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Estigmas associados ao período de formação do Santo Daime, Barquinha e União do

CAPÍTULO 2. Mapeando a controvérsia pública sobre o uso da ayahuasca no Brasil

2.1. Estigmas associados ao período de formação do Santo Daime, Barquinha e União do

Como apontei no capítulo anterior, a conjuntura histórica em questão é descrita pela literatura acadêmica enquanto um período de desagregação da exploração da borracha, de êxodo em direção as zonas urbanas e de estabelecimento de novas formas de sociabilidade nas cidades amazônicas (SILVA, 1983; GOULART, 1996). De acordo com Goulart (2008, p. 257):

Este era um momento de refluxo do ciclo da borracha em toda a Amazônia brasileira, quando o contingente populacional que em períodos anteriores se dedicava a esse extrativismo havia deixado as antigas colocações seringueiras e migrando para as capitais da região. Nas periferias destas capitais, estes seringueiros passavam a se dedicar à pequena agricultura, geralmente como arrendatários de terras do governo, com parcos recursos econômicos e tendo que lidar com uma série de dificuldades impostas por uma infra-estrutura precária destas cidades. Tal era a situação de Rio Branco, vivenciada tanto por Irineu Serra como pela maioria de seus vizinhos do bairro da Vila Ivonete.

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A noção de controvérsia pública remete ao conceito habermasiano de espaço público enquanto arena onde os procedimentos discursivos interagem, negociam e disputam sentidos, estabelecendo consensos quase sempre provisórios. Assim, pode ser entendida como um conjunto de práticas e produções discursivas associadas principalmente aos processos de produção de legitimidade social, cujos requisitos fundamentais são: visibilidade e publicidade.

Analisando o período em pauta, Goulart assinala que o Santo Daime tem sua configuração inicial como um “culto de cura”. A antropóloga procura apontar que a infraestrutura deficitária das cidades amazônicas propiciou uma conjuntura na qual a utilização do Santo Daime para o tratamento de doenças era em geral mais valorizada do que a medicina oficial, de modo que as práticas envolvendo o uso da bebida passaram a ocupar um papel central enquanto alternativa aos tratamentos médicos convencionais, atuando enquanto instância terapêutica popular (ibidem).

A autora argumenta que a utilização do Santo Daime para finalidades terapêuticas contribuiu para que seu fundador, mestre Irineu, ganhasse notoriedade, assumindo o papel de benfeitor de uma parcela carente da população local (ibidem, p. 258-259). Partindo de um diálogo com Maria Isaura Pereira de Queiróz (1978), especialmente no que concernem algumas características da configuração das áreas rurais brasileiras, Goulart destaca as referências feitas a Irineu Serra por integrantes do Santo Daime, como “pai”, “protetor” e “padrinho” para associar sua figura aos santos, beatos, rezadores e milagreiros presentes nas análises de Queiróz (ibidem).

O mesmo pode ser dito sobre as análises acerca da trajetória de vida dos mestres Daniel e Gabriel, fundadores da Barquinha e União do Vegetal respectivamente. Goulart imputa ao mestre Daniel um papel análogo ao de mestre Irineu enquanto benfeitor de camadas sociais desfavorecidas de Rio Branco (ibidem). Vale lembrar o trabalho de Sena Araújo (1999, p. 49), analisado anteriormente, o qual ressalta que mestre Daniel era frequentemente procurado por pessoas com problemas de saúde, questões familiares, alcoolismo, entre outros problemas. Quanto ao mestre Gabriel, Brissac (1999, p. 76) aponta que, apesar de contar com poucos adeptos durante seu período de formação na década de 1960, o centro dirigido pelo primeiro também proporcionava uma alternativa para as pessoas que buscavam auxílio e curas em um contexto de extrema carência de recursos.

Com efeito, as análises acerca da atuação dos fundadores do Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal junto à população local são deste modo, relevantes para o enquadramento do uso da ayahuasca enquanto instância terapêutica popular. Cabe ressaltar, como foi indicado anteriormente, que o aspecto curativo é um dos pontos mais recorrentes na descrição do uso da ayahuasca pela literatura acadêmica, não somente no que concernem o Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal, mas também nas analises sobre o uso ameríndio da ayahuasca, assim como nos trabalhos que analisam a atuação dos vegetalistas, descritos enquanto agentes

terapêuticos populares que desenvolveram uma variedade de medicina folk utilizando a ayahuasca, entre outras plantas.

