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4 “Estamos onde o lugar este lugar é.”: o testemunho e os lugares

Espectadores de si próprios, turistas do íntimo, não poderiam imputar à nostalgia ou às fantasias da memória as mudanças objectivamente testemunhadas pelo espaço em que continuam a viver e que já não é o lugar onde viviam.

Marc Augé Não-Lugares

De acordo com Jean-Pierre Sarrazac, a tendência para o monólogo no drama moderno vai ao encontro da necessidade de expressar uma memória biográfica que funcione como forma de protesto do presente41. As personagens mais do que agir, caracterizam-se pela “capacidade de (...) rememorar”, tornam-se “testemunhas da sua própria existência e da sua época”42

. O que fazem os figurantes senão proceder a uma

41

Cf. Sarrazac, 2002: 161.

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contínua rememoração de episódios das suas vidas? E o depoimento de Linda que não é mais do que uma construção de memórias recentes capazes de contribuir de alguma forma, para a investigação do homicídio?

O testemunho, apesar de factual, é preenchido sempre por algo que vem da ficção, uma vez que depende da memória. Testemunhar é fazer uma reformulação artística na medida em que há uma reconstrução e montagem das imagens que habitam a memória, “o que conta é a capacidade de criar imagens, comparações e sobretudo de

evocar [do real] o que não pode ser directamente apresentado e muito menos

representado.” (Seligmann-Silva, 1999: 384). Os episódios biográficos evocados por cada um dos figurantes, tal como o testemunho de Linda, acrescentam autenticidade às personagens e, consequentemente ao que vemos/ lemos, porque além dessa espécie de “manifestação do real” (idem, 386) que é lançada ao público, trava-se ainda um duplo compromisso com o mundo: entre as personagens e o seu real, as suas histórias, e entre essa manifestação e o público que a apreende projetando-a na sua vida, na sua história, no seu universo.

À medida que Figurantes se desenrola, Emília, Luísa, Pedro, Micaela, António e

Nuno vão ocupando espaços na narrativa a contar episódios que os tenham marcado na

sua vida. Cada personagem pode contar no palco com um território particular para desenvolver o seu solo iluminado; um pouco afastados do grupo num ou noutro momento da sua história os figurantes são protagonistas das suas próprias vidas. João, o contador de histórias, começa por inventar a história da mão a partir de uma experiência sua, porém, deixa imediatamente a história da sua vida de parte para se entregar à história inventada. É ele que escreve dentro da peça outra peça, não sabemos nada sobre ele a não ser o prazer de contar. No final da peça João mostrar-se-á como apresentador, de microfone altivo, deixará em aberto a história da mão. No “Manual de Leitura” de

Figurantes Ricardo Pais diz mesmo que João é o alter-ego de Jacinto Lucas Pires,

afirmando que a personagem do contador de histórias “É o coração da peça. (…) nasce daí, do que quero contar e daquilo que a personagem interpretada pelo João Reis não consegue contar, ela tem que atravessar um deserto até talvez o conseguir. Esse foi o começo da ideia.” (Pires, 2004b: 10). Já relativamente às outras vozes, é através dos seus testemunhos que as vamos conhecendo, em discursos voadores que partem quase sempre de um elemento ou palavra usada naquele lugar partilhado por todos. É a culpa que os prende ali.

64 Emília é paramédica e relata um episódio de trabalho no qual tentava conversar

com um homem que tivera um acidente de automóvel enquanto esperavam por ajuda “Eu, uma vez, estava a segurar a cabeça de um homem que sangrava da cabeça/ (…) / Comecei mal, disse “não morra”, e fiquei assustada com a palavra e comecei a ficar à rasca...” (...) / E de repente dei por mim e estava a falar-lhe das luzes. [associa às luzes

artificiais] (pausa) Foi só isso.” (Pires, 2004: 23, 26). Luísa, a mais atenta às palavras, é

formada em linguística, «Tomemos uma mulher como eu há uns anos atrás (…) Sou uma estudante e ponho-me em bicos de pés para chegar a um ensaio especialmente volumoso sobre linguística (…) à minha direita um grupo de professores está à conversa, e um diz “tecnicamente não é um provérbio” [expressão que utilizara momentos antes]» (idem, 29). Pedro, a voz que exclama em género de pontuação rítmica nomes ou referências cinematográficas (Federico Fellini!) e que questiona permanentemente, podemos sempre perguntar o que é o “normal”, a propósito do comentário de Luísa – “Como são belos os gerúndios.” (idem, 30) – introduz: “Uma vez ofereci um ramo de gerúndios brancos a uma mulher.” (idem, 31). Micaela observa a importância de escolher as palavras certas, e daí transporta essa preocupação para um episódio passado no seu trabalho «Dizia que continuava “interessado em mim”, que não tinha perdido “vontade de mim”, e, lá está, as palavras têm de ser bem… como é que disse?... escolhidas» (idem, 49). António, depois de uma outra assustadora aparição de

