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2. BACHARELISMO E ENSINO JURÍDICO COMO CAMPO DE CONSTITUIÇÃO

2.3. Estamento e burocracia no Império

Como visto, a criação dos cursos de Direito no Brasil estava envolta numa perspectiva coerente com a proposta de autonomização política do Império, pautada no liberalismo econômico e no individualismo político, o que reclamava a burocratização do aparelho estatal.

As reformas necessárias deveriam propiciar profundas alterações do sistema colonial, capaz de suscitar a emergência do Estado-nação brasileiro. Mas essas reformas estavam atreladas aos detentores do poder político, e não à sociedade propriamente dita, consistindo o liberalismo, portanto, como condição e instrumenalização da dominação, e consequentemente, da instauração do novo regime.

Segundo Faoro, o Estado brasileiro se organizou sob as bases do modelo patrimonialista português, o que revela o caráter autárquico rural de sua composição, mesmo no Império. Paradoxalmente, esse modelo de Estado acabava sendo a própria negação do pretenso liberalismo. “De fato, fundado em uma ordem burocrática em que o soberano se sobrepôs ao cidadão, o Estado patrimonial impediu a autonomia da empresa privada e anulou as liberdades de contrato, associação, concorrência e livre profissão, justamente as bases em que se assentaram as liberdades públicas no Estado liberal” (FAORO, 2001, 131).

É dessa forma que a consolidação do regime político acarreta na profissionalização da política, para a qual servirão as Academias de direito de, antes de escolas jurídicas, escolas políticas. A ocupação passa a ser estratégica para o escopo da unificação das elites, referenciada na burocratização do aparato governamental, e os

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bacharéis se consagram enquanto sujeitos centrais, pois mediadores entre os interesses públicos e os particulares. É assim que se posiciona Adorno (1984) a respeito:

Com um olho voltado para o Estado e outro para a sociedade, o papel dos bacharéis consistiu em “juridicalizar” a sociedade brasileira. (...) Ao fazerem isso, os bacharéis acabaram privatizando os conflitos sociais; isto é, dificultando a expressão pública das questões da vida privada e despolitizando a ordem social civil, mediante a categorização de alguns sob o título de cidadão e de outros sob o triste desígnio de tutelados. (...) ... o principal intelectual da sociedade brasileira durante o século [XIX]: o bacharel (ADORNO, 1984, 134).

O rastro deixado por Adorno impulsiona a refletir a questão da cidadania no Brasil. Afinal, o pretenso sujeito político é o cidadão. Começa a clarear que o conceito de cidadão é usado pejorativa ou genericamente, sem o seu condão efetivo, para o destinatário do conjunto de regras jurídicas estabelecidas enquanto diretrizes de um convívio social civilizado. Pois uma coisa é o cidadão, outra coisa é o tutelado. Nesse contexto, cidadão é aquele que vota, que expressa a vontade da representação. Tutelado é o “objeto” (e não sujeito!) das realizações políticas, passivo à ordem debatida e instaurada.

Quem conduz a subjetividade passiva dos tutelados? Quem se revela “sujeito político” no pleno comprometimento com um ideário parcial e tendencioso? Via de regra, os bacharéis, desde um discurso jurídico-acadêmico até um discurso político, representação do pensamento jurídico no tempo estudado.

Todo o conjunto caracterizador da vida acadêmica, especialmente em São Paulo (e também em Recife), no século XIX – o jornalismo panfletário, as doutrinas científicas pautadas no direito comparado, as preleções dos lentes, as práticas políticas em partidos (políticos) acadêmicos, os discursos “revolucionários” (federalistas,

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republicanistas, abolicionistas) – permitem a compreensão do processo de “profissionalização da política” no Brasil. Pois o ambiente propiciado aos estudantes, especialmente em São Paulo – segundo Adorno (1984) um espaço par excellence do bacharelismo liberal – foi responsável por toda a formação “interdisciplinar” do bacharel: poesia, literatura, política, advocacia, jornalismo, militância reunidos num único conjunto de arcadas, no momento fértil para idéias políticas. É por isso que a vida acadêmica e a formação do bacharel não exatamente se prende às atividades curriculares, pois tecida muito mais nas práticas discursivas dos institutos e associações acadêmicas e do jornalismo panfletário.

Esse cotidiano acadêmico foi uma extensão do famigerado liberalismo brasileiro, e a formação desses bacharéis, para além de uma sala-de-aula, representou uma complexa trama entre os princípios de direito público advindos da revolução de 1789. Venâncio Filho sumula as condições de presença e participação no mandarinato imperial: “ser estudante de Direito era, pois, sobretudo, dedicar-se ao jornalismo, fazer literatura, especialmente a poesia, consagrar-se ao teatro, ser bom orador, participar dos grêmios literários e políticos, das sociedades secretas e das lojas maçônicas” (VENÂNCIO FILHO, 1982, 136).

