• Nenhum resultado encontrado

Estatuto da cidade e a defesa do direito democrático à cidade

O processo de diminuição populacional e fuga de investimentos na região central a partir da segunda metade do século XX, bem como o crescimento desmesurado da mancha urbana em direção a áreas periféricas, não foram fenômenos isolados na capital paulista. De acordo com Bonduki (2010), as principais metrópoles brasileiras passaram por um processo gravíssimo de perda de população nas áreas urbanas melhor servidas por infraestrutura e emprego, além de um crescimento acelerado de regiões periféricas e ocupação indevida de áreas de proteção ambiental.

Conforme colocado na Parte I do trabalho, as dinâmicas relacionadas ao desenvolvimento urbano quando submetidas ao modo de produção capitalista estão sujeitas à lógica de acumulação do capital, que por sua vez está inserido em um mercado altamente globalizado e dinâmico, em permanente busca por novos nichos de atuação. A perda de investimentos da área central de São Paulo para áreas de maior rentabilidade obedece à essa lógica, e pode até certo ponto ser considerada previsível. Tanto que processos similares ocorreram não apenas nas principais capitais do Brasil, mas em importantes cidades de diversos países da Europa, Estados Unidos e América Latina.

65 Os processos de desconstrução espacial da cidade de São Paulo, desde a segunda metade do século XIX, estiveram na maioria das vezes subordinados a interesses privados, e as formas de ocupação do território refletem isso. Mas embora esses mesmos interesses tenham tido um papel decisivo na orientação do crescimento da cidade, não se pode dizer que não houve resistência ou luta para conter a especulação imobiliária e orientar o crescimento.

A problemática urbana sempre esteve presente desde as primeiras décadas do século XX, não apenas no debate técnico, mas também na produção científica e literária. Dos Congressos de Arquitetura promovidos a partir de 1930 às canções de Adoniran Barbosa, as questões urbanas passaram a ser colocadas e debatidas de maneira intensa por diversos setores da sociedade, dando origem a uma vasta produção intelectual e jornalística a respeito. Vários eventos foram promovidos com o intuito de discutir as condições de vida dos trabalhadores, buscando diagnosticar os problemas e criar alternativas para a crise habitacional. Arquitetos, advogados, urbanistas, sociólogos, para citar apenas alguns profissionais, passaram a participar desses eventos com o propósito de elaborar propostas de ação para a questão, abordando os aspectos físicos, institucionais, jurídicos, sociais e ideológicos envolvidos, a fim de viabilizar soluções habitacionais alternativas para a população de baixa renda (BONDUKI, 1998).

No início da década de 1960 há uma intensificação no debate político acerca dos principais problemas estruturais das cidades brasileiras. Durante o governo João Goulart inicia-se uma série de discussões sobre questões como a reforma agrária, educação e o desenvolvimento nacional. Um marco desse processo foi a realização do Seminário de Habitação e Reforma Urbana (SHRU) em 1963, promovido pelo Instituto de Arquitetos do Brasil, com apoio do governo federal através do Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Servidores do Estado (IPASE). Esse seminário resultou em várias propostas importantes para uma nova política urbana e habitacional, que acabaram suspensas com o golpe militar de 1964. Segundo Bonduki e Koury (2010), embora o golpe tenha interrompido as perspectivas políticas e reformistas introduzidas pelo SHRU, seus desdobramentos foram importantes. Parte das propostas do seminário foram apropriadas pelo regime militar, fato que influenciou a criação do BNH e do Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (SERFHAU). E as propostas mais progressistas defendidas durante o evento, contrárias à posição do

66 regime, ficaram latentes e foram retomadas décadas depois, influenciando os movimentos pela reforma urbana na Constituinte de 1988, além da luta durante a década de 1990 pela aprovação do Estatuto da Cidade.

A partir dos anos 1980 há uma intensificação nas pressões pela reforma urbana por movimentos sociais, estudantis e sindicais, dando origem ao Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU). Um dos marcos importantes dessa trajetória de luta pelo direito à cidade foi a inclusão dos artigos 182 e 183 na Constituição Federal em 1988, que tratam da política urbana e incorporam a noção de função social da propriedade no corpo da lei. A partir desse momento o direito à propriedade deixa de ser absoluto, e a existência de imóveis ociosos que não cumpram sua função social passa a ser passível de sanções.