Vasques e Cardoso irrita-se e comenta o facto de estar ali parado e de não se queixar, o

que o faz recordar uma história “Uma vez estava muito parado (…) Estava nesse local, tipo uma praça num país com sol, e vi uma moça mulata muito bonita.” (idem, 68). Por fim Nuno, a voz mais próxima do universo cinematográfico, pode mesmo ser uma espécie de cineasta, conta como filmou a mãe nua, mas ninguém reage, “Filmei-a de costas, em grande plano, a tremer.” (idem, 87). Os testemunhos vão sendo lançados e continuados à vez, retomados e partidos conforme a inclusão de comentários ou partes da história da mão. É depois da última aparição de Vasques e Cardoso, (a mais surpreendente, pois surge do chão uma flor (um girassol) a cantar que faz Cardoso sorrir, um sorriso leve que se transforma em dor e por fim em morte; Vasques chora a sua morte, e depois do momentâneo luto morde-lhe o peito e come-o), que é despoletada (cena 12) uma catadupa de confissões por parte dos figurantes, em jeito de desgarrada. Todos falam das suas histórias com uma inquietação maior, com urgência, eles sabem que o fim se aproxima. João tenta ouvi-los ao mesmo tempo que procura recuperar novamente a história da mão, ainda por concluir. Alguns exemplos:

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ANTÓNIO Foi de noite. Aquela história do sol e da praça e tal, isso é tudo mentira (…)

MICAELA Há noites em que, juro, penso maldades contra todos (…)

JOÃO Uma estrada que é um rumor contínuo.

(…)

NUNO Disse-lhe para se despir. E ela não. Então aproximei-me. Dei-lhe um estalo. Fraco. (…)

EMÍLIA (…) os automóveis devem ser das coisas mais belas que existem (…)

LUÍSA (…) queria só experimentar a sensação de estar assim, em cima de um caixote, em quase-desequilíbrio na minha própria varanda. (…)

PEDRO Ela passava pastilhas nas discotecas. (…) (idem, 97-101)

O carrossel de confissões cessa quando João intervém alterando-o tragicamente com a

história da mão: “Sem nada, o homem quase morre passeando multidões ou… Até que

se lembra que ela gosta de pintura e faz os museus todos, e no último de todos descobre-a. Sim. Mas há uma diferença terrível: ela não tem a mão.” (idem, 102), finalmente todos lhe prestam atenção (Hã?). A história da mão perde a mão, e de repente, enquanto a “mulher está na arte contemporânea” (ibidem), eles tornam-se “o homem magro, espantado, ainda tentando encaixar a novidade brutal, o choque. Ainda pode recuar. É uma fracção de segundo, talvez, é um tempo-limite (…)” (ibidem). Chega o momento em que têm de decidir (naquele tempo-limite), que rumo final querem dar à história:

(…) mas ele ainda pode desistir, voltar-se, esconder o rosto, sair sem ser visto. Decidimos o quê? Queremos aquela não-mão? Aquela mulher incompleta, mal terminada antes do pulso fino? Aquela mulher tão mais partida porque sem uma parte? Queremos (ainda podemos não)? Queremos? Ela olha o quadro e nós quê? (Pires, 2004: 103)

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Sem perderem o poder de decisão, os figurantes projetam-se no homem magro: eles são o homem magro em choque. A urgência das suas confissões transborda para a história. João continua “(…) A cabeça dela começa a pesar sobre o lado esquerdo, como que a inclinar-se por dentro, preparando o virar do corpo, anunciando-o. Ela está à beira de. Nós somos o homem atrás, expectante, suspenso, a pensar o que fazer. Fazemos uma pausa. Fazemos o quê? (…)” (idem, 104) Emília pergunta “Estamos a falar de uma decisão definitiva?”. O ambiente inquietante de Figurantes perdura até à última palavra – o momento último em que se desvenda aquele Lugar.

