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A doutrina da Proteção Integral significou o reconhecimento e o ingresso das crianças e adolescentes no patamar de sujeitos políticos e sociais em igualdade com o cidadão adulto, porém com algumas considerações devido à peculiaridade desta fase de desenvolvimento (VOLPI, 2001). A partir do ECA, este grupo passa a fazer parte do Estado Democrático de Direitos. Esse novo dispositivo estabeleceu o caminho para a intervenção popular nas políticas de assistência, traçando as diretrizes da política de atendimento: criação de conselhos municipais, estaduais e nacionais dos direitos da criança e do adolescente; órgãos deliberativos e controladores das ações em todos os níveis, assegurando-se a participação popular paritária por meio de organizações representativas, segundo leis federais, estaduais e municipais. Ou seja, novos atores e setores passam a ser responsáveis pela garantida dos direitos da criança e do adolescente com funções atribuídas e bem definidas, não se concentrando mais somente nas mãos do Juiz de Menores. O trabalho agora é sob a ótica de uma política social em rede. Estrutura-se este sistema integrando Ministério Público, Juizado da Infância e Adolescência, Conselho Tutelar, Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente e outros profissionais atuantes da área. Dessa forma, ocorre a descentralização do poder e das ações voltadas para a população infanto-juvenil, realizado agora em conjunto com várias instâncias sociais.

A criança e o adolescente se tornam uma população com atenção especial e prioritária independente de sua condição social, cultural, religiosa e etc, correlacionando os deveres da Família, do Estado e da Sociedade em interface com a educação. Esta situação é colocada com muita clareza no Artigo 4° do ECA, em que consta que

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los à salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 1990).

Iniciou-se então uma fase de desinstitucionalização, caracterizada pela implementação de uma nova política que amplia quantitativa e qualitativamente a participação da sociedade na elaboração, deliberação, gestão e controle das políticas para a infância, o que é fundamental para a garantia da implementação da Lei (BRASIL, 1990). As instituições existentes tiveram que incorporar essa nova política de atendimento que trouxe várias inovações e mudanças no panorama vigente até então.

Na garantia dos direitos oriundos do ECA, são reservadas as medidas de proteção às crianças e adolescentes que, por ventura, estiverem em situação de risco ou violação de seus direitos, e as medidas socioeducativas no caso de adolescentes que cometem infrações. As medidas de proteção podem ser aplicadas em qualquer caso de violação de direitos, normalmente averiguada e encaminhada ao Conselho Tutelar, bem como em casos de ato ilícito se o autor for menor de 12 anos de idade. Crianças até 12 anos de idade incompletos ficam isentas de qualquer responsabilidade e as medidas protetivas, não punitivas, podem ser aplicadas independente de ordem ou processo judicial, estendendo-se em intervenções em torno da família ou responsáveis (SEGALIM e TRZCINSKI, 2006).

No que se refere ao adolescente entre 12 e 18 anos que pratica ato ilícito, esta legislação traz a concepção de ato infracional e não mais de infração penal. O ato infracional é a idéia de responsabilização acerca da conduta descrita como crime ou contravenção penal. No entanto, pela condição de estarem em fase de desenvolvimento e não terem o discernimento necessário para a culpabilização, os adolescentes são submetidos à legislação especial que contempla a peculiaridade desta fase.

Deste modo, o adolescente que infringe a Lei deve ser encaminhado ao cumprimento de uma medida socioeducativa, pois esta

[...] é, ao mesmo tempo, a sanção e a oportunidade de ressocialização, contendo, portanto, uma dimensão coercitiva, uma vez que o adolescente é obrigado a cumpri-la, e educativa, uma vez que seu objetivo não se reduz a punir o adolescente, mas prepará-lo para o convívio social” (VOLPI, 2001, p.66).

As medidas socioeducativas são aplicadas aos adolescentes entre 12 e 18 anos pela autoridade competente conforme estabelece o ECA. A natureza das medidas é de sanção, mas com interface educacional e ressocializadora. Se a

criança menor de 12 anos comete uma conduta anti-social, está isenta de responsabilidade, ficando a cargo do Conselho Tutelar a aplicação de medidas protetivas. Este órgão também tem a competência de fiscalizar casos de violação dos direitos da criança e do adolescente. Aos maiores de 12 anos são aplicadas as medidas socioeducativas em que estes jovens são submetidos ao sistema de justiça, em uma lei especial, levando em consideração sua condição de sujeito em desenvolvimento, portanto mesmo havendo imputabilidade penal, há entre 12 e 18 anos responsabilização do ato submetendo-os à sansões específicas, delimitadas pelo Juiz da Vara da Infância e da Juventude (PEREIRA e MESTRINER, 1999).

As medidas socioeducativas são previstas no artigo 112 do ECA e são determinadas após a averiguação e identificação do ato infracional praticado. A autoridade judiciária poderá estabelecer as seguintes medidas: I - Advertência; II - Obrigação de reparar o dano; III - Prestação de serviços à comunidade; IV - Liberdade assistida; V - Inserção em regime de semi-liberdade; VI - Internação em estabelecimento educacional; VII - qualquer uma das hipóteses previstas no artigo 101, I a VI (BRASIL, 1990). As advertências e a obrigação de reparar o dano não são vinculadas a programas de atendimento porque se findam na ação do juiz.

As outras medidas estabelecem necessidade de acompanhamento técnico, pois demandam o cumprimento de algumas atividades, seja em meio fechado ou meio aberto e há um prazo a ser cumprido. A Liberdade Assistida (LA) e a Prestação de Serviço à Comunidade (PSC) são cumpridas fora dos muros da instituição, garantindo ao adolescente o direito de ir e vir. Já a internação e a semiliberdade são cumpridas na instituição com caráter de privação de liberdade, determinada pelo juiz em função da gravidade do delito cometido (PEREIRA e MESTRINER, 1999).