Mas apesar do avanço, foram necessários outros treze anos de debates e disputas políticas para regulamentar o texto da política urbana, e apenas no ano de 2001 é aprovada a Lei Federal 10.257/2001, também conhecida como Estatuto da Cidade. Com o objetivo de regular o cumprimento da função social da propriedade urbana, o Estatuto fornece os instrumentos urbanísticos necessários para uma ação concreta sobre as regras de produção do espaço, planejamento e gestão urbana participativa. Além disso, estabelece limites para a propriedade do solo apresentando as condições para o cumprimento da função social da propriedade.

A implementação do Estatuto da Cidade torna possível a atuação sobre o mercado de terras urbanas, controlando e diminuindo as possibilidades de especulação imobiliária. Suas principais diretrizes gerais são:

Regular o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.

Garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer.

Gestão democrática por meio da participação da população.

Planejamento do desenvolvimento das cidades de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano.

67 Ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar a retenção

especulativa de imóvel urbano.

Evitar a instalação de empreendimentos ou atividades que possam funcionar como polos geradores de tráfego, sem a previsão da infraestrutura correspondente.

Evitar a deterioração das áreas urbanizadas.

Proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico.

Recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a valorização de imóveis.

Para concretizar essas diretrizes, o Estatuto disponibiliza para os municípios os seguintes instrumentos urbanísticos, a fim de viabilizar a função social da propriedade:

Plano diretor

Imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana – IPTU Incentivos e benefícios fiscais e financeiros

Desapropriação

Limitações administrativas

Tombamento de imóveis ou de mobiliário urbano Instituição de zonas especiais de interesse social Usucapião especial de imóvel urbano

Direito de superfície Direito de preempção

Outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso Operações urbanas consorciadas

Legitimação de posse

Parcelamento, a edificação ou a utilização compulsórios do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado

Estudo prévio de impacto ambiental (EIA) e estudo prévio de impacto de vizinhança (EIV)

68 Segundo Maricato (2010), o Estatuto da Cidade reforça a orientação autônoma e descentralizadora assegurada aos municípios pela Constituição brasileira, que por meio do Plano Diretor ou legislação complementar definem quais propriedades são passíveis de sanções de instrumentos urbanísticos. De acordo com a autora, dependendo da correlação de forças no município, a lei poderá ter aplicação efetiva ou não.

O que se pretende investigar na terceira e última parte do trabalho é o alcance do Estatuto da Cidade como indutor de uma mudança de paradigma na produção do espaço urbano em São Paulo, cerca de dez anos após sua aprovação. Qual a efetividade dos instrumentos urbanísticos disponíveis para a contenção da especulação imobiliária, proteção do patrimônio edificado e garantia do cumprimento da função social da propriedade? A aplicação desses instrumentos conseguiu de alguma forma equilibrar o desenvolvimento urbano e inverter a lógica de submissão ao capital financeiro?

69 3 PARTE III – A PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO NO CENTRO DE SÃO PAULO NA

PRIMEIRA DÉCADA DO SÉCULO XXI. O CASO DA RUA PAIM.

Depois de anos de debates e propostas de ação para reverter o processo de abandono e degradação do patrimônio edificado no centro de São Paulo, recuperação do espaço público e atração de novos moradores e usuários, entre os anos 2000 e 2010 há uma alteração no fluxo migratório dos distritos municipais da região central. Durante a primeira década do século XX, período que compreende a aprovação do Estatuto da Cidade em 2001 e do Plano Diretor Estratégico do município em 2002, a região central passa a atrair novos moradores. A volta da sede da Prefeitura à região central em 2004, que passou a ocupar o Edifício Matarazzo, localizado no Vale do Anhangabaú, sinaliza um empenho por parte do poder público no processo de retomada do crescimento da região. Mas até que ponto os números positivos registrados pelo censo de 2010 representam um avanço na implementação das diretrizes presentes no Estatuto da Cidade? Qual lógica permeou a produção do espaço urbano ao longo da década na região central da cidade? E qual o peso dado ao patrimônio edificado e às relações sociais existentes dentro desse processo?

Documentos relacionados