É certo que desde a intenção originária, os cursos de direito foram ditados pela constituição de uma elite política coesa e coerente às principiologias do Estado, capaz de “produzir” sujeitos úteis ao mecanismo de construção do Estado-nação já rascunhado. Tratava-se de substituir a burocracia tradicional colonialista pelo novo estamento burocrático pautado na ideologia jurídico-política do Estado – e do interesse – emergente.

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O maior “segredo” do ensino jurídico brasileiro no Império, desvendado por Adorno (1984), foi o de nada haver sido ensinado, nas Faculdades de Direito, a respeito de ciências jurídicas72.

O que justifica a predominância do liberalismo nessa formação “jurídica” é a forja de um tipo ideal de político, requisito primário dos grupos que disputavam o poder do Estado. Esse individualismo permitia “a formação de um tipo de bacharel que repudiasse tanto a tradição quanto a revolução, que cultivasse o amor à liberdade acima de qualquer outro princípio, que jamais visualizasse o Estado sob a perspectiva da coação, que encontrasse no contrato os fundamentos da obediência política e que, enfim, adquirisse a convicção de que o “segredo” da luta pelo poder repousava na arte da prudência e da moderação política” (ADORNO, 1984, 383). Ao privilegiar o individualismo em detrimento do ideal coletivo, ao pugnar pela “liberdade” no lugar da igualdade, a formação bacharelesca focava na privatização dos conflitos sociais, e não na representação coletiva. É assim que se formatava um político “liberal”, dificilmente democrata. É assim que se caracterizava uma pretensa subjetividade política no Império.

Deve-se atentar para o detalhe de que “prudência política” não vem significar, necessariamente, a exlcusão das camadas populares do jogo político, vedando- lhes a participação nos negócios públicos73. Mas a cidadania engendrada era mascarada, limitando toda e qualquer atuação do povo, pois a tarefa do estamento – e do direito – era de “ordenar” as relações sociais. A trama se desvenda quando é perceptível que a

72 Essa é a tese de Sérgio Adorno, defendida na FFLCH/USP, em 1984, intitulada A arte da prudência e da

moderação: o liberalismo e a profissionalização dos bacharéis na Academia de Direito de São Paulo (1827- 1883).

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“prudência política” significava tratar questões sociais como se resultantes de conflitos privados, e não como resultantes de conflitos entre grupos ou classes.

Tragtenberg (2006) retratou a válida premissa de que a administração se realiza plenamento no Estado, enquanto organização burocrática formal, e reflete, invariavelmente, por seu caráter ideológico, os interesses das classes dominantes. Além disso, segundo o autor, a burocracia tem efeito de permanência, de manutenção, atrelado a desejável nível de autonomia. Esse entrelaçamento é nítido quando se percebe a intenção recíproca da burocracia com as finalidades do Estado: “a burocracia protege uma generalidade imaginária de interesses particulares. As finalidades do Estado são as da burocracia e as finalidades desta se transformam em finalidades do Estado. A burocracia é sinônimo de toda casta, seja hindu ou chinesa. Ela possui o Estado como sua propriedade. A autoridade é sua ciência e a idolatria da autoridade, seu sentido mais profundo” (TRAGTENBERG, 2006, 28). Dessa forma, mesmo no Brasil império, o objetivo do Estado se torna o objetivo da burocracia (composta por militares, elite intelectual, funcionários públicos e especialmente juristas), “cujo espírito é o segredo mantido no plano interno pela rigidez hierárquica no fluxo de comunicação, e pelo seu caráter de corporação fechada, no plano externo” (Idem, 33).

A consequencia dessa sistemática, perfeitamente visível na trama política imperial alavancada pelos bacharéis liberais, é a imposição pela burocracia, enquanto aparelho de Estado, das suas próprias opções políticas74.

74 Tragtenberg conduz inovadora interpretação da sociologia weberiana, ao dizer que “reconhece Weber que o

perigo não está na massa, mas sim na qualificação política da classe em ascensão, admitindo, na impossibilidade de a burguesia alemã cumprir seu papel histórico de dirigente da sociedade, que tal papel

passasse às mãos do proletariado” (TRAGTENBERG, 2006, 147). “Mostra que a idéia de um Conselho de

Estado com função consultiva – idealizado pelos teóricos do corporativismo – nada mais seria do que fórum de debates políticos a respeito de idéias desligadas de partidos políticos, órgão praticamente inútil; porque são órgãos para manifestação de opiniões de especialistas (tais órgãos corporativos), não podendo substituir

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Em síntese, significando a burocracia um sistema de condutas para além de uma simples organização formal, o estamento burocrático brasileiro pode ser vislumbrado não como formador de sujeitos políticos destinatários do cabedal legislativo garantidor das liberdades (mesmo que no espírito liberal, e ainda que levadas em conta as ambigüidades do termo à época), e sim como formador de pretensos sujeitos, inominados, detentores de uma complexa gama de diretrizes que fundam o Estado-nação sob a égide dos interesses das elites dominantes, descomprometidas com um pleno conceito de cidadania, esta sim ensejadora dos verdadeiros sujeitos políticos.

2.4. A reforma do Ensino Livre e a reforma Benjamin Constant do ensino jurídico e o