No que tange à execução das medidas e as ações voltadas à criança e ao adolescente, agora almejando um novo padrão de relação entre sociedade civil e Estado com participação e responsabilização de todos, tem-se como meta a municipalização e regionalização dos serviços oferecidos. O ECA preconiza a municipalização de alguns atendimentos aos adolescentes em conflito com a Lei, a fim de garantir a descentralização da administração e sua execução. A isso visa o trabalho em rede dos vários setores sociais respeitando as diferenças de cada região do país. Assim, os municípios têm autonomia para gerir os programas e podem oferecer, à população adolescente, ações voltadas para a ressocialização dentro de seu espaço de pertencimento. As soluções adotadas mediante a

heterogeneidade dos municípios brasileiros devem contemplar as peculiaridades históricas, sociais e culturais de cada localidade.

Segundo Pereira e Mestriner (1999), este processo de descentralização e municipalização é um instrumento que pode ajudar a diminuir as desigualdades sociais, pois se busca a universalização dos serviços e a criação de canais de participação e exercício de controle pela sociedade, ou seja, envolve a partilha de poder e a responsabilização de várias parcelas da população.

Embora 1990 tenha sido um período que desencadeou a determinação de todas essas medidas e a promoção deste novo olhar à população em questão, sua efetivação ainda era realizada nos mesmos locais e instituições que já existiam, como as Fundações do Bem-Estar do Menor (FEBEM), que mantinham, inclusive, o mesmo nome. Mesmo que as medidas sócioeducativas estivessem já preconizadas no ECA, havia/há ainda muita dissonância entre o que se almejava pela legislação e o que realmente se efetivava nas instituições executoras das medidas (FEBEMs), bem como uma dificuldade e dúvidas das gestões municipais em empenhar seu papel de responsabilidade nas medidas em meio aberto. É claro, porém, que as redefinições de papéis e a transformação das competências de cada esfera de governo não se dão de forma automática e mecânica. Conforme aponta Pereira e Mestriner (1999, p. 19), referindo-se às medidas de LA e PSC

Ainda que a municipalização seja concebida como estratégia fundamental na gestão e no controle das atribuições públicas, é preciso garantir, no entanto, que este processo não fique só nas mãos dos Executivos Municipais, mas se firme na constituição de um poder local amplo que interaja com as lideranças e coletividades locais.

O processo de implementação do ECA tem sido cheio de percalços e contratempos, sendo realizado com uma certa lentidão. Estivemos diante de fatos como as rebeliões das FEBEMs, como o caso da unidade do Tatuapé em 1992, a chacina da Candelária, entre outros que mostraram a fragilidade das ações mesmo diante do Estatuto. Vogel (1995), que expõe ter havido, nessa época, diversas discussões e argumentações que reconheciam as virtudes do ECA enquanto dispositivo jurídico, mas questionavam a possibilidade de aplicá-lo à realidade brasileira, parecendo um empreendimento utópico.

Segalin e Trzcinski (2006) expuseram, em um estudo sobre a infração na adolescência e o acesso ao sistema de justiça, que o adolescente autor de infrações é introduzido à justiça pela via da infração e não pelo sistema dos direitos, previsto no Estatuto. Os autores apontam que esse fato revela a fragilidade de um Estado incapaz de assegurar a operacionalização da Lei, déficit relacionado à falta de políticas públicas voltadas à infância e à juventude em atenção às suas necessidades de direito.

Pesquisas realizadas nas unidades de privação de liberdade dos adolescentes infratores mostraram, através do relato dos próprios jovens, que eles vêem a unidade como uma prisão e que recebem as mesmas formas de contenção dos adultos (TEIXEIRA, 2006). A representação social que os jovens fazem desses locais é negativa e a prática socioeducativa não tem significado à eles, que atribuem uma subjetivação e definição de seu papel social apenas analisando a si próprio, não levando em consideração a instituição e o cunho ressocializador da medida, que para eles não tem significado (ESTEVAM, COUTINHO e ARAÚJO, 2009).

No estudo de Bandeira (2006) foi possível constatar que, nas unidades de internação (FEBEM), são pouco trabalhadas propostas educacionais consistentes conforme previsto no ECA. No entanto, essas não garantem os direitos mínimos necessários aos adolescentes internados, nem trazem a proteção integral prevista pelo Estatuto. É preciso, paralelamente à educação, melhorar toda a organização do espaço e ações desenvolvidas por todos os profissionais, principalmente extinguir o modelo de atendimento que carrega ao longo da história o modo rígido e repressivo das prisões. As impossibilidades e limites ainda presentes nas medidas socieducativas são referidos por Francischini e Campos (2005) que mencionam, em seu estudo, a dificuldade de trabalhar num contexto que respeite a ética a vida. Apontam que as instituições reafirmam a marginalidade do adolescente em conflito com a Lei e que há poucas possibilidades de reinserção diante das condições da aplicabilidade das medidas, fato demonstrado pelo grande número de reincidência desses jovens.

Os problemas continuaram e continuam na difícil tentativa de efetivação do ECA. Era preciso o amadurecimento dos gestores, dos municípios e dos técnicos, bem como um parâmetro mais claro que orientasse a aplicação das medidas socioeducativas. Mediante essa problemática, em 2006 formula-se o Sistema

Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) (BRASIL, 2006) com o intuito de nortear a aplicação das medidas socioeducativas sobre as bases ético-pedagógicas.

3.3 SINASE - Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo: os