Em Silenciador encontramos o testemunho ligado ao depoimento policial, não há espaço na peça para grandes confissões ou desabafos pessoais, sendo o testemunho um dos elementos mais importantes do universo do policial, uma vez que preserva a oralidade como recurso de autenticidade. Linda presta declarações depois da morte do seu companheiro. A mulher discursa (na primeira vez que presta declarações), sozinha, numa língua estranha (com sotaque), num fluxo quebrado pela montagem das memórias e pela procura das palavras, ao mesmo tempo que tenta mostrar a sua inocência.

(…) E… não, não estava na sala quando tudo se aconteceu-se. Estava na cama. Estava na cama, deitada. A dormir. Juro que é verdade. Nessa noite tinha havido uma insónia grande e eu estava a ficar mais compensada disso. Tinha metido cá para dentro um comprimido pra dormir e estava num sono completamente profundo. De repente. (Pausa.) Pois, o barulho me pareceu-me arrebentar dentro do sonho que eu não estava a ter. Não sei se percebem ou compreendem. (…) (Pires, 2008: 25)

Linda além de referir a sua presença naquele momento e naquele lugar, rasga o

monólogo para defender a sua inocência (“Juro que é verdade”) e direciona-o por vezes para os detetives com questões retóricas propositadas numa tentativa de criar empatia. Na segunda vez que vemos Linda na esquadra é entrevistada diretamente pelos detetives, eles estão também presentes.

LINDA Ele trazia uma camisa despertiva com uma marca boa no peito esquerdo quando, nesse dia em que nos conhecemos pela primeira. Nunca vou esquecer-me. Fiquei logo a pensar-me nele.

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SANTOS Mas vá directa ao assunto.

LINDA Mas é mesmo isso que eu estou-me a ir-me.

MANEL Sim, continue, continue. (idem, 31)

A terceira vez que a mulher testemunha fala em segredo, apenas com Manel, depois de combinar um encontro com ele fora do ambiente da esquadra de forma a seduzi-lo e arranjar uma espécie de aliado (Para fugir com alguém que a sustente daquele lugar? Para não se preocupar com burocracias pois está no país de forma ilegal?). Quando Linda se prepara para finalmente contar a verdade a Manel sobre si própria (não é nada uma estrangeira) chega Santos que acaba por relacionar tudo o que foi acontecendo até esse momento durante a investigação, confessando subtilmente que foi o autor do crime. Quando Manel percebe que esteve sempre lado a lado com o criminoso, Santos faz-lhe uma proposta vaga “[s]e entrares – se aceitares esta possibilidade de usar as entrelinhas…” (idem, 76) subentendemos que seja para exercer um cargo qualquer que o apoie, em troca de uma elevada quantia (supomos) de dinheiro (iuanes). Manel não aceita a proposta e quando Linda o insulta para tentar que ele aceite, Santos interrompe-a humilhando-a, e num tom entre a honestidade e a ironia diz “Ele [Manel] é um – ele é que tem razão, ele é que está do lado certo. Um homem de princípios, como já há tão poucos, um homem de justiça, fiel à sua consciência, à sua liberdade e à sua – (saca a pistola de dentro do casaco, dispara contra Manel (…)” (idem, 77, 78) mas usou o silenciador.

Em Silenciador o testemunho é institucional, uma obrigação imposta pela lei à qual Linda, apesar da máscara linguística que usa para esconder a sua identidade, não pode fugir. Já em Figurantes, o testemunho surge em parte como evasão da culpa que parece estar impressa em cada um daqueles corpos e daquelas vozes. Eles partilham

pecados, cenas cruas, altamente íntimas que os marcaram e que nunca tiveram coragem

de dizer a ninguém. A exteriorização das suas histórias pode funcionar ainda como prova de sobrevivência, se passaram (porque não ultrapassaram) aqueles acontecimentos que narram, também poderão sobreviver ali, resta uma esperança de vida naquele lugar que os afasta da morte. Por outro lado, os testemunhos vão servindo também de inspiração para a narração da história da mão, o individual de cada um

68 coletiva-se em prol do coro da história da mão. Retomando a ideia do testemunho

funcionar como prova de sobrevivência, poderemos dizer relativamente a Silenciador que o (falso) testemunho de Linda encaminha-a a prestar essa prova, pois ela servirá as ordens de Santos.

