP e verificou que, embora tivessem diferentes percepções teóricas, ambos partilhavam de uma mesma concepção de leitura que se antecipa ao leitor e o imobiliza. Segundo Sousa (Idem), “no fundo, por mais que os autores digam assumir uma “proposta inovadora” e insistam em reconhecer o papel ativo do leitor, prevalece, nas atividades propostas, um modelo de leitura como decodificação, já que o aluno acaba sendo instado a reconhecer o sentido como estando explicitamente representado no texto”.

De um modo mais estreitamente ligado ao nosso objeto de estudo, Carvalho (2009) abordou em seu estudo as questões de leitura acerca do gênero tira no livro didático pela ótica do reconhecimento das teorias linguísticas que embasam as atividades. O autor reconhece que a leitura das tiras em situações escolares se volta em grande parte para a reflexão metalinguística, analisando distanciadamente os usos da língua em seus aspectos retóricos, estilísticos, discursivos e gramáticos. Nos materiais didáticos organizados a partir da década de 70, quando os quadrinhos começaram a entrar na sala de aula, Carvalho observou que a tira recebia tratamento diferenciado no livro didático à medida que as teorias linguísticas sucediam umas às outras nas preferências teórico metodológicas de cada momento, mas que, contudo, essas atividades tinham em suma os mesmos papeis. Nas palavras do autor:

dentre os papéis identificados no livro didático, destacamos: a) ilustração e atividade recreativa, sem relação com as outras atividades propostas de leitura(ver anexo); b) história introdutória ao tema do capitulo a ser desenvolvido; c) fornecedor de um conjunto de frases para serem analisadas do ponto de vista gramatical; d) exemplificação de falas adequadas e inadequadas com a norma culta; e) leitura de aspectos icônicos presentes no texto não verbal; f) suporte para atividades de transposição do discurso direto para o indireto; g) proposta para tema de redação h) observação do uso de termos que apresenta mais de uma significação; h) observação do funcionamento de figuras de linguagem nos textos i) observações de fatores contextuais na análise de texto j) análise lingüístico-discursiva dos enunciados.

As “funções” que as tiras desempenham no livro didático e que foram percebidas por Carvalho são bastante semelhantes às que percebemos em nossas observações. De um modo geral, essas atividades são ilustrativas, recreativas, fruitivas, exemplificadoras das mais

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diversas ocorrências lingüísticas e gramaticais, cujas particularidades pretende-se que essas atividades ajudem a exercitar.

Uma constatação bastante parecida com a anterior também foi feita pelas autoras POLETTO-LUGLI e NASCIMENTO (2006), que perceberam que os quadrinhos, de uma forma mais geral, estão disponíveis no livro didático ou para a leitura fruição ou tão somente para complementar a temática ou o elemento lingüístico estudado na unidade temática. Além disso, as autoras verificaram que, em muitos casos, não havia nenhuma informação prévia sobre as personagens da tira, o que, em alguns casos, comprometia totalmente os sentidos do enunciado. O material analisado foi um livro didático de língua estrangeira — espanhol —, porém a análise descortinou problemáticas comuns aos materiais de Língua Portuguesa.

Embora tenhamos apenas elencado algumas pesquisas com a leitura no livro didático de língua portuguesa, reconhecemos que é expressiva a vastidão de estudos sobre o tema, sob múltiplos recortes e olhares. Concluímos que, se, por um lado, é inviável e quase impossível organizar um estado da arte que dê conta de tudo o que já foi produzido até agora; por outro lado, não há como localizar sequer uma pesquisa que problematize o objeto de pesquisa de modo idêntico ao que propomos nesta dissertação. Sabendo que o enunciado é sempre da ordem do irrepetível, contribuímos para que esse estado da arte seja cada vez mais múltiplo e diverso, na medida em que focalizamos o mesmo objeto, mas a partir de nossas singularidades.

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