Goulart aponta que a questão do consumo de uma bebida ligada a populações indígenas – utilizada principalmente para práticas curativas as quais geravam “bastante desconfiança e, muitas vezes, uma verdadeira perseguição ao culto daimista” (ibidem, p. 257, grifo meu) – somada ao papel de liderança entre segmentos sociais desfavorecidos, assumido pelos fundadores do Santo Daime, Barquinha e UDV, acabou criando incômodos junto às autoridades e membros da elite local. Goulart enfatiza um episódio no qual a residência do mestre Irineu foi invadida por soldados do exército devido a uma acusação que este havia ajudado um de seus discípulos a roubar uma mulher através de “feitiço” e “macumba” realizados com o Daime. A autora também menciona a prisão de mestre Gabriel em 1967, citada em trabalhos acadêmicos que analisam a constituição da União do Vegetal (BRISSAC, 1999; GOULART, op. cit.). Sobre o acontecimento em questão, Brissac aponta que, na ocasião, o foco do inquérito policial dizia respeito “àquele ajuntamento de pessoas” com características de “organizações coletivas” (ibidem, p. 80). Ao recorrer a tais episódios, os autores procuram evidenciar que os integrantes do Santo Daime e UDV, assim como seus fundadores, não eram apenas atrelados aos estigmas associados às práticas de “macumba” e “charlatanismo”, mas também objeto de uma repressão institucional empreendida por autoridades locais.

A associação do uso da ayahuasca enquanto instância terapêutica popular, assim como os relatos sobre atritos entre ayahuasqueiros e autoridades locais, são pontos centrais para a aproximação empreendida pela literatura antropológica entre os estigmas concernentes ao período de formação do Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal e os constrangimentos impostos aos cultos afro-brasileiros no final do século XIX e início do século XX. Com efeito, Goulart compara o receio em relação ao “culto daimista” com as perseguições sofridas por praticantes da Umbanda nas primeiras décadas do regime republicano brasileiro, principalmente no que concernem às práticas curativas e fitoterápicas, as quais eram taxadas de “baixo espiritismo”, “curandeirismo” e “charlatanismo”. A autora destaca, a partir de um conjunto de entrevistas, que as categorias de “trabalho”, “feitiço” e “macumba” eram frequentes nas acusações sobre as práticas dos ayahuasqueiros, apontando inclusive para a presença de um “estigma de raça”, explicitado nas acusações voltadas ao mestre Irineu de “preto macumbeiro” (GOULART, op. cit., p. 261).

Contudo, MacRae (op. cit., p. 292) argumenta que os pontos de comparação dos ayahuasqueiros com os cultos afro-brasileiros não se restringem à repressão institucional e aos estigmas de “macumba” e “charlatanismo”, estendendo-se aos elementos de tradições religiosas associados a ambos. De acordo com o antropólogo, assim como a umbanda, a consolidação das “religiões ayahuasqueiras” é relativamente recente, combinando elementos similares das mesmas tradições religiosas, embora suscitando outras modalidades de “transe” (ibidem):

De forma similar à de outros movimentos religiosos de constituição recente, como a umbanda e as religiões neopentecostais, por exemplo, as estruturas organizacionais, doutrinárias e ritualísticas dos cultos ayahuasqueiros se encontram em fase de consolidação e são frequentes as cisões ou o surgimento de novos grupos dotados de doutrinas e rituais. (MACRAE, op. cit., p. 292, grifos meus).