Através da exploração dos elementos referidos ao longo destas últimas páginas (a oralidade na linguagem e o testemunho), que como vimos são mecanismos que permitem dar conta do mundo em que vivemos e por conseguinte, estabelecer um certo “reconhecimento” dessa realidade. Nas duas peças em análise, este “reconhecimento”, esta procura de algo próximo da verdade do mundo, da sua autenticidade, é também sublinhada pelas próprias palavras das personagens. Elas chamam-se e chamam-nos à reflexão sobre o emaranhamento entre teatro e vida e por vezes baralham-se, baralham- nos:

SANTOS (…) Uma situação da vida real. Nada de “cenários”, nada de historinhas no papel. Isto está a acontecer. Isto é o que acontece. Isto é isto mesmo, aqui. (Pausa) E, então, aqui, na vida real… (idem, 76)

LUÍSA É aterrador – como as coisas reais não são nunca. Dizemos “aterrador” e isso modifica aquilo de que falamos. É aterrador. (Pires, 2004: 82)

NUNO Isto às vezes acontece mesmo assim. (idem, 91)

Recuperando a ideia de monólogo que lançámos no início deste capítulo, acrescentamos uma ideia de Hans-Thies Lehmann. Este autor concebe o monólogo, (que nós relacionámos com o testemunho e a rememoração biográfica) como forma capaz de instaurar a sensação de o real estar infiltrado no teatro, como temos visto até agora, estabelecendo um contra ponto com a irrealidade (ficção) que a influência cinematográfica projeta, nomeadamente através do close-up.

O monólogo teatral de fato oferece uma visão do íntimo dos protagonistas, assim como o close-up o faz à sua maneira. Mas o que acontece na percepção cinematográfica do rosto em destaque é sobretudo a desmontagem da vivência do espaço. Como aponta Deleuze, o olhar do espectador de cinema apreende um “espaço qualquer”. O close rompe a suposição de realidade do contínuo espacial. Enquanto o espaço qualquer do close nos conduz para fora da realidade e nos afunda no fantasma, o monólogo de

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personagens sobre o palco reforça a certeza de nossa percepção do acontecimento dramático como uma realidade no espaço do agora, atestada pela implicação direta do público. É essa transgressão da fronteira do universo dramático imaginário na situação real do teatro que leva a um interesse específico pela forma textual do monólogo e pela teatralidade específica ligada ao monólogo. (Lehmann, 2007: 211)

O ritmo e os tons da cidade, a presença do quotidiano, as conversas de rua, enfim, a marca e a atualidade do mundo entram na dramaturgia de Jacinto Lucas Pires através do dispositivo, no caso de Figurantes, o teatral, e no caso de Silenciador o cinematográfico, que possibilitam a desterritorialização de pedaços de realidade, constituindo-os elementos integrantes da coreografia (que são as peças), a par de outros aparentemente dissonantes. A desterritorialização de elementos distintos e a sua posterior montagem, o desvio pelo universo do policial, a exploração da linguagem, são tudo estratégias e desvios que equilibram o familiar com o estranhamento, interrompendo qualquer toque numa dimensão realista. O movimento de todos os elementos heterogéneos forma ainda um conjunto de lugares concretos que se estendem e se contraem nos mais variados tempos. Falemos agora, mais concretamente, de lugares.

Não sabemos onde se encontram os figurantes, eles vão construindo espaços através dos seus testemunhos e da história da mão e a questão do espaço só é levantada por eles durante a quinta cena, quando António intervém: “Mas, portanto... não sei se devo pôr as coisas deste modo, mas... se bem percebi, este lugar é um... uma espécie de...?” (Pires, 2004: 39), João responde dizendo que o homem (Vasques) falara em “estúdio”. É a primeira alusão ao “Estúdio 7” por parte dos figurantes (tinha apenas sido mencionado por Vasques, que pergunta aos figurantes onde fica o estúdio). Um pouco adiante Pedro hesita “Este lugar é o – (...) ...Lugar onde estamos.” (idem, 40), Micaela inquieta-se “Mas será que é a posição certa? Será que estamos bem aqui? (...) Será que é este o lugar indicado para estarmos (...) Por exemplo as luzes já não estão no mesmo sítio.” (idem, 41) e pouco depois Pedro conclui a sua deixa anterior “Estamos onde o lugar este lugar é.” (idem, 44).