Deste modo, é possível afirmar que os atritos entre as lideranças dos grupos ayahuasqueiros e as autoridades locais apresentados pela literatura acadêmica, e a perspectiva de “movimentos religiosos” em formação serviram de elemento de comparação entre o Santo Daime, Barquinha e UDV e os cultos afro-brasileiros, os quais estão categoricamente consolidados na produção antropológica enquanto “religiões”. Partindo, portanto, do pressuposto que a constituição do Santo Daime, Barquinha e UDV, enquadra-se em um processo histórico mais amplo de estigmatização e repressão a manifestações populares – centradas principalmente em práticas terapêuticas –, a literatura antropológica traça uma configuração das instituições em pauta enquanto religiões caracteristicamente de origem popular. Nesse âmbito, a forma como é analisado o período de formação dos cultos afro- brasileiros serve de modelo para análise da gênese e consolidação das instituições ayahuasqueiras no Brasil, com aproximações e distanciamentos específicos, porém, com uma gramática comum.

Nesse debate, é possível notar a recorrência de termos como “macumba”, “feitiçaria”, “charlatanismo”, “curandeirismo”, “movimentos religiosos”, “grupos religiosos”, “tradição”, “transe”, “práticas terapêuticas”. A frequência com que tais categorias são acionadas nas análises sobre o período de formação do Santo Daime, Barquinha, e União do Vegetal, evidencia o direcionamento da abordagem da literatura acadêmica, enquadrando a história do uso da ayahuasca no Brasil enquanto uma conjuntura de perseguição e repressão a manifestações religiosas populares características da região amazônica.

2.2. O estigma das drogas

[...] a perseguição das práticas religiosas organizadas pelo Mestre Irineu, e talvez em menor escala pelo Mestre Daniel, em Rio Branco, da década de trinta aos anos cinquenta, evidenciava uma tentativa de controle social de um grupo desfavorecido, uma minoria discriminada. [...] no momento atual vivido pelas religiões ayahuasqueiras estas acusações de “curandeirismo”, “macumba”, feitiço” e “charlatanismo” perdem importância, enquanto um novo estigma e uma nova acusação ganham força. Hoje em dia, estes grupos

religiosos são alvo de recriminação e repressão principalmente conforme a

bebida utilizada nos seus rituais é acusada de ser uma “droga”, isto é, “substância alucinógena”, “tóxico”, “entorpecente” e outras noções assemelhadas. (GOULART, op. cit., p. 262, grifos meus).

As análises sobre os desdobramentos do uso da ayahuasca no Brasil apontam para uma transformação dos estigmas atrelados ao fenômeno nas últimas décadas, apresentando indícios de que o enfoque da controvérsia pública deixou de centrar-se nas práticas, deslocando-se para a bebida em si, a qual passou a ser associada ao tema das drogas (GOULART, op. cit., 2004; MACRAE, op. cit.). Deste modo, é possível encontrar na literatura acadêmica argumentos que apontam tal deslocamento como um dos fatores responsáveis por tornar a bebida foco de processos normativos, culminando em sua proibição em 1985, e, consequentemente, em políticas públicas desenvolvidas pelo Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN) e pelo Conselho Nacional de Política sobre Drogas (CONAD).

Com o intuito de compreender como a dinâmica em pauta é apreendida pela literatura acadêmica, abordarei a seguir um conjunto de eventos e temas apontados em livros, teses e artigos científicos na tentativa de identificar quais argumentos são apresentados nas análises enquanto fatores determinantes para a progressiva associação nas últimas décadas do uso da ayahuasca ao estigma das drogas.

O contexto histórico brasileiro

Goulart (op. cit., p. 262) procura demonstrar que as principais transformações nas acusações sofridas pelas “religiões ayahuasqueiras brasileiras” começaram a manifestar-se de modo mais evidente a partir da década de 1970. A autora apresenta o período em pauta como uma época de recrudescimento político propiciado pela ditadura militar, cenário no qual surgiu um novo tipo de desviante, caracterizado pela figura do “drogado”38. A antropóloga

38 Segundo Goulart (op. cit., p. 263): “A categoria acusatória ‘drogado’ sintetiza esplendidamente as preocupações dos setores dominantes sobre a manutenção do status quo e da moralidade que lhe era implícita. Ela era emblemática de todo um conjunto de novos hábitos das gerações mais jovens, ou seja, um símbolo com alto poder de expressão de uma juventude que era preciso controlar”.