O lugar que é, só o pode ser na medida em que é instaurado pela presença dos

corpos dos figurantes, já que nem nós nem eles próprios o sabemos identificar à partida. O espaço do palco vai sendo invadido por uma multiplicidade de espaços mentais

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resultantes das narrativas que vão sendo contadas. O espaço que o espetador vê fisicamente no palco vai perdendo, ao longo da peça, o seu grau de abertura, isto é, a disposição das cadeiras e dos figurantes e o facto de o contador de histórias se servir de um microfone abandonam a sensação de estar à deriva naquele espaço, direcionando-o para a ideia de algo muito concreto: um programa de televisão.

Mas recuemos ao início da peça. Na história da mão, o quadrado com a sua evolução posterior de cubículo de vidro (na prática, o guichet de venda de bilhetes de comboio da estação), é afastado de todos os lugares e suspenso no tempo para permitir o mágico encontro do homem que está dentro do quadrado e da mão que entra pela “abertura retangular das transações”. É este o lugar onde nasce o amor entre o homem liso e a mão de mulher. Este lugar de vidro mantém-se mesmo quando decidem alterar o local de trabalho do homem, deixa de ser a estação de comboio e passa a ser uma casa de strip, “Temos de ser verdadeiros. Devemos-lhe isso, um pouco de honestidade na nossa história. Se gostamos mesmo dele, se realmente ele nos... como foi dito há pouco... devemos-lhe isso. Um pouco de verdade. ” (idem, 72). Os figurantes mergulham o espaço heterotópico que é o cubículo de vidro, o lugar por excelência do encontro amoroso, introduzindo-o no espaço “marginal” da casa de strip, de forma a acrescentar um pouco de verdade à história.

São vários os lugares que vemos durante não só a história da mão, mas também durante os testemunhos dos figurantes. Porém, sobre o lugar físico onde os figurantes estão, recebemos poucas pistas: sabemos que algo os prende ali e que é através da exteriorização da culpa pela palavra que se mantêm juntos, associamos ainda aquele espaço às luzes artificiais, que desde as suas primeiras conversas ganharam presença. O lugar que vemos lembra no entanto o palco, o lugar do espetáculo. O espaço para além da palavra é também interrompido pelas deixas do clarinete que criam o seu próprio universo e pelas personagens Vasques e Cardoso, que apesar de se apresentarem de passagem, parece que pertencem àquele lugar, como se devessem ficar ali para sempre e deixar os figurantes partir. É exatamente depois de uma aparição assombrosa destas duas personagens clown que, tentando acalmar António, João diz,

É este o nosso lugar. Estamos no sítio das luzes, sim, dê só talvez um passito para o lado... isso. Isso. Não há problema. Prometo-lhe: não há problema nenhum. Estamos bem aqui. Temos que nos manter dignos e fortes. Fazemos o nosso trabalho. Não há que

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ter dúvidas agora. Também já não falta assim tanto. (pausa) A cena, digamos assim, acaba com ele sozinho. (idem, 77)

A história da mão encaminha-se também para algum fim, os testemunhos/ confissões dos figurantes atropelam-se até ao momento em que eles se projetam no homem magro que espera que a mulher se vire para o ver. Nessa tensão expectante, João, o contador de histórias apresenta-se e apresenta-nos o “Estúdio 7” como se tudo não tivesse passado de um programa de televisão.

Não. Ainda não disse nada. Agora sim. Agora, por favor, mantenham-se direitos, de pé, a olhar em frente. Aguentem neutros e com olhos fortes enquanto as luzes descem. Este é o momento mais importante, a super-hora híper-absoluta. Foi um prazer tê-los connosco. Boa noite e até para a semana, aqui no “Estúdio 7”! (idem, 107)

Neste percurso espacial, Figurantes assemelha-se à ideia de escrita de Jacinto Lucas Pires: começar a esboçar algo estrangeiro e longínquo e ir-se aproximando do biográfico, das experiências. Ora, na peça as personagens também percorrem um caminho que as leva cada vez mais para dentro de si, ao mesmo tempo que esse devir para dentro as veicula para os outros, fortalecendo o registo coral. Por fim, toda essa construção é abatida pela definição do lugar por “Estúdio 7”. Toda a luta contra o vazio e o medo é de repente terminada pelo próprio teatro. A cortina cai como quem diz, há sempre vazio, medo, culpa, morte.

O facto de Silenciador ser uma peça, como dissemos a propósito da oralidade presente na linguagem, menos mental do que Figurantes, faz com que também o palco

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